domingo, 15 de janeiro de 2017

UMA VISÃO COMPLEXA E MULTIDIMENSIONAL DA UNIVERSIDADE!



Há uns dias, segundo o «Jornal Nacional», a principal figura política de Timor-Leste, S.E. Ministro do Planeamento Estratégico, Kay Rala Xanana Gusmão, teceu sérias críticas à qualidade da oferta formativa das Instituições de Ensino Superior do nosso País

Enquanto especialista em educação interpreto esta chamada de atenção como algo de muito positivo e que deve merecer, sem preconceitos, a melhor atenção de governantes, docentes, reitores, estudantes e de todas as forças vivas económicas, culturais e religiosas da nossa sociedade, por uma razão muito simples, este problema é de ordem conjuntural e estrutural.

Efectivamente, quando a qualidade da oferta formativa das nossas Instituições de Ensino Superior é questionada publicamente por um alto dirigente político, note-se, supervisor do planeamento estratégico nacional, significa que a situação está muito grave e o Estado timorense constatou que muitos dos nossos diplomados não possuem as competências e os conhecimentos científicos necessários para responderem com eficácia aos desafios da sociedade e ao desenvolvimento económico do País.

Quando estamos a pensar na qualidade do ensino superior deve colocar-se de imediato o problema da perspectiva e da significação do próprio conceito. Qualquer cidadão que não seja profissional da educação, compreensivelmente, poderá ter uma visão menos adequada sobre a qualidade de uma universidade, com análises redutoras, muitas vezes confinadas à problemática da competência dos docentes, contudo, há aspectos fundamentais que não podem ser descurados em qualquer processo de análise da qualidade do ensino superior.

Para além da qualidade imprescindível do corpo docente, há outras dimensões a ponderar que se entrecruzam, internas e externas ao sistema, e quando falamos em qualidade, principalmente se o que está em causa é a educação, temos que questionar, também, que tipo de qualidade nos interessa.

Mais do que isso, temos que saber se essa qualidade irá ser usufruída por todos os cidadãos timorenses, das zonas rurais e das zonas urbanas, e vai fazer deles cidadãos competentes, com pensamento crítico, com capacidade científica e técnica, com valores e princípios de ordem cultural, social e ética, para que possam de forma digna e competente serem úteis a uma sociedade do conhecimento verdadeiramente justa, democrática e solidária.

Em contexto educacional, ao abordarmos a problemática da qualidade, para além da importância das metodologias de ensino-aprendizagem, temos que considerar os recursos didácticos, a oferta dos serviços académicos, o bom funcionamento das instalações, a pertinência das políticas educativas, o currículo, ou seja, a mudança que devemos defender para o nosso ensino superior em Timor-Leste terá que depender de múltiplas dimensões, e do grau de qualidade de cada uma dessas dimensões, pelo que, é imperioso assumirmos que a abordagem à universidade deve ser complexa e multidimensional.

Em contexto de universidade, seguindo a linha de raciocínio de Zabalza (2007), devemos admitir que existem múltiplas dimensões que se cruzam entre si, em dois espaços, um interno, e outro externo.

Ao nível do espaço interno, a mudança qualitativa de qualquer universidade só acontecerá se houver um aproveitamento de sinergias centrado nas «Competências do Professor Universitário e dos Funcionários não docentes», na «Instituição/Comunidade de Formação», na «Inovação Curricular e Pedagógica» e nos «Estudantes», para citar apenas estas dimensões fundamentais que exercem influência directa sobre a qualidade da «Docência».

Por outro lado, em entrosamento com o espaço externo à universidade devemos considerar, sempre, as dimensões da «Ciência, Investigação e Cultura», do «Mundo do Trabalho e Sociedade», das «Políticas de Educação Superior» e da «Avaliação Institucional e Acreditação».

