terça-feira, 26 de junho de 2018

Direito Costumeiro em Timor-Leste Visto Numa Perspectiva dos Direitos Humanos


A Constituição da República Democrática de Timor-Leste dá um reconhecimento especial sobre a existência das normas e costumes locais. Diz o artigo 2 número 4 “O Estado reconhece e valoriza as normas e usos costumeiros de Timor-Leste que não contrariem a Constituição e a legislação que trate especialmente do direito costumeiro”.

Pela interpretação da constituição, vimos que é uma obrigação do estado timorense criar um mecanismo da integração do direito costumeiro no ordenamento jurídico estadual, porque por um lado, sem um mecanismo concreto do estado na aplicação desse artigo, o estado timorense está cair na violação da constituição e por outro num estado de direito como Timor-Leste deve salvaguardar a garantia da certeza jurídica dentro da população mesmo que a garantia da certeza jurídica num estado de direito cabe apenas aos tribunais estaduais.

É porque a constituição timorense reconhece e valoriza o direito costumeiro então o estado timorense deve criar uma legislação para que regulariza ou define a clara actuação entre o direito costumeiro e o direito formal-estadual dentro da sociedade. Partilhamos a ideia de Laura Grenfell  enquanto diz que “ East Timor’s government needs to enact legislation clarifying the relationship between the two systems of law and setting out some judicial guidelines so as to remedy the present confusion in East Timor’s courts as to wheter and when local law can be used”.

Por parte do governo timorense há essa preocupação para recolher dados sobre o direito costumeiro de Timor-Leste. A Patrícia Jerónimo defende no seu artigo, intitulado Estado de Direito e Justiça Tradicional Ensaios para um equilíbrio em Timor-Leste, essa tentativa do governo timorense em 2009 para fazer um levantamento sobre Direito Costumeiro e pretende com isto para ver como o direito costumeiro possa resolver os problemas de âmbito menor.

Essa levantamento é muito importante vimos que há múltiplos mecanismos de fazer justiça dentro da comunidade. Pelo menos com isto o governo timorense possa controlar os mecanismos de aplicação de justiça tradicional que não vão contrariar com os princípios gerais de direitos humanos ou qualquer princípio fundamental do Estado de Direito Democrático de Timor-Leste.

Vimos que o reconhecimento do governo timorense limite-se apenas aos problemas menores. Aliás, essa ideia também podemos verificar na resolução dos conflictos não de crimes graves, durante o mandato da CAVR, na comunidade pela sua comissão distrital.

Essa decisão é de louvor porque ajudou facilitar a integração na comunidade os antigos pro-autonomistas e estabelecer de novo uma boa harmonia e paz na comunidade. Além disso, também ajudou a diminuir o peso do estado que depois só tratou sobre a política que o estado toma em relação com os crimes graves contra a humanidade sem preocupar muito de tratar os assuntos menores que os líderes da comunidade possam tratar. O sucesso da comissão distrital da CAVR ao utilizar os mecanismos tradicionais de resolução dos conflictos pode servir como exemplo de quanto importante e eficaz o uso do direito costumeiro na comunidade.

Timor-Leste, como um estado post-conflicto e que veio de uma história de guerras há séculos e onde existe muitos grupos étnicos-linguísticos que possam pôr em causa a estabilidade do país, onde a população não tem muito acesso ao sistema estadual da justiça, precisa de um mecanismo adequado para tratar questões de justiça e de resolução dos conflictos dentro da comunidade grass-root. Como diz Daniel Schroeter Simião que “existe uma baixa penetração dos mecanismos estatais de justiça (polícia, ministério público, defensória pública e tribunais) junto à população em todos os Distritos”.

