Com
o escalar da retórica, a “democracia consensual” que se havia anunciado volta a
dar lugar a uma “democracia beligerante”.
Rui
Graça Feijó* | Público | opinião
Em
finais de 2014, vésperas do anúncio do VI Governo Constitucional que ficaria
conhecido como “Governo de Inclusão Nacional”, o ministro Ágio Pereira, braço
direito de Xanana Gusmão e homem sempre presente nos bastidores da política
timorense, reflectiu publicamente sobre o que se anunciava e que já vinha a
ganhar contornos desde as eleições legislativas de 2012, materializado na
aprovação por unanimidade de sucessivos Orçamentos de Estado: Timor-Leste
estaria a assistir à substituição de uma “democracia beligerante” por uma
“democracia de consenso”. O novo governo foi liderado por Rui Maria de Araújo,
um importante quadro da Fretilin, que aceitou esse encargo “enquanto cidadão” uma
vez que não foi assinado nenhum pacto entre os quatro partidos com assento
parlamentar que passaram a ter quadros seus no governo. Essa “democracia
consensual” sobreviveu dois anos e meio, até à ronda eleitoral de 2017.
No início deste ano, pareciam estar criadas condições para que o entendimento entre os dois principais partidos timorenses — Fretilin e CNRT — tivesse continuidade. Uma sondagem encomendada pela Asia Foundation revelou que 58% dos timorenses entendiam que o país estava a caminhar na direcção certa, e outros tantos declaravam que o comportamento dos líderes políticos na luta de resistência era o principal motivo das suas escolhas. Apenas uma nuvem parecia pairar no horizonte: o Presidente da República de então, Taur Matan Ruak — que muitos acreditam ter tido um papel importante na pacificação das relações entre os partidos parlamentares e na formação do VI Governo —, passou a distanciar-se e mesmo a criticar ferozmente as orientações estratégicas do governo, formou um partido próprio (Partido da Libertação do Povo) e prescindiu de se recandidatar em nome da disputa das eleições legislativas.
No início deste ano, pareciam estar criadas condições para que o entendimento entre os dois principais partidos timorenses — Fretilin e CNRT — tivesse continuidade. Uma sondagem encomendada pela Asia Foundation revelou que 58% dos timorenses entendiam que o país estava a caminhar na direcção certa, e outros tantos declaravam que o comportamento dos líderes políticos na luta de resistência era o principal motivo das suas escolhas. Apenas uma nuvem parecia pairar no horizonte: o Presidente da República de então, Taur Matan Ruak — que muitos acreditam ter tido um papel importante na pacificação das relações entre os partidos parlamentares e na formação do VI Governo —, passou a distanciar-se e mesmo a criticar ferozmente as orientações estratégicas do governo, formou um partido próprio (Partido da Libertação do Povo) e prescindiu de se recandidatar em nome da disputa das eleições legislativas.
Contrariamente
ao que se verificara em 2007 e 2012 e é normal em eleições presidenciais a duas
voltas que permitem aos partidos e aos cidadãos em geral apresentar uma grande
variedade de candidatos para suscitar o “voto do coração” antes de se formarem
coligações mais ou menos formais em torno dos dois mais votados para apelar ao
“voto da razão”, em 2017 houve um entendimento prévio entre Fretilin e CNRT em
torno da figura de Francisco Guterres Lu Olo, presidente do primeiro destes
partidos. Sem surpresa, Lu Olo ganhou folgadamente as eleições de Março,
passando a ser o primeiro Presidente timorense formalmente ligado a um partido
político, uma vez que os três antecessores sempre tinham reivindicado para si o
estatuto de “independentes” sem filiação partidária. Parecia que a continuidade
da fórmula governativa de “inclusão nacional” dera um primeiro passo para se
renovar.
Em
Julho, as eleições legislativas produziram resultados que inicialmente
apontavam no mesmo sentido: a Fretilin averbou uma curtíssima vitória (cerca de
mil votos) sobre o seu parceiro CNTR, ambos ligeiramente abaixo dos 30%. O PD,
parceiro de governo, garantiu cerca de 10%. E o principal partido opositor, o
PLP, quedou-se pelos 12%. Havia ainda um misterioso novo partido, popular entre
a juventude, o KHUNTO, com 6%. Só que havia novidades escondidas...
