Taur
Matan Ruak e o governo timorense estão em rota de colisão e o Presidente não se
coibiu de comparar os actuais privilégios dos políticos com os do tempo do
ditador indonésio Suharto.
A
tensão política em Timor volta a estar no vermelho. A recusa do Presidente,
Taur Matan Ruak, em renovar o mandato ao chefe do Estado-Maior General das
Forças Armadas (CEMGFA) divide o Governo e o chefe de Estado, estando mesmo em
cima da mesa uma eventual destituição do Presidente.
Em
plena crise, Ruak foi ontem ao Parlamento para falar ao país e as suas palavras
não podiam ter sido mais duras. O Presidente acusou os dois principais
dirigentes políticos do país, Xanana Gusmão e Mari Alkatiri, de beneficiarem
amigos e familiares em contratos do Estado, comparando os privilégios de
políticos com os do tempo do antigo ditador indonésio Suharto.
Xanana
Gusmão, líder histórico da resistência timorense, antigo Presidente, antigo
primeiro-ministro, líder do Conselho Nacional da Reconstrução de Timor-Leste
(CNRT), partido mais votado em Timor, é actualmente e por sua vontade ministro
do Planeamento e Investimento Estratégico.
Já
Mari Alkatiri, secretário-geral da Frente Revolucionária de Timor-Leste
Independente (Fretilin) e ex-primeiro-ministro, era até há não muito tempo o
principal crítico de Xanana Gusmão e da corrupção que dizia minar o país, mas
abrandou a sua actividade política desde que, em 2014, foi nomeado presidente
da Autoridade da Região Administrativa Especial de Oecussi, gerindo
investimentos de vários milhões de dólares na região.
E
a intervenção de Taur Matan Ruak no Parlamento não podia ter sido mais crítica
para estes dois homens. “Desde 2013, Xanana Gusmão, Mari Alkatiri, Lu-olo
[Francisco Guterres, presidente da Fretilin] usam a unanimidade para quê? Não
usam a unanimidade e o entendimento para resolver todos os assuntos que há por
resolver. Usam-na para ter poder e privilégios”, acusou.
“Um
vírus que se está a espalhar”
Com a discussão sobre a corrupção sempre viva no debate político timorense e com ex-governantes em tribunal acusados deste ilícito, o Presidente timorense disse estar “triste” por Xanana tomar conta de Timor-Leste e Mari tomar conta do Oecusse. E falou mesmo de “um vírus que se está a espalhar”. “O princípio básico da democracia é a confiança. Sem isso a democracia não funciona”, acrescentou.
Ruak
lembrou ainda um encontro com o primeiro-ministro, Rui Maria de Araújo, no
início do mês, em que lamentou que Xanana e Alkatiri “tenham beneficiado tanto
dos contratos do Estado”. “O senhor primeiro-ministro perguntou-me se eu queria
fazer inspecção. Eu disse-lhe que não, que estava apenas a falar do descontentamento
que se sentia sobre os privilégios. Com o Suharto também acontecia”, afirmou.
A
declaração ao país através do Parlamento deve-se ao momento de tensão política
que se vive em Timor em torno do chefe do Estado-Maior General das Forças
Armadas, o major-general Lere Anan Timur.
Ruak
não seguiu a proposta do Governo de renovação do mandato de Lere. O Presidente
defende a exoneração do actual CEMGFA e a nomeação do brigadeiro-general
Filomeno da Paixão de Jesus para o cargo.
Destituição
à vista?
Desde sexta-feira da semana passada que está feita uma proposta de destituição que apenas necessita de 14 deputados subscritores. Depois será necessária uma votação no Parlamento que recolha dois terços dos votos, seguindo a proposta para o tribunal de recurso. Para que o processo possa avançar, falta a publicação do decreto no Jornal da República, o que ainda não aconteceu.
Sobre
esta matéria Xanana Gusmão pediu um parecer ao constitucionalista português
Pedro Bacelar Vasconcelos, que defende que o Presidente timorense cometeu uma
inconstitucionalidade ao nomear Filomeno Paixão para o lugar de Lere. Alega o
parecer que Ruak não obedeceu ao princípio da obrigatoriedade de decisão
conjunta com o Governo, ao rejeitar a proposta do executivo.
Contactado
pelo PÚBLICO Pedro Bacelar Vasconcelos recusou-se a fazer qualquer comentário
sobre o parecer, por “não querer interferir sobre questões de Timor-Leste”.
Vasconcelos,
um dos obreiros da Constituição de Timor e que mantém contactos com o
Parlamento do país, afirmou estar preocupado “com a tensão” que se vive em
Timor. “Há uma tensão que ultrapassa os limites mínimos de solidariedade entre
órgãos de soberania num Estado de direito”, referiu.
Confrontado
pelo PÚBLICO pelo facto de Xanana estar a usar o seu parecer contra o Presidente
da República em actos públicos, o actualmente deputado do PS e presidente da
Comissão Parlamentar de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e
Garantias disse que a forma como o Xanana usa o parecer “é lá com ele”. “Eu
tenho acompanhado a situação com grande preocupação e não me vou pronunciar”,
acrescentou.
Alguns
actores políticos timorenses admitiam nos últimos dias que Ruak pudesse ele
próprio apresentar a renúncia à Presidência, mas o chefe de Estado optou por
partir para o ataque. E sobre o conflito em torno do CEMGFA afirmou: “Eu
não tenho problemas com o Governo. Mas o Governo usa o argumento do Lere para
atingir o Presidente. O Presidente continua disponível para discutir no
Parlamento nacional para encontrar uma solução para o caso.”
A
tensão entre Ruak e o Governo e o Parlamento não é de agora. O Presidente
elegeu o combate à corrupção e o combate à pobreza como grandes pilares da sua
Presidência desde que tomou posse, em 2012.
Ao
longo destes anos visitou a quase totalidade dos 442 sucos (aldeias) existentes
e não tem parado de criticar o Governo devido aos níveis de corrupção e
chamando a atenção para o estado de pobreza em que vive o povo. O
Presidente tem vindo ainda a denunciar o enriquecimento surpreendente de
políticos e dos seus familiares e a existência de contratos do Estado
“entregues a amigos”.
Ruak
tem também apontado o dedo ao Governo por falta de aposta em áreas como a Saúde
e a Educação, segundo ele relegadas para segundo plano face aos grandes
projectos.
Há
uns meses, o Presidente pediu a documentação e estudos de viabilidade de dois
grandes projectos: Oecussi e Tasi Mane (costa sul e que inclui uma refinaria).
Até hoje nada foi entregue ou esclarecido ao chefe de Estado. Quanto ao
projecto de Oecussi, uma equipa apresentou-se na Presidência há duas semanas
para fazer uma apresentação ao Presidente, mas sem a presença do líder do
projecto, Mari Alkatiri. Dúvidas sobre estes dois projectos levaram mesmo o
Presidente a vetar o Orçamento do Estado de 2016. O Parlamento voltou a aprovar
o documento e Ruak foi obrigado a dar a sua aprovação.
A
tensão política promete continuar nas próximas semanas, com a grande dúvida de
se vai mesmo avançar um processo de destituição do Presidente, Taur Mantan
Ruak.
Ivo
Valente, ministro da Justiça de Timor, encontra-se em Portugal, tendo assinado nesta quinta-feira um
protocolo de cooperação com o Ministério da Justiça português, mas, após a
cerimónia, recusou-se a responder a perguntas dos jornalistas.
Luciano
Alvarez – Público, em 25.02.2016 – Foto: Miguel Madeira
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