sexta-feira, 15 de novembro de 2024

Timor-Leste | A INVENÇÃO DO DIA ESCURO

Ludo Lunden | Diligente

33 anos depois do Massacre de Santa Cruz, a 12 de novembro de 1991, a Polícia Nacional de Timor-Leste (PNTL) decidiu proibir qualquer manifestação pública nas comemorações de 2024. É paradoxal que, num país cuja independência foi conquistada por meio de manifestações e sacrifícios, se silenciem agora as vozes que pretendem exercer justamente o direito à liberdade de expressão. Esta proibição, mais do que uma simples medida de repressão bacoca, parece trair o próprio espírito de luta que levou Timor-Leste à sua soberania.

A 28 de outubro de 1991, Sebastião Gomes, um jovem de 18 anos, apoiante da independência e membro da Resistência Nacional dos Estudantes de Timor-Leste (RENETIL), foi assassinado na Igreja de Motael. Duas semanas depois, a 12 de novembro, ocorreu o Massacre de Santa Cruz.

Foi precisamente dessa igreja que partiu a procissão, dirigindo-se para o cemitério de Santa Cruz, onde se depositaram flores na campa de Sebastião Gomes, e o rastilho para os protestos que se seguiram face à aparição de militares do TNI indonésio armado com metralhadoras. No rescaldo, resultaram pelo menos 271 mortos e 278 feridos, de acordo com a imprensa da altura (Rádio Renascença e semanário Expresso) e um número indeterminado de desaparecidos.

A 12 de novembro de 2024, comemorou-se o 33.º aniversário daquela data e se, ao nível do discurso, a efeméride é considerada uma memória preciosa, algumas práticas parecem indicar outra direção. No dia anterior às comemorações, o Comando-Geral da PNTL, através do Comando Operacional, emitiu uma diretiva ao Comando Municipal de Díli para “garantir a segurança durante as comemorações do 19.º aniversário do Dia Nacional da Juventude e do 33.º aniversário do Massacre de Santa Cruz”. Esta diretiva incluiu a proibição de qualquer manifestação pública, entenda-se, de protestos de qualquer índole.

O Comandante da PNTL de Díli, Superintendente-Chefe Orlando Gomes, assegurou que iria destacar efetivos para locais mais propícios, no seu entendimento, a manifestações de protesto indesejadas. Asseverou que iria “atuar contra grupos ou pessoas que queiram realizar ações de manifestação neste dia” (Youtube da RTTL, Últimas Notícias de 11 de novembro de 2024).

O dia cujo lema é “Orgulho com a nossa história e juntos desenvolvemos a nossa nação para um futuro prospero” conta assim com um primeiro paradoxo: delibera-se silenciar as vozes de jovens que, eventualmente, quisessem protestar em homenagem aos jovens que protestaram a 12 de novembro de 1991 e que, em última instância, tiveram um papel crucial no processo que conduziu à independência e soberania de Timor-Leste.

Um segundo paradoxo reside na circunstância de se saber que a geração de jovens que protestou em 1991 é, mais de três décadas depois, a mesma geração que agora permite estas intenções por passividade, por silêncio, por anuência ou, mais grave, está nos círculos do poder a tomar este tipo de decisões.

Um terceiro paradoxo é que, naquele dia, também se comemorou a décima nona edição do Dia Nacional da Juventude e poucas dúvidas restam que seria a juventude atual o alvo predileto do Superintendente-Chefe Orlando Gomes.

Estas medidas de repressão bacoca encontram maior eco sobretudo em datas comemorativas ou efemérides relevantes: aquando da visita do Papa Francisco, foram detidos ativistas por transportarem sinalética da Palestina ou da Papua Ocidental (bandeiras, crachás ou simples t-shirts) a evocar aqueles movimentos independentistas ou simplesmente a clamar um breve slogan de revolta.  Também ocorreram detenções de estudantes universitários em frente ao Parlamento Nacional.

Sim, este ímpeto repressor manifesta-se periodicamente em detenções de jornalistas, ativistas e jovens que ousam protestar. As autoridades insistem que não se pode manchar a sacralidade destas cerimónias, mesmo que estas homenageiem os jovens que, em 1991, perderam a vida com o clamor da sua voz.

No dia 12 de novembro de 1991, jovens cordeiros timorenses baliram pelo direito ao protesto, pelo direito à reunião, pelo direito à manifestação, pelo direito de voto pelo seu futuro, pela independência e pela soberania. À espera dos cordeiros estavam lobos armados que dispararam, que raptaram, que feriram e que mataram. Agora alguns lobos- disfarçados-de-cordeiros, porventura antigos cordeiros, reprimem os atuais que, neste ambiente, nunca balirão.

É difícil acreditar que o “chefe da alcateia” dos atuais lobos-disfarçados-de-cordeiros desconhecesse as intenções do Superintendente-Chefe Orlando Gomes: o seu chefe, o chefe do seu chefe e o chefe supremo da alcateia. E se não ordenou, possibilitou por anuência ou passividade.

Depois de mais de três décadas de escuridão em Timor-Leste, onde jovens derramaram sangue e morte, não era preciso inventar um dia escuro. Não se coaduna, não se adequa, não se justifica…

Ludo Lunden, ex-professor em Timor-Leste após a independência, contribuiu para a formação de jovens professores nas áreas de língua portuguesa e didática. Atualmente, vive em Portugal, dedicando-se à escrita e à investigação em temas de educação, com um foco específico na história da educação e no estudo de manuais escolares.

