Lisboa,
14 jan (Lusa) - Trinta anos depois de estudar os discursos de Salazar, que
traduzem o desejo de uma nação de figura maternal a sonhar por um império, as
conclusões do investigador Moisés de Lemos Martins mostram um imaginário que
permanece atual.
Por
se manter atual, a editora Afrontamento publicou a 2.ª edição do livro "O
Olho de Deus no Discurso Salazarista", que reproduz a tese de doutoramento
defendida por Moisés de Lemos Martins na Universidade de Ciências Humanas de
Estrasburgo, em 1984.
O
que o agora professor catedrático da Universidade do Minho fez foi estudar os
discursos de Salazar, para tentar compreender a questão: por que razão o regime
salazarista durou tanto tempo?
A
partir da ideia de que para o compreender não se poderia limitar a interrogar
as práticas antidemocráticas e a natureza ideológica de Salazar, Moisés de
Lemos Martins decidiu interrogar o "imaginário salazarista", ou seja,
tentar perceber, através do seu discurso, que sonho tinha para Portugal.
A
conclusão a que chegou foi que Salazar tinha "uma visão de esplendor"
para o país, uma "ideia grandiosa", "um sonho megalómano",
um Portugal que vive modestamente, gerindo bem os seus recursos, mas que
simultaneamente é um império que vai "do Minho a Timor, e se mais mundos
houvera", explicou à Lusa.
No
entanto, para chegar aqui, Moisés de Lemos Martins isolou "duas figuras
maiores" do imaginário salazarista, que eram recorrentes no seu discurso:
uma é a da "boa dona de casa" e a outra é a do
"navegador-guerreiro das caravelas".
A
dona de casa representa uma figura maternal, com a qual Salazar se identificou
e que foi apresentada como modelo aos portugueses.
"Viver
modestamente, mas saber bem gerir os pequenos recursos do país e as suas
poupanças, é nisto que consiste a boa dona de casa e nesta figura podemos ver a
saudade de um tempo medieval e o sonho de um país rural, a concórdia de um país
rural, este era o modelo para o país", disse o investigador.
A
outra figura do imaginário do Estado Novo é "o 'navegador-guerreiro das
caravelas' ou então, sem mais, 'as caravelas', que remetem para o sebastianismo
salazarista, que exaltam o império de um país do Minho a Timor".
Moisés
de Lemos Martins destaca o paradoxo existente entre estas duas figuras: "a
pequena casa lusitana, um país rural de fracos recursos, que todavia sonhava
com o império e não podia dispensar o império, e por isso é que houve mais
tarde a guerra colonial".
A
"normalidade" que Salazar procurava era a de um Estado Novo
"como salvação da nação, tornando-a una, regenerada e verdadeira", contra
o "anticristo" ou "as plantas exóticas importadas",
formulações de Salazar para se referir à democracia e às instituições
democráticas.
Moisés
de Lemos Martins tomou o discurso salazarista como "uma espécie de
biopolítica", uma política que se exerce sobre o corpo de uma nação, sobre
a sua memória, o seu desejo, a sua vontade e o seu olhar.
Este
discurso impôs-se à nação portuguesa através da ideia de que o regime político
resulta da ordem natural das coisas -- e não de um combate de lutas sociais e
políticas -- bastando, para tal, que o país vivesse habitualmente.
A
imposição deste "pseudonaturalismo", como lhe chamou Moisés de Lemos
Martins, contou com o apoio do secretariado da propaganda nacional, "que
dava a ver o que era preciso conhecer e o que era preciso acreditar".
Salazar
recorreu ainda a um truque facilitador da resignação do povo, funcionando como
"um parafuso que verruma lentamente a madeira -- fazendo força lenta --
sem a ferir, contrariamente ao fascismo e ao nazismo que incitavam a
nação".
"O
regime salazarista sonhava com a devolução da saúde à nação portuguesa que
estava doente pela febre introduzida pela Primeira República, mas sem fazer
subir a temperatura, sem injeções fortes que poderiam incitar a nação",
disse o investigador explicando que estas eram mesmo as "metáforas
curiosas" usadas por Salazar.
Na
opinião de Moisés de Lemos Martins, este imaginário salazarista permanece no
imaginário contemporâneo, através das ideias de portugalidade e lusofonia, na
medida em que a primeira converte a história em eternidade, em natureza da
nação portuguesa, e a segunda porque é usada muitas vezes numa perspetiva
"lusocêntrica", que mais não é do que metamorfosear o sonho
salazarista.
AL
// TDI
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