O que defende claramente também essa situação pela Patrícia no mesmo artigo dizendo “ Cedo se verificou, porém, ser muito limitado o real impacto das reformas empreendidas por via legislativa junto das populações, que continuaram a reger as suas vidas pelas normas costumeiras (por vezes, em manifesta violação do Direito oficial) e a recorrer às instancias tradicionais para a resolução dos conflitos surgidos no seio das comunidades”. Por isso, não se admira muito que com esta dificuldade de difícil acesso ao sistema estadual de justiça a população muitas vezes recorre a justiça tradicional como meios mais rápidos e acessíveis para resolver os conflictos existentes.

A Justiça tradicional não tem como objectivo apenas resolver os conflictos dos interessados mas mais do que resolver os conflictos visto também como um mecanismo para garantir a existência da harmonia da comunidade e muitas vezes o que a população procura na justiça tradicional é isso mesmo a restauração da harmonia dentro da comunidade; a restauração da perturbação da ordem social da comunidade. Tanja Hohe e Rod Nixon dizem que “local law is mainly about the replacement of values, to re-establish their correct exchange and thus reinforce the socio-cosmic order”. Os dois sublinham concretamente que o direito local ou tradicional é para “ [harmony in the cosmos and for community members is insured again]”. Enquanto o direito estadual de Timor-Leste, hoje em dia, como fonte de origem ocidental, na qual concentra na protecção e na valorização dos direitos humanos de cada individuo, o indivíduo como valor em si mesmo numa perspectiva de Kant, visto numa perspectiva ocidental de individualidade, o direito costumeiro de Timor-Leste procura acentuar no interesse comum da comunidade. O interesse da comunidade é maior de todos os interesses individuais isolados. É por isso que qualquer decisão do tribunal do estado pôr em primeiro lugar o interesse da vítima como individua e centro de atenção. Enquanto a decisão do “tribunal” da justiça tradicional procura em primeiro lugar a harmonização da comunidade porque qualquer problema é visto como uma ruptura da harmonia da comunidade. O problema é do interesse de todos por uma questão da harmonia da comunidade. O problema não é isolado, não apenas a vítima e o acusado mas é do interesse da comunidade em nome da harmonia da comunidade e além disso, a participação da comunidade na resolução dos conflictos é activa.

Mesmo que o direito costumeiro tem um papel muito importante na vida dos timorenses na comunidade rural, o reconhecimento do direito costumeiro é confuso dentro do estado de Timor-Leste. Por um lado, a Constituição da República reconhece e valoriza o direito costumeiro e por outro lado o parlamento nacional fez uma lei número 10/2003, de 10 de Dezembro para impedir a sua valorização. O que nos parece que essa lei não está em harmonia com a Constituição, a lei principal de Timor-Leste.

Essa realidade, para nós, mostra que o estado de Timor-Leste está com dúvida em relação com a importância do direito costumeiro no processo do desenvolvimento do país (State Building). Mais do que a preocupação explícita, que consta na lei, podemos pensar também (apenas como uma possibilidade) que uma das razões podem ser a preocupação da existência no direito costumeiro as práticas que podem pôr em causa a falta do respeito pela dignidade da pessoa humana, liberdade e a igualdade de género que as vezes acontecem com a aplicação do direito costumeiro na sociedade timorense.

Pensamos que, para evitar essa tal preocupação da arbitrariedade de certos direitos costumeiros, devemos fazer uma convergência do Direito Costumeiro para o ordenamento jurídico formal estadual em harmonia sempre com a Constituição de Timor-Leste. Todo o acto de Direito Costumeiro que contraria a Constituição deve ser proibido. Porque a Constituição já prevê o respeito pela dignidade da pessoa humana (artigo 1 número 1), a garantia e a promoção dos direitos e liberdades fundamentais dos cidadãos e o respeito pelos princípios do Estado de direito democrático (artigo 6 alínea b) outros princípios para a defesa dos direitos fundamentais como por exemplo em relação com direitos, liberdades e garantias (artigos 29 e seguintes) e direitos económicos, socias e culturais (artigos 50 e seguintes) e além disso a Constituição também faz respeitar e dá supremacia do Direito Internacional perante quaisquer leis ordinárias do Estado. Porque segundo o artigo 9 número 3 da Constituição, toda a lei formal estadual será inválida caso contrariar com as convenções, tratados e acordos internacionais recebidos na ordem jurídica interna.