Imagem: Fridia Lisnawati

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Lourdes do Rêgo | Diligente

Com apenas 10 anos, Faustino carrega nas suas pequenas mãos mais do que sacos de snacks: carrega o peso das responsabilidades que a vida lhe impôs. Dividido entre a escola e a venda ambulante, sonha com um futuro diferente — um futuro em que poderá usar uma farda de polícia, ajudando a sua comunidade.

Ao meio-dia, sob o sol escaldante, encontramos Faustino, de 10 anos, no jardim à frente do Palácio do Governo. Perante o imponente edifício, Faustino parece quase insignificante, uma pequena figura movendo-se sob o sol de meio-dia. A sua presença frágil, vestida com uma simples camisola de manga curta, contrasta com a solidez e a opulência da estrutura à sua frente.

Enquanto segura firmemente pacotes de camarão crocante e noodles amarrados com cuidado, caminha sozinho, tentando atrair clientes com um sorriso tímido, enquanto os carros e as pessoas apressadas passam por ele. Apesar de ser apenas um estudante do 4.º ano, Faustino já conhece o que é a dureza da vida.

Todas as manhãs, o quarto de cinco irmãos veste o uniforme escolar e segue para a escola. Quando as aulas terminam, corre para casa, almoça apressadamente e, sem descanso, segue o pai, que lhe entrega os produtos que deve vender até ao entardecer. Enquanto outras crianças saem da escola para brincar, Faustino escolhe ajudar a mãe e os irmãos. “Gosto de vender na rua porque, quando as pessoas compram, a minha mãe consegue garantir que continuamos na escola e comprar a comida que gosto”, partilha com um sorriso que mistura cansaço e esperança.

Mesmo com o cansaço visível no rosto e o peso das mercadorias nas mãos, Faustino não desiste. “Num dia bom, consigo ganhar 2 dólares. Às vezes, não vendo tudo, mas o que sobra trago para casa, e o dinheiro que ganho ajuda-nos a comprar mais krupuk e snacks para vender no dia seguinte”, explica, com uma maturidade que vai além da sua idade.

O irmão de 11 anos também faz a sua parte, vendendo café e doces no Jardim de Motael. O pai, por sua vez, trabalha como carregador no porto de Díli. E, apesar das dificuldades, Faustino mantém o foco: sonha em ser polícia, não para ele, mas para dar segurança e orgulho à sua família.

A situação é dura, mas não é exclusiva de Faustino. Mais de 52 mil crianças timorenses, entre os cinco e 17 anos, são sujeitas diariamente a algum tipo de trabalho infantil. São dados do estudo da Comissão Nacional contra o Trabalho Infantil (CNTI), que fez o levantamento do número de crianças trabalhadoras em Timor-Leste, de 2016 a 2022.

Mesmo assim, Faustino e a sua família não se deixam abater. “Adoro matemática, e quando chego a casa, o meu pai ensina-me a contar. Isso faz com que eu valorize o que aprendo na escola, mesmo que não seja o melhor da turma”, conta, com um brilho nos olhos. Nas férias, em vez de brincar, prefere sair para vender, embora admita que, como qualquer criança, também goste de momentos de diversão.

Por mais que famílias como a de Faustino façam sacrifícios para garantir que os filhos estudem, muitos jovens em Timor-Leste enfrentam barreiras quase intransponíveis.

Leis que protegem, realidades que persistem

De acordo com as alíneas a) e b) do artigo 18.º da Constituição da República Democrática de Timor-Leste (CRDTL), as crianças “têm direito a uma proteção especial da família, da comunidade e do Estado, sobretudo contra todas as formas de abandono, discriminação, violência, opressão, abuso sexual e exploração”.

A Declaração sobre Princípios e Direitos Fundamentais da Organização Internacional do Trabalho (OIT), da qual Timor-Leste é membro, sublinha que todos os países membros devem comprometer-se a respeitar e promover os quatro direitos e princípios fundamentais no ambiente de trabalho, incluindo a “eliminação efetiva do trabalho infantil”.

A OIT aponta como principais fatores que fomentam o trabalho infantil a desigualdade social, a carência de um sistema de educação pública de qualidade e a falta de políticas públicas voltadas para o planeamento familiar.

Conforme esta organização, o trabalho infantil agrava problemas psicológicos, reduz o desempenho escolar e prejudica a socialização, a preparação para o futuro mercado de trabalho e o desenvolvimento cognitivo da criança, comprometendo o seu crescimento enquanto adulto. Desta forma, o trabalho infantil é uma clara violação dos direitos humanos, pois impede que a criança possa crescer plenamente e viver a sua infância de forma adequada.

A realidade de crianças como Faustino, que enfrentam diariamente o desafio de conciliar o trabalho com os estudos, é um reflexo das dificuldades socioeconómicas que ainda prevalecem em Timor-Leste. Embora a Constituição e os tratados internacionais assinados pelo país garantam a proteção das crianças contra a exploração e assegurem o direito à educação, a prática revela um cenário onde muitas famílias, devido à falta de recursos, dependem do trabalho infantil para complementar o rendimento doméstico.