Políticas de educação superior e avaliação institucional e acreditação

No pressuposto de que é válida esta visão complexa e multidimensional da universidade, começo por destacar a vertente das “Políticas de Educação Superior”, pois, é indiscutível, o sistema educativo de qualquer País, composto por um conjunto de estruturas e processos necessários a garantir o sucesso educativo, também é constituído por inúmeros actores, e alguns deles são os protagonistas da concepção das políticas educativas e dos normativos que supostamente, mas nem sempre isso acontece, devem garantir o bom funcionamento da máquina educativa, com eficácia e eficiência.

As políticas de educação superior só serão válidas se reflectirem uma linha orientadora que se baseie no estado actual do desenvolvimento da nossa educação superior e transporte consigo uma visão, uma missão, objectivos e metas que se enquadrem num projecto social globalizante que tenha como fim último o humanismo, a solidariedade e a justiça social.

A esta dimensão externa que apelidei de “Políticas de Educação Superior”, deveremos acrescentar a “Avaliação Institucional e Acreditação”, uma vertente também do espaço externo, regulada pelo Estado, por vezes de forma menos correcta, em especial, como já referi, em virtude do conceito de qualidade ser polissémico, com várias interpretações, e dinâmico, o que torna difícil a comunicação entre os diferentes actores envolvidos no processo de avaliação institucional e acreditação.

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A diversidade de factores que integram qualquer sociedade, os contextos geográficos distintos, os sectores de formação diferenciados, as expectativas municipais e regionais, os actores e as suas idiossincrasias, a importância do levantamento de necessidades de formação, entre outras variáveis, culturais, sociais e económicas, são questões que também devem merecer especial atenção do Estado e das Instituições de Ensino Superior.

Mundo do Trabalho e Sociedade

A dimensão da ética terá que ser uma imagem de marca das nossas Instituições de Ensino Superior para que os nossos diplomados, em contexto de sociedade e mercado de trabalho, sejam competentes em termos científicos e técnicos, e detenham igualmente competências de terceiro nível, como a honestidade intelectual, o sentido de justiça, o respeito pelo outro, num cenário social que seja caracterizado pelo humanismo, pela solidariedade e pela justiça social.

Ainda no âmbito do «Mundo do Trabalho e Sociedade» é preciso compreendermos que as nossas universidades deverão tomar em devida atenção a importância da coerência entre a oferta e a procura de quadros superiores. Neste aspecto, o Estado deverá ter um papel chave no processo de levantamento de necessidades de formação. Esta preocupação parece-me crucial porque o investimento aplicado em educação só fará sentido e terá muito a ganhar se tiver como suporte um sistema eficaz de levantamento de necessidades de formação que garanta a articulação entre a oferta e a procura de recursos humanos, obviamente, em termos de perspectiva futura.

Portanto, este é o meu alerta, se não houver articulação entre o governo e as instituições de ensino superior no que diz respeito ao levantamento de necessidades de formação, para além de gastos financeiros desnecessários, corremos o sério risco de caminharmos para o desemprego estrutural. Havendo a possibilidade de surgimento de um cenário hipotético desta natureza, parece-me de todo o interesse haver iniciativas conducentes à organização de um sistema de levantamento de necessidades de formação ao nível sectorial e municipal com o envolvimento crescente das empresas e de outros empregadores, e que permita garantir a coerência entre a oferta e a procura de recursos humanos.

Repare-se que esta questão do levantamento de necessidades de formação deve merecer a atenção nacional e um debate sério e profundo nas áreas do ensino e da formação profissional, pois, como alguém já afirmou, esta questão deve ser vista como uma estratégia, por um lado, contra o desemprego, por outra parte, para a promoção do emprego.

Ciência, investigação e cultura

Uma outra dimensão, a «Ciência, Investigação e Cultura», reveste-se de particular importância porque o Estado deve apoiar sem reservas a investigação, a cultura e a inovação tecnológica, mesmo que haja necessidade prévia de se discutir os critérios de uma política de ciência.

