O
artigo foi assinado por Pedro Rosa Mendes, da Lusa, e traduziu, supostamente, o
seu balanço de mais de dois anos de permanência na capital timorense. Nem os
governos nem a ONU saem dali lisonjeados, antes pelo contrário. As vítimas,
essas, continuam a ser os timorenses.
O
documento, sinteticamente bem elaborado, acusa a ONU e demais envolvidos
internacionais de políticos inimputáveis, arrastando-os para a parceria
irresponsável que comungam com os líderes timorenses, dizendo: "A ONU em
Díli está em sintonia com os dirigentes timorenses. Todos fabricam fantasmas: o
grande estratego, o grande diplomata, o grande guerrilheiro. Se não fosse
assim, as máscaras cairiam e seria um grande embaraço...". Porque na
realidade é aquilo que tem vindo a acontecer é muito grave. Importa que a ONU,
a UNMIT, reveja as suas actuações, os seus procedimentos, a composição dos seus
quadros pejados de pessoal excedente e parasitário que afinal está ali em
férias pomposamente pagas. Urge ainda saber analisar os erros cometidos com as
cumplicidades de que vem sendo acusada e que transparecem, que apesar de se
constatarem nunca foram enfrentadas nem evitadas. Promiscuidades com interesses
prejudiciais a Timor, política, economicamente e, claro está, socialmente.
A
figura de Atul Khare sai daquele documento, elaborado pelo jornalista,
superiormente denegrida, diria que justificadamente denegridas, em prejuizo dos
funcionários da ONU que batalham para que a ONU funcione em Timor-Leste como a
situação o impõem e não com cedências e cumplicidades em branqueamentos de
crimes graves, crimes de sangue e de corrupção, principalmente. Fica claro que
o representante do secretário-geral Ban Ki-moon, Atul Khare tem produzido um
péssimo trabalho em representação da comunidade internacional, quase sempre
favorável aos interesses dúbios e em completo desprezo pelo que o seu mandato
devia representar naquele país. Desta vez algo tem de ser feito pelo senhor Ban
Ki-moon. Ignorar o artigo do público somente contribuirá para mais denegrir a
ONU.
Em
Timor-Leste a ONU tem funcionários que merecem todo o respeito das chefias da
organização, assim como o respeito dos timorenses e dos cidadãos do mundo, não
devendo estar a ser confundidos com os incumpridores, os devassos e
oportunistas. A solução será tomar uma posição clara, inequívoca, que melhore a
eficiência, responsabilização e imagem da organização em Timor-Leste. Uma
atitude competente que há muito está dependente do Secretário-Geral, de mais
ninguém. Uma vez mais o SG das UN foi alertado, não devendo ele também de
continuar a querer fazer-se passar por um político inimputável.
Espero
brevemente ter oportunidade de abordar mais alguns aspectos deste bombástico
mas realista artigo de Pedro Rosa Mendes.
Timor-Leste: A ilha insustentável
PEDRO
ROSA MENDES, ESPECIAL PARA O PÚBLICO - 25/11/2008
Este
é o retrato implacável de uma realidade que não podemos continuar a fingir que
não existe. Estas são algumas das verdades, duras como punhos, sobre um país
que sonhou ser diferente - e nos fez também sonhar
1.
Timor não é um Estado falhado. É pior. Falhou o projecto nacional idealizado há
uma década
Em nove anos de liberdade, Timor-Leste não conseguiu assegurar água, luz e
esgotos para a sua pequena capital. Baucau, a segunda "cidade", é uma
versão apenas ajardinada da favela que é Díli, graças à gestão autárquica
(oficiosa) do bispado.
O resto, nos "distritos", é um país de cordilheiras que vive o
neolítico como quotidiano, longe do mínimo humano aceitável. Chega-se lá pelas
estradas e picadas deixadas pelos "indonésios". Há estradas
principais onde não entrou uma picareta desde 1999.
O bem público e as necessidades do povo são ignorados há nove anos com um
desprezo obsceno. O melhor exemplo é a companhia de electricidade: durante
cinco anos, a central de Díli não teve manutenção de nenhum dos 14 geradores -
todos oferecidos -, até que a última máquina de grande potência resfolegou.
