Isabel
Lopes chegou ao Centro Pedagógico e Científico da Língua Portuguesa e vê no
ensino do português em Macau um desafio imperdível. Confirma haver diferenças
na aprendizagem da língua por chineses no mundo, sublinhando que há mais
motivação na China do que na RAEM. O Acordo Ortográfico, defende, não é “o
desastre”, mas também tem defeitos
Como
é que surgiu a oportunidade de vir para Macau integrar o Centro e dar formação
de Português como língua estrangeira?
Convidaram-me para integrar a equipa do Centro Pedagógico e Científico da
Língua Portuguesa e aceitei imediatamente, por várias razões. Era, desde logo
um desafio irrecusável por ser relevante e importante em termos profissionais.
Há muito que estou ligado ao ensino do português como língua não-materna e
linguista e tudo isto era um novo desafio, vivenciar um momento histórico, que
é o que está a acontecer nesta altura na China, esta procura pelo português.
Em
que medida considera essa procura importante, tanto para Macau como para
Portugal?
A procura do português na China tem, naturalmente, uma razão funcional e instrumental
de mercado, mas não vejo nisso um mal. Obviamente que tem consequências, quando
levado a um extremo, mas o conhecimento de uma língua transforma-a a si própria
numa expressão de cultura. Como linguista, entendo que a língua não se ensina
na sua estrutura apenas, mas também enquanto cultura. Quem fala disto, fala de
literatura e de tudo o resto que é expressão.
Mas
na China, a questão da cultura fica um pouco aquém, já que não é possível
experienciá-la…
Depois de conhecer uma série de instituições de ensino superior na China, de
dar formação a professores de português [chineses] que estão na China, tenho
vindo a destruir essa ideia, sobretudo porque eles querem também saber questões
relacionadas com cultura e vivência do dia-a-dia, não só dos portugueses, mas
também dos angolanos e dos brasileiros. Gostam e pedem que falemos de questões
relacionadas com a literatura desses países lusófonos. A ideia que se passa não
é tão certa como se pensa. Há uma procura pelo português que realmente acontece
por razões meramente instrumentais e económicas, mas – e a história prova-o –
ao aprender uma língua, nasce muitas vezes a motivação para saber e entender a
cultura que lhe está associada. Os professores da China estão, neste momento,
também a procurar esses conhecimentos.
Porque
é que acha que isto acontece?
Pessoalmente, porque muitos dos professores tiveram uma formação em Portugal e
neles há a vontade de conhecer outras culturas lusófonas e isso é nítido.
Estivemos recentemente em Xangai e os professores de lá solicitaram-nos
informações sobre o que se passa no Brasil, em Angola, até mesmo em termos
linguísticos… É muito interessante ver como é que eles bebem essa informação.
Também
foi professora de português como língua não-materna na Faculdade de Letras da Universidade
de Coimbra. Quais são as grandes diferenças entre ensinar alunos com as mesmas
características, em dois locais distintos?
É muito diferente e essa é uma das reflexões que mais tenho feito. De facto,
ensinar português como língua estrangeira em Portugal cria-nos desafios muito
diferentes daqueles que cria ensinar o mesmo aqui e na China, onde também há
diferenças. Um aprendente de língua materna chinesa que esteja em Portugal está
em contexto de imersão, o que não acontece com os alunos da China continental e
no primeiro caso, há um ambiente e uma necessidade que não se verifica estando
em Xangai ou Pequim, onde o contexto se resume ao tempo da sala de aula.
Considera
que a aprendizagem em Macau ou na China é mais difícil do que em Portugal?
A minha experiência diz-me que há, por parte dos alunos, uma atitude diferente
perante a língua estando na China ou em Portugal. Não tenho
uma resposta final para a pergunta, porque estou cá há pouco tempo e tenho a
experiência de Portugal, que era, confesso, cheia de estereótipos. Em Coimbra
tive muitos alunos estrangeiros, nomeadamente chineses e revelavam-se
diferentes, sobretudo por interagirem mais entre eles e não tanto com outros
alunos. Aquele contexto de imersão que eu achava total, afinal não o era, mas
sim parcial. A grande diferença é o contexto de imersão, mas a motivação que
tenho visto nos alunos que aprendem no continente é notável. É incrível como é
que alunos que estão fora do contexto de imersão, conseguem uma proficiência em
português absolutamente extraordinária.
Que
papel desempenha a motivação no contexto da aprendizagem?
A motivação é fundamental na aprendizagem das línguas e há uma tradição de
estudar na cultura chinesa, pelo que [estes alunos] conseguem saber a estrutura
da língua portuguesa na ponta da língua. Acredito até que estes alunos [da
China] conseguem atingir níveis mais satisfatórios até do que os que estudam em Macau. A ideia de
arranjar um emprego está muito vincada na China e o curso de português em
algumas universidades chinesas é mesmo considerado um “Curso de Ouro” por ser o
passaporte para um “emprego de Ouro”.
Macau
tem vantagens enquanto local de estudo face a cidades da China, por ser um
local que junta as culturas portuguesa e chinesa?
Aqui temos um ambiente em que a televisão e os jornais são em português e a
língua forma ícones e anda nas ruas, como o património edificado. Isto facilita
uma apreensão mais global da língua e da cultura, mas o facto do Português não
ser [no ensino secundário] uma língua obrigatória faz alguma diferença.
Há
quem defenda que o português pode vir a ser internacionalizado como é o inglês
ou como já foi o francês. Concorda?
Acredito que a nossa língua, por si só, já está internacionalizada, com 250
milhões de pessoas a falarem-na no mundo. Tem um capital histórico e simbólico
associado em todos os continentes e tem vindo a promover um factor curioso: a
China e quem trabalha com a língua portuguesa está a contribuir para essa
internacionalização, até em termos do português em termos língua de Ciência.