A
Fretilin reivindicou de imediato para si a escolha do primeiro-ministro
(esquecendo que a formula de “inclusão nacional” havia passado por grande
flexibilidade de todos os envolvidos na escolha do chefe de governo). Sem
surpresa, Taur Matan Ruak declarou que o PLP seria partido de oposição — e ele
próprio não ocuparia o seu lugar de deputado. De seguida, Xanana tomou idêntica
atitude: o CNRT passava à oposição e ele ficaria fora do parlamento.
Lu
Olo procurou ir além das suas competências que o obrigavam a “ouvir” todos os
partidos com assento parlamentar (que normalmente se fizeram representar por
figuras de segunda linha), e chamou ao palácio presidencial, para uma conversa
cara a cara, Mari Alkatiri e Xanana Gusmão. A iniciativa presidencial não
logrou demover Xanana, que não terá encontrado suficiente flexibilidade por
parte de Alkatiri para reeditar um governo à imagem do anterior. O mais que Lu
Olo conseguiu foi ouvir palavras de Xanana no sentido de ser “oposição
construtiva” e de não “obstaculizar o regular funcionamento das instituições”.
Mesmo
assim, Lu Olo pediu a Alkatiri que desenvolvesse esforços para a formação de um
governo por si liderado. A Fretilin conseguiu negociar um acordo com o PD — mas
estes partidos em conjunto controlam apenas 30 dos 65 assentos no Parlamento.
Também o KHUNTO esteve envolvido nessa negociação, não tendo havido
entendimento, aparentemente por discordância sobre a sua representatividade no
governo — mas durante o tempo em que decorreu a negociação, o KHUNTO deu o seu
voto para eleger um militante da Fretilin para a presidência do Parlamento.
Esse era um lugar desejado pelo PLP como condição para uma posição de abertura
na votação do programa do governo. Não o obteve.
Lu
Olo, confiante que um governo minoritário tinha condições para sobreviver com o
seu apoio político, deu posse ao VII Governo Constitucional. Alkatiri ainda
tentou uma manobra: convidar para o seu governo personalidades independentes
(como José Ramos-Horta) e ligadas aos partidos que preferiam o estatuto de
oposicionistas (como Ágio Pereira ou o seu ministro das Finanças, aliado
próximo de Taur). Mas perante a concentração de todos os cargos cimeiros do
Estado (Presidência da República, presidência do Parlamento Nacional e chefia
do governo) em membros destacados da Fretilin, que não chegara sequer aos 30%
de votos nas legislativas, os três partidos oposicionistas entenderam-se para
votar contra o programa do governo e propuseram-se formar um governo
alternativo.
No
momento em que escrevo, Alkatiri está a preparar um segundo programa a
apresentar aos parlamentares. Nada garante que venha a ser aprovado,
prolongando o período de incerteza que actualmente se vive — mas nada impede
que quem acaba de demonstrar a sua força parlamentar e a capacidade de a
qualquer momento derrubar o executivo possa deixar passar o governo minoritário
numa posição de grande fragilidade, que arrasta consigo o Presidente da
República com ele comprometido. O que parece mais certo é que, com o escalar da
retórica (Alkatiri afirmou que “se uns querem dançar no Parlamento, nós
dançaremos na rua”) e com o regresso de uma situação em que há claramente
governo e oposição (mesmo que o Parlamento saia diminuído com a ausência de
importantes lideres políticos, dando a entender que as instituições contam
menos do que as lutas de personalidades), a “democracia consensual” que se
havia anunciado volta a dar lugar a uma “democracia beligerante”. A temperatura
vai alta pelas bandas de Díli — e lamentavelmente a substituição de Presidentes
“independentes” por um Presidente comprometido com um dos lados da refrega em nada
contribui para a fazer baixar.
O
sistema político timorense foi, desde o início, concebido como um sistema de
partilha de poderes. A Fretilin teve uma oportunidade de ouro para gerir esse
sistema — e falhou com estrondo em 2006. Hoje tem nova oportunidade de mostrar
que entendeu a lição do passado. Mas com a concentração nas suas mãos de todos
os cargos chave do sistema, não parece estar a dar mostras de ter interiorizado
o que Mari Alkatiri me referiu a propósito da sua primeira experiência como
primeiro-ministro: “a exclusão política gera conflito”. Oxalá essas suas
palavras ainda ecoem na liderança do seu partido.
*Investigador
em Ciências Sociais; autor de “Dynamics of Democracy in Timor-Leste”
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