Neste sentido, entendo que o Estado deve ter, cada vez mais, um papel activo no sentido de criar expectativas positivas às instituições de ensino superior sobre este domínio. Estou a fazer uma afirmação que para muitos parece óbvia, contudo, apesar de estarmos a referir-nos à importância do investimento do Estado na ciência e na cultura, este dossier encontra-se quase sempre sujeito às restrições do poder e às incertezas da política mesmo sabendo nós que compete ao Estado respeitar a atitude da comunidade científica.

De forma célere não posso deixar de discutir as restantes quatro dimensões mencionadas e que giram em torno da qualidade e do desenvolvimento da «Docência» e que são a «Instituição», os «Estudantes», a «Inovação curricular e pedagógica» e os «Professores e Funcionários não Docentes» que garantem os serviços e o funcionamento da Instituição no seu todo.

A instituição, os professores e outros funcionários não docentes, os estudantes e a inovação curricular e pedagógica

Em muitos países, a perspectiva burocrática sobre a qualidade da docência coloca em relevo, quase sempre, aspectos como o cumprimento (prazos, deveres do trabalhador, horários), os resultados (estatísticas sobre o sucesso escolar) e as questões económicas (quanto custa o aluno, etc.), para citar apenas estes exemplos. Obviamente, esta perspectiva burocrática também deve ser considerada, mas só esta óptica é claramente insuficiente para nos pronunciarmos sobre a qualidade da docência.

Uma visão mais profissional em relação à qualidade da docência no ensino superior, muito provavelmente, já incluiria elementos que passam despercebidos ao cidadão comum, como a formação contínua e o desenvolvimento profissional do professor e de outros funcionários, o clima na sala de aula, as competências de liderança da equipa que gere a instituição, etc., portanto, em definitivo, por aqui se pode depreender, a qualidade da docência no ensino superior pode ser abordada por diferentes perspectivas.

A inovação curricular e a sua flexibilidade também têm toda a lógica de ser e fundamenta-se, por um lado, pela própria maleabilidade do mercado de trabalho e das profissões na medida em que estas são cada vez mais diversificadas, por outro lado, pelo facto dos estudantes do ensino superior serem pessoas adultas e deverem ter o direito de optar entre uns e outros conhecimentos. Coloco em relevo este aspecto porque, infelizmente, salvo melhor opinião, com frequência, os planos de estudo são normalmente concebidos com base nos critérios e interesses dos próprios docentes, em detrimento dos estudantes e do País.

A importância da inovação curricular justifica-se porque há necessidade de se acentuar o carácter formativo dos planos de estudo, actualizá-los (mudança dos nomes das disciplinas, revisão dos conteúdos, etc.) e reduzir a carga horária, pois, a par de muitos estudiosos, defendo a tese de que os estudantes aprendem mais estudando por eles mesmos do que estando largas horas dentro de uma sala de aula.

Aliás, em muitos países, há orientações para que as instituições do ensino superior não tenham mais do que seis disciplinas a funcionarem simultaneamente, e para que as horas lectivas ocupem 70%, sendo as restantes para horas de estudo e trabalho autónomo do estudante.

Por tudo o que acabei de expor, a crítica sobre o estado de saúde do ensino superior em Timor-Leste veiculada por S. E. Kay Rala Xanana Gusmão parece-me crucial e muito pertinente, pelo que, recomendo que se faça um esforço para que todas as IES do País (pública e privadas) tomem medidas e acções para conhecerem os estudantes, as suas preocupações e expectativas, para podermos facultar à comunidade académica, à sociedade civil e aos decisores políticos um conhecimento sistemático e actualizado sobre a nossa realidade académica e assegurar a funcionalidade dos serviços de apoio e a sua qualidade através de boas práticas, tendo sempre presente a visão complexa e multidimensional da universidade.


*Publicado no Jornal Tornado em duas partes, em M. AZANCOT DE MENEZES – inclui parceria com PÁGINA GLOBAL

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