sábado, 31 de maio de 2025

Timor-Leste: Vidas atropeladas: entre o caos das ruas e o silêncio da justiça

Rilijanto Viana | Diligente

O caos rodoviário em Díli não se traduz apenas em trânsito desorganizado e condutores imprudentes — traduz-se em vidas perdidas. Zizelma Gonçalves tinha 18 anos. Foi atropelada numa passadeira por um condutor sem carta. Morreu pouco tempo depois. O tribunal suspendeu a pena. O caso gerou revolta e revelou tudo o que está mal no trânsito e na justiça em Timor-Leste.

Por toda a capital, acumulam-se as queixas da população quanto ao comportamento irresponsável de muitos condutores, que continuam a colocar a vida dos outros em risco. Entre as infrações mais frequentes estão o desrespeito pelas passadeiras, o excesso de velocidade, manobras bruscas e perigosas, e até episódios de assédio verbal, com gritos dirigidos a mulheres a partir de motorizadas em andamento.

A par destes comportamentos de risco, muitos moradores lamentam também o estado de degradação da sinalização horizontal. Em zonas movimentadas como Audian, Bairro Pité, Comoro, em frente ao Palácio do Governo e ao Timor Plaza, a pintura das passadeiras está praticamente apagada. Noutros locais, os semáforos não funcionam há meses. Estas falhas comprometem a visibilidade e a segurança dos peões, exigindo uma intervenção urgente por parte das autoridades.

Adriana Maria da Costa, de 29 anos, funcionária pública, afirmou que o comportamento dos condutores — em especial dos mais jovens — é motivo de preocupação constante. Relatou um episódio em que embateu numa microlete que circulava pelo meio da estrada e travou repentinamente, sem reparar que ela seguia atrás. “Caí. Felizmente, não tive ferimentos graves, mas fiquei muito assustada e traumatizada. Acabei por discutir com o condutor, que depois pediu desculpa e me levou ao hospital”, contou.

Desde então, Adriana prefere conduzir sempre junto à berma. “Sinto-me mais segura na margem da estrada, porque assim evito ser surpreendida por motoristas que cortam caminho de forma repentina”, explicou. Apelou a mais respeito e consciência nas estradas: “Todos temos o direito de circular. Os motoristas devem respeitar os sinais e os outros utentes, para evitar tragédias”.

Também Jacinta Soares, de 25 anos, estudante da Universidade Nacional Timor Lorosa’e (UNTL), partilhou o sentimento de insegurança. “Muitos jovens passam demasiado perto e até gritam quando passam de mota. Fico tão assustada que já quase caí”, lamentou. Para Jacinta, este tipo de comportamento não só é perigoso, como exige uma resposta firme do Governo. “Muitos só reconhecem os erros quando já atropelaram alguém. Mas se todos conduzissem com responsabilidade e atenção, grande parte dos acidentes poderia ser evitada.”

Graciano Soares Freitas, de 47 anos, vendedor ambulante em Audian, destacou ainda o perigo das passadeiras invisíveis. “Os condutores já nem sabem onde estão. Passam a alta velocidade e os peões têm de correr para atravessar. É muito arriscado.” Pediu ao Governo que repinte urgentemente as passadeiras, como medida básica de segurança.

Armandino de Sousa Ribeiro, motociclista, confirmou a gravidade do problema. “Já atropelei um jovem, porque não vi a passadeira. Algumas desapareceram por completo. E há peões que atravessam sem sequer olhar. É perigoso para todos.” Reconheceu que, independentemente das falhas de sinalização, os condutores têm a obrigação de abrandar e dar prioridade nas passadeiras.

Os testemunhos repetem-se. E não são apenas alertas ou reclamações — são avisos ignorados que, em alguns casos, culminam em tragédias. Foi o que aconteceu com Zizelma Maria de Fátima Gonçalves, estudante de 18 anos, atropelada numa passadeira em março deste ano, na zona de Delta II, Díli.

Alguns carros tinham parado para lhe ceder passagem. Um motociclista, que seguia em excesso de velocidade e sem carta, tal como consta no acórdão, não parou. O corpo de Zizelma foi projetado a cerca de oito metros de distância. Morreu horas depois no Hospital Nacional Guido Valadares.

Segundo imagens de videovigilância, o condutor não parou na passadeira. Recorde-se que, de acordo com o número 1, alínea a do artigo 25.º do Código da Estrada timorense, “A velocidade deve ser especialmente moderada à aproximação de passagens assinaladas na faixa de rodagem para a travessia de peões”

No dia 28 de março, o Tribunal de Díli condenou o condutor a três anos de prisão com pena suspensa por quatro anos e ao pagamento de uma indemnização de cinco mil dólares.

Segundo a sentença, foi imputado ao condutor a prática de dois crimes: um Homicídio Negligente Grosseiro e um crime de condução sem carta. De acordo com o artigo 140.º do Código Penal de Timor-Leste, o Homicídio Negligente Grosseiro é punido com pena de prisão até cinco anos. O artigo 209.º, relativo à condução perigosa, prevê pena até quatro anos de prisão ou multa.

