A
28 de novembro de 1975 a Fretilin declarou unilateralmente a independência de
Timor-Leste. Nove dias depois, a ex-colónia portuguesa foi invadida pela
Indonésia, para uma brutal ocupação que se prolongou até ao histórico referendo
de 1999. 40 anos depois da bandeira de Portugal ter sido arriada de Díli, o
Expresso entrevistou em Lisboa o Nobel da Paz, José Ramos-Horta, que foi
primeiro-ministro e Presidente da República de Timor-Leste
Aos
65 anos, José Ramos-Horta viaja por todo o mundo. É orador em múltiplas
conferências, e a sua experiência como diplomata e moderador é requisitada em
várias situações, como aconteceu recentemente na Guiné-Bissau.
Momentos antes
de dar a entrevista ao Expresso, falou ao telefone com o Ministro dos Negócios
Estrangeiros do Kosovo, a quem prometeu ajuda. “Sou um grande admirador seu há
décadas, sei bem o que fez pelo seu país”, disse-lhe o político kosovar.
Onde
estava no 25 de Abril?
Estava
em Díli. Em Lisboa era 25 de abril, lá já era dia 26 devido ao fuso horário. De
manhã, estava no jornal “Voz de Timor”, onde era o editor, e apareceram dois
senhores, um deles da PIDE. “Sabe que houve um golpe em Portugal?”, perguntou.
E eu pensei: ‘Está a querer pregar-me uma rasteira a ver se eu fico todo
satisfeito.’ “Ah, sim?”, disse-lhe.
O
jornalista não acreditou nessa fonte…
Não
acreditei. Uns meses antes, eu tinha tido um problema sério com o governo
português. Escrevera um artigo para o jornal “A Seara”, que não era sujeito à
censura prévia porque era um quinzenário da igreja. O final do artigo era:
“Maubere, meu irmão, levanta-te, são horas, o sol já vai alto, as suas luzes
são também para ti”. O governador, Fernando Alves Aldeia, que me protegia da
PIDE, chamou-me ao seu gabinete, atirou-me o jornal à cara e disse: “Vou a
Portugal e quando voltar digo-te o que é que eles vão querer fazer. O que
gostarias? Ir para a prisão ou para fora do país?” Entre aquela escolha era
óbvio que queria ir para fora. Ele foi a Portugal e na altura foi apanhado pela
revolta das Caldas da Rainha...
O
golpe das Caldas, a 16 de março de 1974.
Sim.
Em Lisboa disseram-lhe: “Sim senhor, ele pode sair do país”. Comecei a preparar
a minha saída de Timor, prevista para 27 de abril. Veio o 25 de abril e,
naquela mesma manhã, um militar português, Cris Cristelo, que ainda está vivo,
um daqueles oficiais anticolonialistas, apareceu e deu-me um grande abraço. Aí
é que acreditei que as coisas estavam a mudar.
Meteu-se
logo na política…
Já
me tinha envolvido antes com o Mari Alkatiri e o Nicolau Lobato. No princípio
dos anos 70, éramos muito jovens, 20 ou 21 anos, sem a mais pequena
experiência, nenhum de nós tinha estudos universitários, mas já tínhamos estado
fora. Em 1970, com uma encrenca que tive com a PIDE, fui parar a Moçambique,
fiquei lá dois anos, voltei em 1972. Era o único que tinha estado em
Moçambique, mas não aprendi nada lá.
O
25 de abril mudou completamente a sua vida?
Completamente.
Fui apanhado no remoinho. Comprei o meu bilhete para Jacarta, para criar o meu
partido, a ASDT (Associação Social-Democrata Timorense).
Quando
formou a ASDT, a questão da independência já se colocava?
Antes
mesmo da constituição formal da ASDT o nosso grupo já advogava a independência
de Timor-Leste.
E
porquê a designação de Social-Democrata? Era uma profissão nesse modelo de
sociedade?
Essa
foi uma proposta minha. Desde que me conheço como pensador político, desde os
18 e 19 anos, que o meu modelo era associado à social-democracia sueca. Ainda
hoje.
Um
dos elementos que o distingue de quase todos os seus camaradas é o facto de,
sendo de formação católica, nunca ter estado num seminário.
Nem
sei porque nunca fui para o seminário. Andei sete anos na missão católica, mas
os meus pais mandaram-me para o liceu. Se tivesse ido, hoje estaria em Roma,
provavelmente como cardeal.
Papa?
A
Papa não diria, mas a cardeal podia chegar. Pelo menos é mais fácil. Daria
menos dores de cabeça ser cardeal do que político em Timor-Leste...
Na
declaração unilateral da independência, pela Fretilin, a 28 de novembro de
1975, estava em Díli?
Estava
na Austrália. Tinha lá ido fazer lóbi, sobretudo nas embaixadas em Camberra.
Regressei de Camberra para Darwin, para no dia seguinte apanhar o avião para
Díli, quando soube que a Fretilin fizera uma declaração unilateral da
independência.