O Hospital Nacional Guido Valadares, onde se inaugura esta semana instalações
rutilantes, não teve até hoje um ecógrafo decente nem ventiladores nos Cuidados
Intensivos. Não há um TAC no país (embora custe o mesmo que dois dos novos
carros dos deputados); a menina timorense com que Portugal se comove teve o
tumor diagnosticado pelo acaso de um navio-hospital americano que lançou âncora em Díli. A taxa de
mortalidade infantil é apenas superada a nível mundial pelo Afeganistão. A
mortalidade pós-parto é assustadora. Entretanto, cada mulher timorense em idade
fértil tem em média 7,6 filhos.
Circulam entre diplomatas e humanitários os "transparentes" de um
relatório do Banco Mundial que conclui que "a pobreza aumentou
significativamente" entre 2001 e 2007 (um balanço arrasador do consulado
Fretilin, porque o estudo usa indicadores até 2006). Cerca de metade dos timorenses
vive com menos de 60 cêntimos de euro por dia e, desses, metade são crianças.
Timor é um país rico atolado na indigência, onde os líderes se insultam por
causa de orçamentos que ninguém tem sequer unhas para gastar.
2. A "identidade maubere" é uma ficção dispendiosa
A identidade "nacional" do espaço político timorense não existe, como
explicam os bons historiadores, que sempre referem no plural os
"povos" de Timor. Sob o mito do "povo maubere" existe um
mosaico de dezena e meia de entidades etnolinguísticas que se definem por
oposição (em conflito, separação, desconfiança, distância) ao
"outro", mesmo em
aliança. O "outro" de fora, ou o
"outro" de dentro. É um tipo de coesão circunstancial e oportunista
que morre com o conflito, engendrando a prazo outros conflitos, em ciclos de
calma e crise numa ilha com paradigmas medievais.
A gesta "maubere" produziu, finalmente, uma inversão cronológica. A
RDTL é uma cristalização política de uma sociedade que teve alforria de Estado
antes de construir uma identidade que o sustentasse.
A filiação de cada timorense continua a ser à respectiva "uma lulik"
(casa sagrada) e às linhagens que definem outros territórios e outras leis que
não passam por ministros, juízes nem polícias, mas por monarcas, oligarcas e
chefes de guerra. É isto que os líderes tentam ser - ou, de contrário, não são.
3. O Estado independente é sabotado pelas estruturas da resistência
O Estado timorense funciona. Não significa, porém, que produza algum resultado,
exceptuando a Autoridade Bancária de Pagamentos, única instituição onde a
aposta na localização de quadros e a recompensa do mérito fizeram do futuro
banco central um oásis de probidade nórdica.
As estruturas operativas do país são paralelas, oficiosas e opacas. Vêm do
tempo da resistência e não houve coragem ou inteligência para as formalizar no
jovem Estado.
Um caso óbvio é o dos veteranos das Falintil que não integraram as novas Forças
de Defesa (FDTL). Em 2006, foi a 200 desses "civis" que o
brigadeiro-general Taur Matan Ruak recorreu num momento crítico de
sobrevivência do Estado. O Estado-Maior timorense está, porém, a contas com a
justiça. Se passar da fase de inquérito, talvez o processo das armas e da
milícia "20-20" abra um debate que devia ter acontecido antes. O lugar
das "reservas morais" tem de ser formalizado, sob pena de não haver
linha de separação entre patriotismo e delinquência. O major Alfredo Reinado
ilustrou, de forma trágica, a facilidade deste salto.
As estruturas paralelas, porém, não são exclusivo do sector de segurança. O
ex-comandante Xanana Gusmão não esconde que a Caixa, a rede clandestina de
"inteligência", continua activa. As fidelidades, mas também os
reflexos e atavismos da resistência, continuam em vigor. A "velha"
voz de comando é, por vezes, a última instância e, mesmo em Conselho de
Ministros, o último argumento é por vezes o voto de qualidade por murro na
mesa.
José Ramos-Horta, diasporizado das Falintil e do mato até 1999, não tem cão mas
caça com gato. O chefe de Estado, em linha com os símbolos maçónicos debruados
nas suas camisas, é desde há dois anos o segundo "pai" da Sagrada
Família. É uma sociedade fundada em 1989 pelo comandante Cornélio Gama
"L7", que evoluiu para uma combinação algo mística de grupo
religioso, partido político e milícia justiceira. Foi "L7", com a
bênção de Xanana Gusmão, que apresentou a candidatura de Ramos-Horta à
Presidência em Fevereiro de 2007, em Laga. Vários elementos
da Sagrada Família integram a guarda do chefe de Estado.
A República timorense é limitada e sabotada pela recorrência do ocultismo,
apadrinhamento, vassalagem e mentalidade de célula. No entanto, se não fossem
as redes informais de confiança e de comando, por onde passam também os códigos
de fidelidade e os valores de grupo, a RDTL já teria implodido.