Segundo o jurista Sérgio Quintas, o tribunal aplicou uma pena suspensa porque o arguido confessou o crime, demonstrou arrependimento e foi determinada pelos juízes a obrigação de pagar uma indemnização. Esta decisão gerou protestos e um intenso debate nas redes sociais.

A família entregou provas à procuradora Benvinda do Rosário, mas suspeita que não foram consideradas. “O corpo da minha filha ainda estava sobre a mesa e o tribunal já tinha julgado o caso”, lamentou o pai, Jaime Gonçalves. Acrescentou que um polícia foi aceite como testemunha apesar de não estar no local do acidente.

Especialistas apontam protestos como reflexo da desconfiança no setor da justiça

A decisão do tribunal no caso do atropelamento de Zizelma Gonçalves, que terminou com uma pena suspensa para o condutor e gerou protestos no Tribunal de Díli, foi vista por especialistas como um reflexo da desconfiança crescente da sociedade no sistema de justiça timorense.

A diretora do Programa de Monitorização do Sistema Judicial (JSMP), Ana Paula Marçal, e o jurista Sérgio Quintas consideram que a polémica evidencia críticas legítimas ao funcionamento da justiça e às instituições responsáveis por a aplicar. Segundo o JSMP, o Código Penal orienta os tribunais a privilegiarem penas alternativas à prisão, mas isso não deve excluir a análise da gravidade do caso. A organização alerta que princípios como a necessidade, a proporcionalidade e a adequação da pena não podem ser ignorados.

“Os juízes precisam de avaliar cada caso com sensibilidade, evitando soluções genéricas para situações distintas”, refere um comunicado do JSMP. A instituição recorda também que os tribunais têm um papel central na consolidação do Estado de Direito, no equilíbrio entre poderes e na garantia dos direitos fundamentais.

Para Ana Paula Marçal, acreditar na justiça é essencial. Só assim o povo pode confiar que os conflitos serão resolvidos, os criminosos punidos e as vítimas reparadas. Sublinhou ainda que os profissionais da justiça devem possuir, além das competências legais, qualidades humanas como empatia e capacidade de comunicação. “O sistema judicial não pode isolar-se da sociedade”, sublinhou o JSMP, defendendo mais diálogo interno entre juízes para fortalecer o pensamento crítico e a partilha de experiências.

A organização considera que tratar todos os casos com a mesma abordagem é um erro. Os protestos em casos de homicídio por negligência, como o de Zizelma, são expressão de frustração acumulada. Por isso mesmo, apelou aos meios de comunicação social para continuarem a denunciar estas situações, com o objetivo de pressionar o Estado a investir num sistema mais eficaz, seguro e transparente.

Sobre o desaparecimento da pintura das passadeiras em vários pontos de Díli, a diretora reconheceu o problema. “As marcações nas estradas são fundamentais para a segurança rodoviária. Propusemos verba para esse efeito, mas não foi aprovada, pelo que o plano foi adiado para o próximo ano”, explicou.

A DNTT aguarda também dados atualizados da Direção de Estradas do Ministério das Obras Públicas, que está a realizar obras de alargamento em várias vias e a aumentar o número de faixas de rodagem. “Precisamos desses dados para podermos planear a repintura das passadeiras e de outras marcações. A sinalização é essencial para orientar condutores e peões”, concluiu Maria Antónia.

A Fundação Mahein (FM), que acompanha há anos os problemas de trânsito no país, alerta para o facto de a insegurança rodoviária ser hoje um dos principais riscos para a população da capital. A organização denuncia a falta de fiscalização nas estradas, a emissão irregular de cartas de condução, o desrespeito pelas regras de trânsito — inclusive por parte de viaturas da própria polícia e do Governo — e a inexistência de passagens superiores ou inferiores para peões, mesmo em zonas de tráfego intenso.

A FM tem também criticado o que chama de “políticas reativas e mal planeadas”, como medidas isoladas para limitar o estacionamento ou operações pontuais de apreensão de motorizadas modificadas, que raramente têm continuidade e acabam por não surtir efeito. Na prática, a ausência de uma estratégia integrada para o trânsito agrava a desordem e a sensação de impunidade nas ruas de Díli.

A Fundação defende a criação de um plano abrangente de gestão do tráfego urbano, começando por zonas-piloto como a via dupla de Comoro, com passagens pedonais elevadas, melhoria da sinalização, fiscalização real e educação cívica nas estradas. Alerta ainda para a urgência de investir num sistema de transportes públicos eficiente e de regulamentar de forma séria o setor informal, como táxis e microletes.

Para a FM, enquanto o Estado continuar a aplicar medidas avulsas, sem atacar as causas profundas do problema — como a má formação dos condutores, a corrupção nos processos de licenciamento, o desrespeito institucional pela lei e a fraca coordenação entre ministérios —, tragédias como a de Zizelma continuarão a repetir-se.

No entanto, atrás de cada número e de cada recomendação técnica, há vidas concretas que se perdem. Zizelma era uma delas — jovem, sonhadora, cheia de futuro. A sua morte deixou um vazio numa família e abriu, mais uma vez, uma ferida na consciência de um país que ainda não consegue proteger os seus cidadãos nas estradas.

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