Não
lhe comunicaram a decisão? Na altura, você já era o responsável pelas relações
externas…
Antes
de sair tinha manifestado a minha discordância. Eu não discordaria de uma
declaração unilateral da independência, mas para a fazer tinha que ser bem
preparada. Quando cheguei a Díli, Timor-Leste já tinha outro estatuto: era a
República Democrática de Timor-Leste.
Quem
decide declarar a independência?
O
Comité Central da Fretilin.
A
que pertencia.
Pertencia,
mas o facto de ter estado ausente não invalida a decisão.
Ainda
voltou a Timor?
Sim,
para a posse do governo. Cheguei a Díli só com tempo para vestir um fato.
Já
com lacinho?
Sem
lacinho e sem gravata, só um casaco. Fui à cerimónia de posse como Ministro de
Relações Externas e Informação.
Exerceu
durante quantos dias?
Dez
dias. Entretanto reuniu-se o primeiro Conselho de Ministros presidido por
Nicolau Lobato, que designou para cada um de nós algumas tarefas. Mari Alkatiri
ia para Moçambique cuidar do apoio africano. Lobato ia também para fora,
mobilizar apoio militar para as Falintil. Por fim, o Horta ia para Nova Iorque
para tentar mostrar a nossa causa junto do Conselho de Segurança das Nações
Unidas.
Foi
em Lisboa, em trânsito para Nova Iorque, que Ramos Horta ficou a saber que a
Indonésia tinha invadido Timor. Já nos Estados Unidos, teve a sua primeira
lição de “hipocrisia internacional” quando chegou às Nações Unidas: Washington
votou a favor de uma resolução que condenava a invasão, ao mesmo tempo que
continuou a fornecer armas à Indonésia durante anos.
Dois
acontecimentos acabaram por mudar a história de Timor. Um foi a atribuição do
Prémio Nobel a Ramos Horta e D. Ximenes Belo, em 1996. “Fiquei surpreendido,
não queria acreditar quando um jornalista me ligou a dar a notícia”. O outro
foi o massacre de Santa Cruz, em 1991.
Quem
propôs o seu nome para o Nobel?
Uma
deputada socialista, membro do próprio Comité, creio que em 1994. O meu nome e
do bispo Belo começaram a ser ativamente considerados em 1995, mas nesse ano
decidiram dar ao trio do Médio Oriente. Mais tarde, comecei a conhecer o
processo e a sensibilidade dos membros do Comité Nobel e a partir daí nomeei
algumas pessoas para Nobel. Fui eu que propus a União Europeia, o presidente da
Coreia, Kim Dae-jung, e Muhammad Yunus.
Chegamos
ao referendo sobre a independência, em 1999. Não votou?
Votei,
mas em Sidney com a comunidade timorense. Mas assim que ganhámos começou a
violência.
Portugal
acabou por exercer um papel importante no processo de independência de
Timor-Leste. Em entrevista ao Expresso, Ramos Horta conta que o primeiro-ministro
de então, António Guterres, chegou a ameaçar os Estados Unidos com a saída da
NATO, caso Washington não desse o apoio à causa timorense.
Regressou
a Timor em 1 de dezembro de 1999.
Exato.
Finalmente, depois de 24 anos.
Anos
mais tarde, em 2008, foi vítima de um atentado que lhe ia tirando a vida.
Converteu-se?
Não
diria disso, porque eu já era católico. Nunca deixei de o ser. Não sou grande
frequentador da missa, mas sou crente de Cristo e de Deus, às vezes não
praticante.
Quem
foi realmente o mandante do atentado?
O
autor principal foi o major Alfredo Reinado, com quem tinha dialogado na
tentativa de o persuadir e de evitar o uso da violência. Naquela manhã, muito
cedo, decidiu ir a minha casa - disse aos seus correligionários que eu o tinha
chamado, embora não o tivesse feito. Eu tinha saído para caminhar e quando
entrei na minha rua comecei a sentir que algo não estava bem. Tentei fugir
quando me deu o primeiro tiro. Mas o que aconteceu não foi planeado. Porque
ninguém me planeou matar.
Agiu
por conta própria?
O
Alfredo Reinado fez tudo por conta própria, como sempre. Estive dez dias em
coma induzido, em Darwin. Quase dois meses depois regressei a Díli, em 18 de
abril de 2008.
Numa
entrevista afirmou que ao longo da sua vida disse muitas asneiras. Quer revelar
algumas de que tenha vergonha?
As
asneiras que tenha dito estão em alguns jornais. Mas sim, há algumas que me
arrependo de ter dito.
Há
alguma atitude ou decisão de que se tenha manifestamente arrependido?
Não.
Há coisas em que eu era contra, como, por exemplo, a declaração unilateral da
independência. Eu discordava, mas os meus camaradas que tomaram a decisão
achavam que não havia outra alternativa. Portanto, não tenho necessariamente
razão.
José
Pedro Castanheira | Raquel Albuquerque | João Santos Duarte | Expresso
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