Num dos fóruns em que estivemos recentemente a qualidade das comunicações foi
muito elevada e foram feitas em português e versavam sobre isso, por
professores chineses de português. O que ali aconteceu foi a internacionalização
da língua portuguesa enquanto língua de ciência.
Passou
então de um patamar do quotidiano para a Academia…
Exactamente. Acho que a língua portuguesa vai ganhar muito com esta geração de
professores chineses que falam em chinês, investigam e desenvolvem teses sobre
o português. No nosso portal Ponto de Encontro, organizei uma bibliografia à
medida que as coisas vão nascendo e crescendo. Neste momento, temos compiladas
201 referências bibliográficas, grande parte sendo estudos de professores chineses.
Considera
que a longo prazo, o português poderá vir a ser uma das principais línguas da
Ciência?
Acredito que tem essa capacidade, mas naturalmente o inglês tem, no seio da
comunidade científica, tem muito mais expressão. É importante é perceber que
também já se faz Ciência e investigação em português.
Chegou
há pouco mais de um ano. Que diferenças nota entre o ambiente do Ensino de
Portugal e de Macau?
Acredito que Macau está no bom caminho para se assumir – e talvez seja uma
ideia arrojada – como terceira economia no sector do ensino superior. Ou seja,
pode tornar-se, se o caminho que está a ser trilhado der efeitos, numa região
de Educação de excelência. A própria Universidade de Macau e a sua dimensão
permitem-no, o IPM tem tido um trabalho extraordinário no domínio da língua
portuguesa, sem esquecer a abertura do novo curso de Relações Comerciais entre
a China e os Países Lusófonos… O presidente do Centro [Lei Heong Iok]
vaticinava em 1984, ainda como técnico superior da DSEJ, aquilo que está a acontecer,
dizendo que o Português era preciso. Foi quase como uma profecia. Há é
necessidade de criar uma estrutura para acolher esta procura do português, mas
também de outras áreas. Diria é que o Português é uma marca de Macau, que pode
permitir criar a tal plataforma que se quer. Existem aqui todas as condições
para transformar Macau num centro de Ensino Superior de excelência. Julgo que a
criação dessa plataforma tem mesmo pernas para andar, até porque de acordo com
dados do GAES, há um aumento de 5% na procura de cursos em instituições de
ensino superior locais. Isto mostra que é preciso investir no ensino em Macau,
até porque faz sentido para a China.
Considera
que há recursos humanos suficientes?
Penso que estão a ser adquiridos, com a vinda de vários professores e as
formações. Aqui no Centro temos vários professores doutorados e, ao contratar
pessoas de fora, está a fazer-se um investimento. É um caminho de crescimento
que não se faz, claro, sem dores de crescimento, mas faz efectivamente parte da
estratégia do Governo local e da China. Haverá coisas a melhorar, mas há uma
vontade assumida de evoluir.
Que
coisas podem melhorar?
O caminho está a ser seguido essencialmente para o ensino superior, mas se
formos para o ensino secundário, é diferente. O ensino superior é um reflexo do
secundário e os alunos que chegam ao ensino superior para aprender português
sem terem tido bases antes, vêm, naturalmente, com um défice.
Faria
sentido estender o ensino do português para o secundário?
Essa é uma questão para os dirigentes porque é mais política. Nós, enquanto
professores e especialistas, podemos dizer que se houvesse escolarização em
português, os alunos teriam muito mais facilidade em fazer um curso de ensino
superior.
Tem
formação e experiência em
Linguística. Como é que vê a questão do Acordo Ortográfico e
a sua expressão na aprendizagem do português?
Essa é uma questão quente. Tenho um livro publicado sobre isso, que não toma
uma posição, mas explica as mudanças que aconteceu no Português Europeu.
Confesso que não consigo ver o Acordo como “o desastre” de Vasco Graça Moura,
mas também não sou uma pessoa que ache que tudo nele faz sentido. Tenho uma
visão de linguista nesta questão: ninguém conseguiria hoje ler Camões nem Eça
de Queirós nas suas versões originais. A língua é um organismo vivo e evolui na
medida em que é usada, portanto há momentos em que é preciso não uniformizar,
mas sim “pôr ordem na casa”. A evolução da língua mostra-nos que não é “um
desastre” e sei que é uma questão polémica, mas gosto de dizer aos meus alunos,
principalmente na China, que o Acordo trouxe benefícios. Ainda não conseguimos
é ter abertura suficiente para os vermos, porque temos uma relação afectiva com
a língua. Esta passa pelo lema de que “a língua que eu aprendi é que é boa”.
Tudo o que venha perturbar esta relação é, de alguma forma, ferir a
susceptibilidade. Há muita falsa informação, até porque muitas vezes surge, nos
meios de comunicação portugueses, “facto” sem C, quando este não cai. Em todo o
caso, acho que o Acordo tem várias virtualidades. Há quem diga que é uma
questão política ou económica… Para mim é uma questão em que vale a pena pensar
de forma desapaixonada. Caso contrário, caímos em extremos.
Em
2049, Macau passa a ser oficialmente parte da China, pelo que estamos ainda num
período de transição. Acredita que nessa altura o português pode desaparecer?
Não, porque tem sido dito tanto pelo Governo Central como pelo local, que o
português é uma condição complementar e essencial para Macau se assumir como
plataforma. Se assim o é agora, vai continuar a ser daqui a uns anos. Há razões
para acreditar, tendo em conta o investimento que tem sido feito, que a aposta
no Português é para continuar e não acredito que este Centro, cuja ambição é
crescer, não tenha uma missão para continuar a cumprir.