Uma
“internacional” do cristianismo, pela paz e contra o culto do deus dinheiro
Claudio
Bernabucci – Carta Capital
A recente
missão internacional do papa Francisco, antes dos cinco dias dedicados
inteiramente ao México (de 12 a 17 de fevereiro), teve início com uma escala
estratégica em Cuba. Ali, depois de mil anos de separação, os
líderes da Igreja Católica e da Ortodoxa de Moscou se encontraram pela primeira
vez na história.
Preparado
em silêncio, mas com trabalho diplomático delicadíssimo, o encontro entre
Francisco e o patriarca de todas as Rússias, Kyril, foi acompanhado por muitas
tensões, provenientes dos setores mais radicais de ambos os lados: de um, os
católicos ucranianos, de outro, os ultras da ortodoxia separatista russa, que
consideram qualquer diálogo com Roma uma traição da própria doutrina. Mas a
vontade ecumênica de Francisco foi resoluta e rompeu qualquer resistência interna:
“As pontes duram e ajudam a paz. Os muros não: parecem defender-nos, mas, ao
contrário, somente separam”, comentou a respeito nas semanas passadas. Kyril
fez o mesmo.
Visto
que o encontro visava a superação das antigas rupturas, era desejo dos russos
que não se realizasse na Europa, o continente das divisões entre os cristãos. A
escolha caiu em Havana, que tem boas relações seja com Moscou, seja com o
Vaticano, além de ser caminho para a aeronave pontifícia que se dirigia ao
México.
É
a segunda vez em poucos meses que a ilha recebe o papa. Francisco, artífice do
degelo entre Cuba e os EUA, já parou em Havana em setembro de 2015, antes de
seguir para Washington. Para a nação caribenha, ser promovida a território
neutro no diálogo inter-religioso, depois de uma longa história de alinhamento
ideo-lógico e marginalidade política, representa grande prestígio e a coloca de
novo no centro da atenção mundial. Todas razões, estas, para reservar ao
pontífice argentino a mais calorosa das recepções.
As
preliminares do encontro com o patriarca deram-se em italiano, que é língua
comum, depois Francisco continuou em espanhol. “Finalmente, somos hermanos”,
começou. E a palavra “irmão” foi repetida várias vezes no curso do dia. Após
duas horas, o histórico encontro concluiu-se com o tríplice beijo, na tradição
russa, acompanhado por um abraço em estilo latino. Era o primeiro depois do
cisma de 1054 e do nascimento, em 1589, do Patriarcado de Moscou, em ruptura
com os gregos ortodoxos de Constantinopla.
Além
do valor simbólico do reencontro entre cristãos separados, a reunião
concluiu-se com a assinatura de um documento comum, fruto de compromisso entre
as partes, que, como era de se prever, já suscitou polêmicas entre os
ucranianos, que ali enxergaram concessões excessivas à igreja russa. Tais
questões de retaguarda pouco influíram na vontade estratégica do pontífice,
que, com seu estilo direto e informal, surpreendeu os jornalistas durante o voo
de Cuba para o México: “Um programa de atividades conjuntas faz mais bem à
unidade entre as igrejas do que estudar teologia e o resto (...) porque talvez
chegue o Senhor e nós estejamos ainda lá, estudando...”.
O
encontro com Kyril na semana passada responde também a algumas urgências desta
fase política, em que as comunidades cristãs do Oriente Médio são ameaçadas e
até massacradas pelo terrorismo. Por certo, é convicção comum do papa e do
patriarca que o diálogo inter-religioso constitui uma barreira para qualquer
tentativa de ressuscitar guerras religiosas, como a que o Califado procura
criar entre o mundo islâmico e o Ocidente.
No
caminho ecumênico empreendido por Francisco, a conciliação com a igreja russa,
filha de uma escolha nacionalista dos antigos czares, de todo modo a mais
relevante entre as várias vertentes da ortodoxia, representa uma etapa
fundamental no processo de união de todos os cristãos separados.
Vale
lembrar que no próximo 31 de outubro o papa encontrará os representantes da
Igreja Luterana para celebrar a paz depois de 500 anos de guerras de religião.
Além disso, é notícia das últimas horas que, enquanto o papa estava voando de
volta para Roma, uma delegação pontifícia visitava a universidade Al-Azhar do
Cairo, a maior instituição religiosa do islamismo sunita, cujas relações
estavam interrompidas desde 2006, época de Ratzinger. Essa missão eclesiástica
visa a realizar, em particular, um encontro em Roma entre Francisco e o grande
imã, Ahmed al-Tayeb.
