sábado, 23 de maio de 2015

Com parcerias na América Latina, China desloca 'nova guerra fria' para comércio


Vanessa Martina Silva, São Paulo

Em visita a Brasília, premiê chinês assinou acordos de US$ 53 bilhões; entre projetos está a construção de uma ferrovia unindo o Rio de Janeiro ao Peru

Com investimentos da ordem de US$ 53 bilhões no Brasil, o primeiro-ministro chinês, Li Keqiang, em visita a Brasília nesta terça-feira (19/05), anunciou uma série de parcerias, como a compra de aviões da Embraer e diversos acordos nas áreas de agricultura, aeronáutica, energia, transporte, estradas, portos e siderurgia. Entre as obras mais imponentes está o projeto de construção de uma ferrovia ligando o Rio de Janeiro ao Peru, o que oferecerá ao Brasil uma saída ao oceano Pacífico.

Para discutir os efeitos da aproximação entre Brasília e Pequim, Opera Mundi conversou com Elias Khalil Jabbour, pesquisador do padrão asiático de desenvolvimento, autor de diversos livros sobre a China e professor-adjunto da UERJ (Universidade Estadual do Rio de Janeiro). Em sua avaliação, ao se aproximar e investir na América Latina, a China tem como objetivo “enfrentar o inimigo estratégico, que são os Estados Unidos. Há uma guerra entre o capitalismo e o socialismo no âmbito mundial. A China consegue hoje o que a URSS (União das Repúblicas Socialistas Soviéticas) não conseguiu fazer e transfere do campo militar para o comercial a nova guerra fria”.

De fato, a China tem se aproximado não só de países como Venezuela, Argentina e agora o Brasil, mas também tem buscado uma cooperação maior com toda a região, como foi observado em janeiro, durante o fórum Celac (Comunidade dos Estados Latino-Americanos e Caribenhos)-China, quando o país asiático se comprometeu a destinar cerca de US$ 250 bilhões para projetos de infraestrutura no continente nos próximos 10 anos.

Jabbour ressalta que a China atua de forma diferente de outros atores globais, como o “FMI ou o Banco Mundial, que condicionam os financiamentos à política econômica, ou intromissões na política interna dos países que recebem os investimentos”. Assim, “ao comparar, a forma de inversão da China no mundo é mais interessante para o Brasil”, ressalta, comparando a inserção chinesa à dos grandes credores mundiais.

Neste sentido, o premiê afirmou em sua passagem em Brasília que “a recuperação econômica do mundo tem muito a ver com o aumento da capacidade produtiva, e para participar desse processo é necessário acelerar a cooperação para a industrialização na América Latina".

A questão, na visão do autor do livro China hoje: projeto nacional, desenvolvimento e socialismo de mercado (Anita Garibaldi - R$ 39), passa pelo fato de que os chineses podem ter intenção de ajudar a industrializar a América Latina, “mas é preciso ver se existem parâmetros estratégicos nacionais na Venezuela, ou Brasil, por exemplo, ou seja, se existe um nível de sofisticação do pensamento estratégico para que isso ocorra”.

Commodities e exportação

De acordo com o premiê, a China está disposta a cooperar com tecnologia, financiamento e execução de obras de infraestrutura, assim como a capacitação de mão de obra especializada.

O ponto é questionado pelo professor da UERJ, uma vez que nos acordos firmados com o Brasil “as capacidades produtivas não serão necessariamente brasileiras. Eles entram com o capital, mas também com mão de obra. Onde estarão os efeitos multiplicadores desse efeito? Acho que na China”, afirma. Além disso, eles também têm necessidade de exportar o excedente de capitais.

É neste sentido que a construção da ferrovia transoceânica ligando o Atlântico e o Pacífico, passando pelo interior do Brasil, Amazônia e Andes até chegar à costa do Peru, é de interesse mútuo, afirma Jabbour. Isso porque a exportação de commodities, como ferro e soja, terá custo reduzido, mas a China poderá aquecer sua indústria do aço: “farão ferrovias, trilhos, vagões, tudo usando a capacidade produtiva da China”, comenta o especialista.

Somado a isso, analistas passaram a apontar para o risco de ocorrer uma desnacionalização das empresas brasileiras e a consequente desindustrialização, fruto da compra de ativos por parte dos chineses — nesta terça o BoCom (Banco de Comunicações da China) comprou o brasileiro BBM, por exemplo. Quanto à questão, Jabbour aponta que “a desindustrialização e desnacionalização já estão acontecendo há muito tempo [no Brasil]. Esse processo começou há pelo menos 25 anos. Isso hoje pode ser mais um capítulo, a longo prazo”, observa.

Desenvolvimento estratégico

Para ele, com a liderança do Brasil deveria ocorrer uma “transferência do processo produtivo da China para a região, ou seja, uma transferência da unidade produtiva para a América Latina”.

A ocidentalização do capital chinês foi, na avaliação do entrevistado, fundamental para sustentar politicamente os governos “bolivarianos” da América Latina, que “são cada vez mais dependentes do capital chinês. Há, assim, um casamento entre política e economia que muitas vezes não é levado em conta e foi uma alternativa encontrada ao mercado norte-americano e europeu”.

No entanto, na avaliação de Jabbour, o ponto central é que “não existe, no Brasil ou nos demais países da América Latina — à exceção de Cuba — uma estratégia capaz de acompanhar a chinesa. O que temos no Brasil são interesses imediatos diante de uma crise interna”, conclui.

Opera Mundi – Foto Efe

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