Versão moderna dos Estados dentro do Estado: a última contagem, confidencial,
dá conta de 350 assessores internacionais junto do IV Governo Constitucional.
4. A estratégia dominante na sociedade está tipificada no Código
Penal. Chama-se extorsão
A simpatia pela "causa" timorense estagnou num ideal de sociedade e
de pessoa que é desmentido pela frustrante experiência quotidiana. Ignorância,
trauma, miséria e negligência, polvilhados com os venenos da complacência, paternalismo
e piedade, banalizaram comportamentos de rapina, desonestidade, egoísmo e
má-fé. A solidariedade, a generosidade e a gratidão estão em minoria. O que é
marginal ou criminal noutros sítios faz, no Timor de hoje, catecismo nas
repartições, nos negócios, no mercado, no trânsito, no lar.
A "liderança histórica" reina sobre um país intratável, em passiva
desobediência civil, que pensa e age como se todo o mundo lhe devesse tudo e
como se tudo estivesse disponível para ser colhido, do petróleo ao investimento
e à atenção internacional. A cobiça e a inveja social infectam a esfera
política, social, laboral e até familiar. "Aqui todos mandam e ninguém
obedece", para citar um velho timorense educado em princípios que deixaram
de ter valor corrente no seu país.
A "estabilidade" actual é comprada com um Natal todos os dias. Tudo é
subsidiado, desde o arroz ao combustível, com uma chuva de benesses e
compensações a um leque impensável de clientelas e capelas. A sociedade civil,
digamos, é uma soma de grupos de pressão que recebem na mesma moeda em que
ameaçam com incêndios e pedradas, desde os deslocados aos peticionários ou aos
estudantes.
Todo esse dinheiro nada produz. Algum sai para a Indonésia, que os novos-ricos
timorenses consideram um sítio mais seguro para investir. O que fica compra
motorizadas e telemóveis. A Timor Telecom vai fechar o ano com 120 mil clientes
na rede móvel, 12 por cento da população, uma taxa ao nível de países com o
triplo de rendimento per capita do timorense.
A maioria dos timorenses não paga o que consome: água, electricidade (por isso
o consumo aumenta 25 por cento ao ano, um ritmo impossível de acompanhar por
qualquer investimento nas infra-estruturas), casa, terra, crédito, arroz. Este
modelo de pilhagem e esbanjamento é insustentável na economia, na banca, na
ecologia, na demografia e, a prazo, até na política.
5. A ocupação indonésia foi implacável e a líderança timorense
desmantela com zelo o que restava: a dignidade
O gangster mais conhecido do submundo de Jacarta nos anos 1990 - o timorense
Hércules - é, hoje, o dono de obra no melhor jardim da capital. Os condenados
por crimes contra a humanidade, como Joni Marques, da "Tim Alfa" (pôs
Portugal de lenço branco em Setembro de 1999 com um massacre de freiras e
padres), voltam às suas aldeias com indemnizações por casas que foram
queimadas, enquanto eles estavam na prisão.
Na Comissão mista de Verdade e Amizade (CVA), foi a parte timorense, perante a
surpresa indonésia, que tentou conseguir uma amnistia geral para os crimes de
1999, com uma persistência de virar o estômago.
O relatório da Comissão de Acolhimento, Verdade e Reconciliação (CAVR), uma
monumentae historica de 24 anos de dor em sete volumes, espera há três anos a
honra de um debate no Parlamento. Duas datas estiveram marcadas em Novembro,
mas, nos bastidores, os titulares políticos tentam obter uma prévia sanitização
das recomendações da CAVR.
Mari Alkatiri, Xanana Gusmão e José Ramos-Horta, ao sectarizar a memória da
violência, desbarataram o capital obtido à custa de duzentos mil mortos
(incluindo os seus entes queridos). A herança do genocídio é aviltada na praça
como capital de risco e como cartão de visita. O resultado é uma distopia
moral, um abismo de proporções tremendas em que se afunda um país cuja soberania
teve, afinal, uma legitimidade essencialmente moral no seu contexto geográfico
e histórico.
Os mortos são a parte nobre de Timor, merecedores de tributos em rituais, lutos
e deslutos. Mas nesta terra de cruzes, valas comuns e desaparecidos, não houve
ainda a caridade de 200 mil euros para instalar um laboratório de ADN que
permitisse, enfim, devolver os ossos ao apaziguamento dos vivos.