Existe
um fio vermelho entre as iniciativas citadas acima e as aberturas de Francisco
para a China, o renovado apelo para a negociação na Síria ou suas ásperas
críticas aos americanos e europeus pelas desastrosas escolhas do passado
no Oriente Médio. Não se trata de iniciativas
avulsas, mas de uma ação diplomática internacional sustentada por um robusto
pensamento geopolítico.
Poderíamos
defini-la como a diplomacia da misericórdia, e não só pela coincidência com o
Ano Santo. O papa Bergoglio não realiza só encontros internacionais de grande
significado simbólico, mas está ativando desde o início de seu pontificado uma
ação silenciosa de negociações que já conheceram os primeiros sucessos rumo à
solução de alguns conflitos e à pacificação mundial. Sua doutrina diplomática,
proposta a todos os homens de boa vontade mas em particular ao Ocidente, está
baseada na firme ideia de abater todos os muros, ideológicos e religiosos, para
construir pontes de diálogo e permeabilizar as fronteiras.
Enquanto
a globalização econômico-financeira dos poderosos conseguiu a superação de
todas as barreiras para a realização dos interesses capitalistas, a política
vive o momento histórico mais baixo de seu prestígio e exerce influência muito
escassa na condução dos destinos da humanidade, porque ainda limitada às
fronteiras nacionais.
Francisco
entendeu com muita clareza que o poder não se limita mais ao território, mas se
exerce através da influência hegemônica do pensamento. Hoje parece cada vez
mais claro que seu plano é construir uma espécie de globalização espiritual, a
favorecer a aliança entre todas as religiões na empreitada de reconstruir um
mundo pacificado e mais justo. Ao mesmo tempo, esta nova “internacional”
espiritual-religiosa presta-se a constituir a base ética para uma refundação
mundial da política, hoje tragicamente subalterna à economia e a seu ídolo de
sempre, o deus dinheiro.
À
luz desta interpretação, é mais fácil entender também a missão no México, onde,
ao lado das questões pastorais, o papa tocou em dois temas de urgência mundial:
o do narcotráfico e o das migrações. No maior país da América hispânica, a
Igreja Romana sobreviveu às mais devastadoras perseguições antirreligiosas:
durante e após a Revolução Mexicana, ao custo de milhares de sacerdotes
assassinados. O catolicismo tem ali raízes mais profundas do que em outros
países, resistindo firmemente à penetração dos evangélicos: os fiéis continuam
representando uma porcentagem elevadíssima da população: 81%. No Brasil é de
61%.
A
viagem ao México, mescla de diferentes etnias, incluiu o Chiapas, terra de
fermentos revolucionários e contrastes raciais. Os maias foram homenageados em
língua chol e reconhecidos pela capacidade de “se relacionar
harmoniosamente com a natureza, enquanto tantas regiões do mundo vivem uma
emergência ambiental devastadora. (...) Contudo, vossos povos foram
menosprezados e excluídos (...) Alguns consideraram inferiores os valores, a
cultura e as tradições de vocês (...), enquanto outros, enfeitiçados pelo
poder, pelo dinheiro e pelas leis do mercado, os espoliaram da terra ou
realizaram obras que a poluíram”.
Em
Morelia, capital do Michoacán, estado assolado pelo narcotráfico, Francisco foi
acolhido por 300 mil pessoas em delírio de entusiasmo. Viajava em um modesto
Fiat 500 entre as multidões e agia com a usual serenidade, que se transformou
em brusca severidade ao reprovar, na homilia na Catedral, aquela parte do clero
que é suspeita de conivência com o mundo do crime. “Peço a vocês que não
subestimem o desafio ético que o fenômeno do narcotráfico representa para toda
a sociedade. Suas proporções, a complexidade de suas causas, a imensidão de sua
extensão, como uma metástase devoradora, não permitem que nós, pastores, nos
refugiemos em condenações genéricas.”
Na
última etapa de uma viagem de 3,6 mil quilômetros, Francisco foi a Ciudad
Juárez, fronteiriça com a texana El Paso, agora tristemente apelidada de
Lampedusa das Américas. Nessa babel infernal, onde se misturam fenômenos de
narcotráfico, prostituição, tráfico de órgãos e de seres humanos, lembrou que a
tragédia representada pela migração forçada é um fenômeno global a impor,
inevitavelmente, soluções globais.
Sem comentários:
Enviar um comentário