sábado, 5 de abril de 2025

Carne de cão em Timor-Leste: cães roubados, mortos e vendidos para consumo

“Uma vez mortos ou quase mortos, os cães são atirados para água a ferver, esfolados e pendurados pela mandíbula num gancho de carne” / Foto: DR

Lourdes do Rêgo | Diligente

Em Timor-Leste, cães são capturados na rua, abatidos e vendidos como RW, um prato tradicional feito com carne de cão. O consumo não é regulado por lei, mas o roubo dos animais enquadra-se como crime. A prática, envolta em tradição, divide a sociedade e levanta questões legais, éticas e de saúde pública.

RW é um prato tradicional feito a partir de carne de cão, cozinhada com uma variedade de especiarias locais. Esta iguaria é particularmente popular em algumas regiões de Timor-Leste, sobretudo durante encontros sociais, festas ou celebrações tradicionais.

Ana Joanita (nome fictício) contou que, ao longo do tempo, passou a obter carne de cão através de pessoas que roubam os animais. Embora prefira não aprofundar o assunto, admite que a venda de RW é um negócio bastante lucrativo, especialmente devido à localização do seu ponto de venda, numa área com muitos consumidores regulares. Além de RW, Ana vende também bebidas alcoólicas, sobretudo a jovens, mantendo este negócio há já vários anos.

“Normalmente, compramos cães a outras pessoas, e quase todos são provenientes de roubo, o que nos permite obter descontos. Depois do processo de preparação, vendemos o RW em pequenas caixas por 2 dólares. Como o nosso local é muito frequentado, vendemos também bebidas alcoólicas. A maioria dos clientes são jovens que vêm para comer RW e beber com os amigos. Outros compram apenas para levar para casa”, explicou.

Um vídeo que circulou nas redes sociais ilustra bem este cenário, mostrando de forma clara como alguns cães são apanhados à força para posterior venda ou abate. O vídeo mostra dois homens a circular de mota a baixa velocidade, até se depararem com um cão. De forma repentina, param a mota e lançam uma corda na direção do animal, que fica preso, apesar de continuar a caminhar. O cão faz um esforço visível para se libertar, mas não consegue. Depois de o capturarem, os dois homens fogem do local. No entanto, é possível ver que duas outras motas os seguem de perto, sem aparente intenção de os perseguir. Nos comentários ao vídeo, muitas pessoas levantam suspeitas de que essas motas possam estar associa das ao mesmo grupo envolvido na captura.

Vazio legal e implicações jurídicas

Em Timor-Leste, após a pesquisa realizada para esta reportagem, não foi possível encontrar qualquer legislação específica que regule o abate, a comercialização ou o consumo de carne de cão. A ausência de enquadramento legal faz com que esta prática se mantenha num vazio jurídico, como se os animais não tivessem qualquer direito ou proteção reconhecida pelo Estado. Esta omissão contrasta com a tendência crescente noutros países asiáticos de debater e legislar sobre o bem-estar animal.

Contudo, em relação ao roubo de cães — frequentemente mencionado por vendedores e ilustrado em vídeos partilhados nas redes sociais — há base legal clara no Código Penal de Timor-Leste. O artigo 251.º define o furto simples como a subtração de um bem móvel alheio com intenção ilegítima de apropriação, sendo punível com pena de prisão até três anos ou multa. A tentativa também é punida. O processo, no entanto, depende de queixa formal da vítima.

Adolfo Soares, investigador jurídico do JSMP (Judicial System Monitoring Program), esclarece: “Atos como roubar um cão e depois vendê-lo a outra pessoa para ser consumido como RW enquadram-se na categoria de furto, conforme estabelecido nos artigos 251.º e 252.º do Código Penal. Estes artigos tratam da apropriação de bens pertencentes a outrem sem autorização, com a intenção de possuir algo que não nos pertence.”

O Código Penal contempla ainda o crime de receptação simples (artigo 271.º), que se refere à aquisição ou receção de bens cuja origem pode ser criminosa, sem verificação da sua legitimidade. A pena vai até dois anos de prisão ou multa. Caso esta prática ocorra de forma repetida ou organizada, aplica-se o artigo 272.º, referente à receptação agravada, com penas entre seis e oito anos de prisão.

“Estes artigos lembram-nos da importância de verificar a origem dos bens que compramos ou recebemos. Caso contrário, podemos ser responsabilizados nos termos da lei. A receptação não se aplica apenas a bens furtados, mas também a outras situações semelhantes”, acrescentou Adolfo Soares.

O ciclo do consumo: do abate ao prato

O processo de preparação começa com a morte do cão, geralmente por espancamento ou esfaqueamento. Uma vez confirmado o óbito, o animal é queimado para remoção da pele. De seguida, abre-se e limpa-se o interior. Depois, a carne é cozinhada com várias especiarias típicas, que conferem sabores intensos, picantes e salgados. Por fim, o prato é embalado em pequenas caixas transparentes e colocado à venda.