A injustiça e a impunidade são valores seguros em Timor-Leste.
6. Timor fala todas as línguas e nenhuma
Timor é uma ficção lusófona onde a língua portuguesa navega contra uma geração
culturalmente integrada na Indonésia, contra a geografia, contra manipulações
políticas internas e contra a sabotagem de várias agências internacionais. A
reintrodução do português só poderá ter êxito com a cumulação de duas coisas:
firmeza política, em Díli, sobre as suas línguas oficiais; massificação de
meios ao serviço de ambas.
O Instituto Nacional de Linguística tem 500 dólares de orçamento mensal
(exacto, seis mil USD por ano).
Na "Babel lorosa'e", como lhe chamou Luiz Filipe Thomaz, não se fala
bem nenhuma das línguas da praça (tétum, português, inglês, indonésio). Uma
língua é a articulação de um mundo e do nosso lugar nele. Perdidos da gramática
e do vocabulário, uma geração de timorenses chegou à idade adulta e ao mercado
de trabalho sem muitas vezes conhecer conceitos como a lei da gravidade, o fuso
horário ou as formas geométricas, apenas para dar exemplos fáceis.
Aos poucos bancos com balcão em Díli (três) chegam projectos de investimento
estrangeiro cujos planos de amortização não prevêem mão-de-obra timorense ou
que contam os timorenses como peso-morto na massa salarial, ao lado de
operários ou técnicos importados que responderão pela produção.
7. "Entrar nas Nações Unidas é ficar politicamente inimputável"
Diz um diplomata que gosta do teatro de sombras javanês: "A ONU em Díli
está em sintonia com os dirigentes timorenses. Todos fabricam fantasmas: o
grande estratego, o grande diplomata, o grande guerrilheiro. Se não fosse
assim, as máscaras cairiam e seria um grande embaraço..."
A UNMIT, uma das missões mais caras da ONU, afunda-se penosamente no mesmo
vazio moral da liderança timorense. Três mil funcionários, polícias e
militares, uma massa crítica formidável que poderia ser um contrapeso à
incompetência e à insensatez, são esmagados pelo cabotinismo carreirista do
chefe de missão, Atul Khare, e de acólitos que acham bem em Timor aquilo que
jamais admitiriam nos seus países desenvolvidos. "Entrar nas Nações Unidas
é ficar politicamente inimputável", explicou um alto-
-funcionário da UNMIT.
8. Não há nenhuma bandeira de Portugal no mar de Timor
Não há interesses portugueses em Timor-Leste, porque não há condições
objectivas mínimas para fazer vingar qualquer interesse mensurável. Não,
decerto, pelos critérios que vigoram em qualquer outro lado. Seria bom que isto
fosse entendido pelos nossos responsáveis políticos. Portugal concedeu mais de
440 milhões de euros de 1999 a 2007 em ajuda ao desenvolvimento a Timor-Leste,
que consome quase metade do bolo total da nossa cooperação.
Continuando uma tradição portuguesa, as projecções pós-imperiais e os fascínios
com sucessivos aprendizes de Mandela ganham precedência sobre as informações
que chegam dos operadores económicos no terreno. "Mas você nunca ouvirá um
governante português dizer nada contra Timor", dizia, este ano, à mesa do
café, um governante português de visita.
9. "Tudo ainda não aconteceu"
A ferida feia no corpo de Ramos-Horta, quando o Presidente jazia numa poça de
sangue depois de levar dois tiros de cano-longo, é um buraco tão fundo como a
vergonha da nação. A ressurreição do profeta-Nobel criou um cristo gnóstico mas
as chagas, nesta terra dilacerada, já não fundam religiões com a facilidade com
que há dez anos fundavam Estados.
Díli, como um circo máximo de gladiadores, fervilha de jovens empurrados para a
luta. Não têm emprego, educação ou perspectiva. Alguém lhes diz: "Não sois
bandidos. Sois guerreiros." Mas dos aswain, os heróis das montanhas
timorenses, resta-lhes a coragem física, um retalho de rituais dispersos por
grupos rivais e a intransigente sacralização do seu território. Uma mistura
inflamável para toda a nação. "A resistência continua mas agora sem rumo.
E, sem rumo, só faz merda", diz o ex-assessor de Ramos-Horta para a
Juventude José Sousa-Santos.
"Tudo ainda não aconteceu", avisava um "espírito"
antepassado, pela voz de uma menina de Ermera, no Natal ainda inocente de 2005.
Díli, Novembro de 2008.