sábado, 27 de abril de 2019

Vítima relata abusos sexuais cometidos por padre norte-americano em Timor-Leste


Díli, 25 abr 2019 (Lusa) -- Uma organização timorense divulgou hoje um depoimento de uma jovem que diz ter sido uma de várias crianças vítimas de abuso sexual por um ex-padre norte-americano no enclave de Oecusse, em Timor-Leste.

O depoimento, divulgado pela organização Fokupers -- que entre outras atividades apoia vítimas de abuso sexual -- confirma a existência de várias vítimas de Richard Daschbach, que foi demitido do sacerdócio pelo Vaticano, mas continua livre e a viver na mesma comunidade.

"Eu não sabia nada. E não perguntei nada. Fui com as outras. Naquela vez estávamos três meninas no quarto. E foi quando as coisas más aconteceram. E fiquei surpreendida que as meninas ficavam caladas. O pai nem precisava de nos ameaçar. Ficávamos caladas. Ninguém falava de nada", contou a jovem no depoimento divulgado hoje pela organização.

A jovem explica que o então padre -- a quem chama 'pai' - nunca dizia por palavras o que queria, mas sim por gestos, incluindo masturbação, sexo oral e toques, agarrando as meninas para mostrar o que queria que fizessem.

"E tínhamos que fazer várias vezes. Pegava nas nossas mãos e punha-os no corpo e queria que o agarrássemos" nas suas partes privadas, disse a jovem.  

"Enquanto criança eu pensava que as partes privadas do pai não deviam estar na minha boca", disse.

A vítima, que não é identificada "para sua proteção", explica que ela e outras crianças do orfanato Top Honis, em Oecusse -- gerido por Daschbach em nome da congregação Societas Verbi Divini (SVD ou Sociedade da Palavra Divina), a quem o norte-americano confessou os seus crimes.

O depoimento confirma que os casos de abusos eram conhecidos na comunidade onde, apesar disso, o padre "era muito respeitado".

A jovem explica que foi viver para o orfanato/centro de acolhimento, localizado em Kutete, porque "via as crianças bem vestidas e com comida", tendo a sua família aceitado porque assim "sobrava mais arroz" para o resto dos seus membros.

"Quando lá cheguei estava contente. Passei lá bons momentos da minha vida. Tenho lá amigas, pude brincar. E há pessoas boas lá a trabalhar. Eu todos os dias acordava pronta para ir para a escola, e ajudava no jardim", contou a jovem.

"E sabia que não precisa de andar sempre a pensar na comida, porque havia lá", disse.

Depois, porém, "tudo começou a mudar com as pessoas a dizer que tinha que me deitar com o pai", conta, explicando que a primeira vez que foi abusava foi "durante a sesta".

Um depoimento em que fala do "medo e respeito" que tinham ao padre, mas em que, especialmente, "pelo medo dele, faziam o que ele queria", com muitas crianças a serem levadas para os quartos diariamente.

"Todas as meninas. Todos os dias, as mesmas coisas", explicou.

"Acho que nunca estava sozinho no quarto", contou, referindo que quando as meninas cresciam o abuso parava, mas que "todas as meninas pequenas tinham que se deitar com o padre".

A jovem diz que tinha oito anos na altura dos abusos, explica que nunca falou por medo e que era difícil falar do caso porque Daschbackh era "considerado o pai", o diretor do orfanato que "dava comida, roupa e escola".

"Quando o abuso começou sentia que era porque era nosso dever fazer o que ele queria. Ele tinha poder e eu tinha medo", contou a vítima.

"Eu sei que é difícil para as pessoas acreditarem que ele não fazia bem às crianças porque o viam como herói, mas as pessoas devem saber que ele não fazia bem. Ele é mau, é o diabo", disse.

A vítima diz que há pressão dentro da comunidade e até entre algumas pessoas do centro para que as outras vítimas não falem, com "ameaças".

Mostra-se satisfeita que o Vaticano o tenha afastado do sacerdócio, mas quer justiça.

Daschbach, 82 anos, natural de Pittsburg, nos Estados Unidos, vive em Timor-Leste desde 1966 e, em 1992, estabeleceu duas casas de abrigo de crianças, a TopuHonis, em dois espaços no enclave de Oecusse.

O caso chegou a conhecimento de responsáveis timorenses há quase um ano, mas só foi tornado público, pelo jornal Tempo Timor, em fevereiro.

Apesar de Daschbach ter admitido perante várias pessoas a autoria dos crimes continua a viver em liberdade em Oecusse, não tendo sido ainda formalmente acusado pelo sistema judicial timorense.

ASP // JPS

Sem comentários: