domingo, 4 de março de 2018

Política interna ajudou a mudar postura australiana sobre fronteiras com Timor-Leste -- académica

Díli, 04 mar (Lusa) - Uma académica australiana considerou hoje que o anúncio de 2016 dos Trabalhistas australianos de que negociariam uma fronteira marítima permanente com Timor-Leste se chegassem ao Governo pode ter contribuído para Camberra aceitar o novo tratado de fronteiras permanentes.

Kim McGrath referiu que a fraqueza da maioria de apenas um lugar que os Liberais, no Governo, têm no parlamento, pode também ter ajudado à mudança histórica e pouco esperada que permitiu aos dois países acordarem na delimitação da fronteira.

Timor-Leste e a Austrália assinam na terça-feira, em Nova Iorque, um novo tratado de delimitação de fronteiras que coloca a divisão ao longo de uma linha equidistante entre os dois países, postura sempre defendida em Díli, mas que Camberra rejeitava, preferindo defender a sua bacia continental.

O acordo surgiu depois de cerca de um ano de negociações entre os dois países no âmbito de uma Comissão de Conciliação.

Para McGrath, a autora do livro "Atravessar a linha - A História secreta da Austrália no Mar de Timor", essa alteração de posição pode ter sido ainda ajudada pela pressão das petrolíferas, cansadas de "uma indecisão que se arrastava há décadas".

"Mas também não podemos ignorar o facto de a Austrália estar muito sensível aos temas do mar do sul da China. Correndo o risco de ser totalmente hipócrita ao criticar a China por não respeitar a lei internacional e depois fazer exatamente o mesmo no caso do Mar de Timor", afirmou, em entrevista à Lusa.

Daí que quando a Comissão de Conciliação confirma ter jurisdição para o processo, "e para evitar ser comparada à China", a Austrália primeiro tenha aceitado os resultados do processo de conciliação e depois "de forma ainda mais surpreendente" acordado negociar a fronteira marítima.

"Este acordo é muito significativo. Xanana Gusmão e a equipa timorense estiveram numa verdadeira batalha de David contra Golias e conseguiram um acordo essencial para o futuro económico de Timor-Leste", argumentou McGrath.

"Uma das tristes ironias disto é que o Governo australiano errou na sua avaliação do que eram os interesses australianos nesta matéria. Se no passado tivesse acordado numa linha mediana, com Portugal, hoje teria uma democracia estável aqui ao lado", referiu.

Charles Scheiner, da organização timorense La'o Hamutuk - uma das principais defensoras de justiça no Mar de Timor - diz que o grande significado do acordo é que a Austrália "pela primeira vez reconhece verdadeiramente a soberania timorense".

"Durante décadas, a Austrália não reconheceu que Timor era um país soberano e mesmo depois de 2002, quando Timor-Leste se tornou membro da ONU, a Austrália continuou a dizer que não ia fechar a fronteira, saiu de mecanismos de arbitragem e em todos os tratados empurrava um acordo definitivo para o futuro. Nunca aceitaram que este era um país como os mesmos direitos que eles tinham", disse.

"Os cidadãos da austrália parecem saber mais do que o Governo sobre os interesses timorenses e reconhecem o importante que a questão da soberania é para os timorenses. Timor-Leste sacrificou muito para se poder declarar independente", sublinhou.

Mais do que o dinheiro, disse, o importante é a fronteira e o facto de que a Austrália não a reconhecia, levando à criação de um "Movimento Contra a Ocupação do Mar de Timor, que era visto como uma continuação da ocupação indonésia de Timor".

"Ao longo dos últimos 5 anos começou a haver uma mudança na política australiana querendo começar a reconhecer Timor como um igual. Dizem-me que nas primeiras reuniões a comissão funcionou quase como terapia de casal. Falava separadamente com uma parte, e depois iam ter com a outra parte, porque as duas partes não conseguiam falar", disse.

"Pode ser que este assunto se tenha tornado embaraçoso para a Austrália e por isso haja a vontade de o resolver", considerou.

Scheiner lembrou igualmente a importância de um processo que foi político do qual a ONU e a equipa da comissão se devem "sentir orgulhosos", abrindo eventuais precedentes para o futuro.

"É a primeira vez que este processo da Comissão de Conciliação foi usado. Espero que sirva com precedente. Numa era em que a lei internacional está a ser ameaçada, é importante apreciar que a lei internacional tem valor, que há mecanismos que funcionam. Isto é um grande exemplo disso", afirmou.

O novo tratado é assinado na presença do secretário-geral da ONU, António Guterres, na terça-feira, em Nova Iorque.

ASP // VM

Imagens: 1 - Kim McGrath, em Word for Word Festival; 2 - "Atravessar a Linha", livro de McGrath.

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A organização timorense La'o Hamutuk estima que a Austrália "recebeu indevidamente" cerca de cinco mil milhões de dólares de recursos timorenses devido à falta de fronteiras marítimas entre os dois países.

As contas tornam-se significativas porque depois de décadas a insistir que os recursos eram seus, Camberra finalmente aceitou o determinado na Lei do Mar e a definição de uma linha equidistante entre os dois países.

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