Este reconhecimento mostra a supremacia das convenções, tratados e acordos internacionais (recebidos na ordem jurídica interna enquanto completando o processo exigido no artigo 9 número 2 da CRDTL) perante as leis ordinárias do estado. Devemos ter, então, em atenção que qualquer direito costumeiro que converge no direito formal estadual deve estar sempre em harmonia com as convenções, tratados e acordos internacionais que o estado de Timor-Leste já ratificou.

Com toda a certeza e seguramente podemos dizer que a Constituição de Timor-Leste está desempenhar um papel importante para proibir todo o acto que viola quisquer direitos fundamentais do cidadão.

Por isso, o Estado de Timor-Leste tem um compromisso de, enquanto fazer legislação e ordenar sobre o Direito Costumeiro, tirar de fora e proibir todo o acto que contradiz com a Constituição. Por exemplo na resolução do crime na justiça tradicional devemos ter em consideração o princípio da legalidade no âmbito jurídico-penal na sua máxima amplitude, no plano substantivo e também no âmbito processual penal e deve garantir o direito à paz jurídica por parte de arguido, objecto de sentença com trânsito julgado como também o direito a indemnização por condenação injusta na aplicação da lei criminal segundo artigo 31 da Constituição. Devemos banir qualquer acto, na resolução do crime na justiça tradicional, que possa pôr em causa este artigo.

Além disso, no direito costumeiro existe pena da morte ou tratamento desumanos e degradantes aos culpados e isso não pode ser aceite e proibida a luz da Convenção Contra Tortura das Nações Unidas que Timor-Leste já ratificou. Ou mesmo em relação com as mulheres na qual em sociedade timorense há falta de respeito ou existe a discriminação das mulheres no direito costumeiro então essa discriminação é proibida também segundo a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres que já foi ratificada por Timor-Leste. Ou por exemplo no costume timorense que dá mais prioridade aos filhos para a educação formal do que as filhas então esse acto também devemos proibir a luz do artigo 4 da Declaração Universal dos Direitos Humanos.

Todos estes actos acima mencionados também violam a Declaraçao Universal dos Direitos Humanos em relação com os artigos 1 (Todo o homem tem o direito de se tornar humano e de ser tratado como tal) , 2 (Todo o ser humano tem direito à vida), 3 (todo o ser humano tem direito independência) e 4 (Todo o ser humano tem direito a saber). Qualquer acto do Direito Costumeiro que, pôr em causa os Direitos Humanos deve ser banido também porque a Constituição de Timor-Leste prevê no seu artigo 23 que “Os direitos fundamentais consagrados na Constituição não excluem quaisquer outros constantes da lei e devem ser interpretados em consonância com a Declaração Universal dos Direitos Humanos”. A questão dos Direitos Humanos segundo artigo 23 torna como um guia orientador na elaboração e na interpretação das leis do Estado de Direito de Timor-Leste incluindo na futura elaboração e interpretação das leis que regulam sobre o direito costumeiro (artigo 2 número 4 segunda parte).

Vimos que há valorização por parte da Comunidade Internacional em relação com o direito costumeiro. Encontramos isso na Declaração dos princípios básicos de justiça relativos às vítimas da criminalidade e de abuso de poder que foi adoptada em 1985 na qual a Assembleia-Geral das Nações Unidas admitiu o uso do Direito Costumeiro ou práticas autóctones da justiça sempre em favor a vítima. Incluindo também a valorização por parte do Conselho Económico e Social das Nações Unidas com a resolução 2002/12 de 24 de Julho de 2002 que fala sobre justiça restaurativa em matéria criminal. O Comité de Direitos Humanos também valoriza a legitimidade dos tribunais baseado no Direito Costumeiro para fazer sentenças obrigatórias desde as matérias só em relação com matérias criminais e civis menores(que veio coincidir com a intenção do governo timorense acima mencionada).

