A justiça, por aqui e alhures, é,
na sociedade de classes, uma justiça de classe, uma justiça que representa a
classe dominante e que toma o partido dessa classe
Joan Edesson de Oliveira –
de Recife | Correio do Brasil | opinião
A frase é retirada do conto de
François Andrieux, “O moleiro de Sans-Souci”, e narra um diálogo entre
Frederico II, da Prússia, e um moleiro seu vizinho. Pressionado pelo imperador,
que quer ampliar o seu castelo, e negando-se a vender-lhe a propriedade, o
moleiro é ameaçado por Frederico, que afirma que pode tomar-lhe as terras, se a
recusa em vendê-las persistisse. O moleiro não acredita que isso seja possível,
retrucando:
− Tomar-me o moinho? Só se não
houvesse juízes em Berlim.
Bonitinha, revela uma ingenuidade
sem limites. Em Berlim, como no Brasil; sempre houve juízes. Salvo raríssimas e
honrosas exceções; eles sempre se curvaram aos Fredericos em detrimento dos
direitos dos moleiros; camponeses, trabalhadores, dos deserdados da terra.
A justiça, por aqui e alhures, é,
na sociedade de classes, uma justiça de classe; uma justiça que representa a
classe dominante e que toma o partido dessa classe. Foram os tribunais; que
mandaram fuzilar Frei Caneca e os padres Roma, Miguelinho e Mororó. Foram os
tribunais que mandaram enforcar Cosme Bento, Lucas Dantas, Manuel Faustino,
Luiz Gonzaga e João de Deus. Os tribunais legitimaram o golpe militar em 1964 e
as atrocidades cometidas pela ditadura que lhe seguiu. Os tribunais condenaram
centenas de democratas; que ousaram enfrentar a ditadura.
Povo pobre
Ainda hoje, são tribunais que
condenam um negro catador de lixo por porte de pinho sol e alguns gramas de
maconha, mas que liberam o filho branco de uma desembargadora preso com armas,
munições e mais de 100 quilos de droga.
São tribunais que condenam
trabalhadores rurais sem terra e deixam em liberdade latifundiários mandantes
de assassinato. São tribunais que deixam seis anos na prisão uma mulher pela
tentativa de furto (não consumado) de desodorantes e chicletes, mas que não
incomodam grandes sonegadores useiros e vezeiros em lesar o tesouro público.
Daí, não haver nenhuma surpresa
na confirmação da condenação do ex-presidente Lula pelo Tribunal Regional
Federal em Porto Alegre nesta quarta, 24 de janeiro. Havia ingênuos que
acreditavam na absolvição. Mais de um, mesmo depois de iniciado o julgamento;
ainda insistia, tão candidamente quanto o moleiro de Sans-Souci:
− Lula será absolvido. Não há
provas contra ele.
Como se num processo como este
fossem necessárias provas.
Esse foi um processo político
desde o nascedouro, um processo que nem crime teve. O que o Ministério Público
apresentou como crime foi desconsiderado pelo juiz, que criou ele próprio outra
acusação.
O que se viu em Porto Alegre
nesta quarta-feira que passará à história pela sua infâmia não foi um
julgamento. O que se viu ali foi um picadeiro, no qual se sucederam piruetas,
contorcionismos, acrobacias, malabarismos e ilusionismos jurídicos.
Tribunal
Na sala daquele tribunal
rasgou-se em definitivo a Constituição da República e subverteu-se a norma do
direito, pela qual o ônus da prova cabe ao acusador. Chegou-se a afirmar que a
defesa não fora capaz de provar a inocência do acusado, criando-se assim um
precedente perigosíssimo: doravante, não mais caberá ao acusador provar a
acusação, mas qualquer cidadão acusado precisará provar que é inocente.
Não fossem as trágicas
consequências o julgamento de hoje, que consolidam o golpe parlamentar de 2016,
o julgamento teria momentos risíveis. Em alguns momentos do voto do relator, a
impressão é que estávamos numa roda de comadres ou numa mesa de bar repleta de
fofoqueiros, a afirmar que fulano ouviu de sicrano, que falou com beltrano, que
ouviu dizer por outro… Aqueles senhores, para cumprir os seus desígnios com
tanta vilania, desceram a profundidades jamais vistas na escala da vergonha.
Quando sepultamos a democracia,
quando enterramos o estado democrático de direito, o moleiro de Sans-Souci,
vivesse entre nós, saberia que ainda há juízes no Brasil.
O que nos falta é justiça.
*Joan Edesson de Oliveira, é
educador, Mestre em Educação Brasileira pela Universidade Federal do Ceará.
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