Oldenito Maia, natural do município de Ermera, afirmou que não consegue descrever o sabor da carne de cão em palavras, mas que, se pudesse escolher, preferiria este tipo de carne a qualquer outra. “O sabor do RW é único. Prefiro este prato porque é mesmo saboroso. Não sei explicar por palavras”, disse.

Ainda assim, por vezes sente pena dos cães usados para alimentação: “Sinto pena quando penso que são cães, mas depois, quando já são comida, continuo a comer. Acontece muitas vezes — os cães criados em casa acabam por ser utilizados para RW. Durante a preparação da comida, não tenho coragem de olhar”, confessou.

Felisberto Monteiro, do município de Viqueque, acrescenta que o consumo de carne de cão é mais saboroso quando acompanhado de álcool. “Para nós, não é proibido. Os meus irmãos é que não comem porque têm medo. Eu não vejo problema em comer carne de cão, desde que esteja bem cozinhada, é como qualquer outra carne.”

Apesar de, em algumas zonas de Timor-Leste, os cães serem vistos como alimento, noutras são tratados como membros da família, companheiros de brincadeiras, animais de guarda ou simples presenças afetuosas no quotidiano das pessoas. Esta ligação emocional faz com que, para muitas famílias, a ideia de consumir carne de cão seja impensável e até traumática. A crescente urbanização, a influência dos media e o contacto com outras culturas — onde os cães são reconhecidos como animais de estimação e protegidos por lei — têm contribuído para uma mudança de perceção, sobretudo entre as gerações mais jovens.

Maria do Céu, de 29 anos, ama animais, especialmente cães, afirmou que não tem qualquer proibição por parte de ninguém, mas que ela própria decidiu não consumir carne de cão. Isto porque sente uma grande tristeza sempre que vê alguém matar ou maltratar um cão, mesmo que não seja dela.

“Fico extremamente triste ao ver pessoas a baterem em cães, especialmente quando alguém tenta roubar. E ainda mais ao ver alguém matar um cão – sinto como se também morresse e chorasse, mesmo que o cão não seja meu, porque sei que os cães são animais extremamente leais aos seus donos. Momentos tristes como estes fazem-me lembrar do meu próprio cão”, disse ela.

Rogério da Costa, de 35 anos, natural de Soibada, partilha a razão pela qual nunca comeu carne de cão. Para os seus pais, o cão era um animal com um profundo valor simbólico e afetivo. “Quando os nossos cães morriam, os meus pais nunca os comiam, nem os descartavam. Enterrávamo-los. Para eles, o cão era como um amigo — alguém que os acompanhava em qualquer lado, especialmente quando iam para o quintal ou para lugares mais distantes. Não era apenas companhia, era também guia. Quando os meus pais se atrasavam e o cão regressava sozinho, sentíamo-nos aliviados: sabíamos que eles estavam a caminho”, recorda Rogério. “Por tudo isso, decidi nunca consumir carne de cão.”

Um episódio particularmente triste marcou a sua família há alguns meses. Um cão mais velho atacou e matou um cão mais pequeno. Emocionalmente abalado, o cunhado de Rogério decidiu matar o cão mais velho: colocou-o num saco e bateu-lhe até à morte, para depois o cozinhar. “Foi um momento horrível. Eu queria ajudar o animal, mas já era tarde demais. Os meus pais queriam enterrar o cão velho, como era hábito, mas o meu cunhado insistiu em cozinhá-lo. No fim, ninguém o quis comer. Foi tudo muito triste”, recorda, visivelmente comovido.

Implicações sociais e culturais

Apesar da sua popularidade em algumas zonas, o consumo de carne de cão é culturalmente proibido em certas comunidades e casas sagradas, especialmente para as mulheres. Isto demonstra que há variações no consumo consoante o género e as crenças locais.

Nina Brígida, do município de Lautém, contou que nunca provou carne de cão, porque a sua casa sagrada impõe essa proibição: “Desde pequena nunca provei carne de cão. Os meus avós sempre disseram que mulheres e homens não devem comê-la. Se o fizermos, o cabelo pode cair todo e aparecem feridas pequenas”, afirmou.

Adélia Amaral, também de Viqueque, apesar da proibição da sua casa sagrada, decidiu experimentar carne de cão por curiosidade. Teve, no entanto, problemas de saúde. “Eu sabia da proibição, que se aplica apenas às mulheres, mas como não conhecia a razão e estava curiosa, comi. A seguir, a minha barriga inchou como se estivesse grávida e fiquei doente durante três semanas. Tratei-me com remédios tradicionais e recuperei.”

Mais tarde, voltou a consumir carne de cão, acreditando que a doença anterior não estaria relacionada com a carne, mas os sintomas repetiram-se. “Pensei que fosse outra coisa no meu corpo, por isso, fundamental que a população esteja informada e atenta a estes perigos. Em caso de suspeita, os casos devem ser imediatamente reportados à DNV.

“O consumo de carne de cão representa um risco elevado para a saúde. Muitas vezes, não se sabe se o cão estava infetado com raiva. O contacto com saliva ou sangue contaminado, especialmente durante o abate ou a preparação, pode levar à transmissão da doença e pôr em risco a vida humana. 

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