Podemos afirmar que a aplicação do direito costumeiro deve ser a luz da Constituição. Logo, na aplicação do Direito Costumeiro em Timor-Leste, segundo o artigo 2 da Constituição, segue um princípio de praeter legem e não contra legem.

Vimos na realidade que tanto o direito costumeiro como o direito formal estadual tem o mesmo objectivo que é resolver os conflictos, assegurar a estabilidade ou restabelecer a harmonia e regularizar a vida da população no processo do desenvolvimento do país. Estes objectivos, podemos considerar como sistema de controlo social de Direito segundo a perspectiva de Atienza. Ele diz que “a actividade do controlo parece ter por objecto a conduta em geral dos membros da sociedade, enquanto que, num sentido mais restrito, o controlo social se limite aos desvios de conduta”.

Partir dessa função do direito como controlo social devemos procurar como fazer uma boa convergência entre o direito costumeiro e o direito formal estadual para o bem da sociedade como uma contribuição desse processo de desenvolvimento e de consolidação do Estado Democrático de Direito. Porque o direito costumeiro já nasce com a população. Desvalorizar o direito costumeiro significa também desvalorizar o património cultural de um povo e que isso vai contrariar artigo 5 alínea g da CRDTL e a Convenção sobre a protecção e a promoção da diversidade das expressões culturais e que como já citamos em cima que qualquer elaboração e interpretação do direito costumeiro deve ser a luz dos direitos humanos que veio confirmar com artigo 2 número 1 dessa Convenção.

Se hoje ainda existe essa prática de direito costumeiro na sociedade timorense significa que pelo menos, entre a população rural, esse direito costumeiro tem sentido da sua importância e da sua eficácia aplicação, acessível nos olhos da população local na regulação da vida da comunidade. Agora, o que nós devemos ter em atenção na situação do pluralismo jurídico como em Timor-Leste para que qualquer direito costumeiro não contrariar com a lei formal estadual (incluindo o direito internacional reconhecido na ordem jurídica interna do estado); assegurar a reparação dos danos das vítimas; a recuperação da ordem social da comunidade de base como parte do sistema de justiça retributiva tradicional da comunidade e ao mesmo tempo devemos também atribuir uma “punição” adequada aos culpados para que não voltarem praticar os crimes no futuro.

*Antigo aluno dos Direitos Humanos da Escola de Direito da Universidade do Minho. Eu procuro sempre escrever para os jornais locais (e online Timor Agora) como um sinal do meu agradeçimento para o apoio do Estado de Timor-Leste - Gabinete da Bolsa de Estudo de Timor-Leste. Nessa ocasiao eu queria aproveitar para agradecer todos os funcionarios do Gabinete da Bolsa de Estudo e em representação da Dona Ana Paula (quando falei com ela como se eu estivesse a falar com a minha mãe, uma pessoa de bom coração), o meu agradecimento para a simpatia e apoio de todos os professores portugueses em geral e em especial para os professores da Escola de Direito da Unievrsidade do Minho, o meu agradecimento para o apoio dos Irmãos de Sao João de Deus de Portugal e de Timor-Leste e o meu agradecimento para a amizade para a Companhia de Jesus em Braga e para todos os timorenses e portugeses de bom coração que ja me têm apoiado durante a minha estadia em Portugal. Agradeco em toda a minha vida os vossos apoios e simpatia e Deus Vos pague e retribua algo de bom que me têm prestado. Especialmente para os colegas portugueses, queria dizer que a porta de Timor-Leste está sempre aberta para gente boa como vocês. Este artigo também foi publicado em 14 de Junho de 2018 no Jornal Suara Timor Lorosa’e.

*Antigo estudante da Escola de Direito da Universidade do Minho do Mestrado em Direitos Humanos. Bele kontaktu iha otadian@gmail.com ou iha númeru kontatu: 76094252

Sem comentários: