Como um pacato cidadão se
transforma, pela força inexorável das circunstâncias, num comandante
guerrilheiro de renome mundial, para alcançar a independência do seu país, que
depois o catapultou à Presidência
Quando tudo indicava que
Timor-Leste acederia à independência após os acontecimentos de Abril de 1974 e
que o cidadão José Alexandre Gusmão seguiria a sua vida pacata, eis que a vida
lhe modificou o rumo e lhe transformou a existência, levando-o a pegar em
armas, lutando por liberdade e independência. Foram cerca de25 anos de
dificuldades de uma vida no limite das forças humanas. Nunca se queixa e fala
sobretudo dos sacrifícios de um povo oprimido por um invasor tirânico.
Qual é a sua primeira recordação
de infância?
Nasci depois da II Guerra Mundial, numa terra em que a sociedade não dava importância
ao dinheiro. Vivíamos com simplicidade. O meu pai era professor e andava de
terra em terra. Lembro-me da genuinidade das pessoas, sem pensar demasiadamente
no futuro, uma existência serena. Foi uma infância pacata e com a alegria
própria de uma criança.
Com os pais professores
primários, como é que se lembra da educação que teve e como é que isso
influenciou a sua personalidade?
Diria que foi o próprio sistema que influenciou, e era duro. Naquela altura era
a época da régua. Na minha geração era esse o sistema... Tens de aprender, tens
de estudar... E se não te comportavas consoante esses parâmetros eras
castigado, ficávamos de joelhos, tínhamos deveres de casa suplementares. Mas
não deixa de ser verdade que isso criou-nos, no essencial, um sentido de
disciplina e uma motivação para o estudo.
O Xanana interrompe a frequência
do seminário e sai com 16 anos dos jesuítas. Por razões financeiras?
Talvez tenha saído mais cedo, já não sei bem... Mas não foi especialmente por
razões económicas e sim porque não fui escolhido para continuar.
Ah!, não foi ‘escolhido’ para
seguir os caminhos do Senhor... O seu primeiro emprego foi de topógrafo?
Quando saí do seminário, pretendia terminar os estudos no liceu, mas lá em casa
éramos dois rapazes, e os outros filhos eram raparigas, e o meu pai disse-me:
“És rapaz, tens de ajudar a tratar das tuas irmãs.” E fui ensinar Português na
escola chinesa e depois consegui integrar-me na equipa de uma missão portuguesa
que estava a fazer o levantamento das ribeiras. Foi assim que pude ganhar os
meus primeiros ordenados e viver em Díli.
E pôde também continuar os
estudos, mas entretanto foi jornalista...
Eu integrava um grupo de pensamento que tinha acesso a jornais e a alguns
livros, e lia muito, desejava adquirir mais conhecimentos, tinha vontade
particular no Português, em evoluir na língua. Na altura não havia luxos, nós,
jovens, não tínhamos dinheiro. Havia uma casa comercial que vendia jornais e
livros, não se podia chamar-lhe livraria, frequentávamos de vez em quando o estabelecimento
e furtávamos alguns exemplares para podermos ler e estudar também...
Pode dizer-se que era uma atitude
cultural compreensível... [risos]
Noutros tempos íamos para ‘subtrair’ os livros tão desejados. Havia um colega
que conseguiu ser assinante de um jornal monárquico português, e não era por
ser monárquico, mas pela sua forma de pensamento, que nos cativava e ajudava
muito ao desenvolvimento da nossa mentalidade crítica. Discutíamos as ideias e
todos elaborávamos argumentos nas discussões, e até havia risota quando se
percebia a origem das coisas, e lá dizíamos: fulano leu o livro tal! Todos
tínhamos lido... [risos]
Já eram mais as questões sociais
que vos inquietavam?
Não tanto. Era mais geral, as de raiz filosófica. A entrada na política foi
logo a seguir ao 25 de Abril. Eu era funcionário público. O Mari [Alkatiri], o
Ramos Horta, o [Xavier] Lobato e outros conhecíamo-nos, éramos amigos, colegas
do desporto e da escola, e convidaram-me a ir a reuniões de reflexão. Achei
muito interessante a discussão de temas sociais e políticos, que estavam na
ordem do dia. Depois fundaram a ASDT [Associação Social-Democrata de Timor] e
começaram os comícios e a perguntar porque não me juntava a eles. Diziam:
“Antes, com o problema da PIDE, falávamos às escondidas, mas agora vais ver...”
Eu respondia: “Estou a ver é as vossas caras. Até fico confuso a ver-vos!” E
começaram as recriminações. Como resposta só tinha: “Vocês continuem a vossa
luta que eu vou à Austrália, vou trabalhar, arranjo dinheiro e invisto na
economia!” Mas depois não pude voltar logo e tive oportunidade de começar a
perceber as contradições, as intolerâncias, os interesses de cada um, os seus
planos, e achei que aquilo era uma grande confusão. Foi então que comecei a
escrever, no único jornal que havia, sobre sociedade e política.
Fala de nomes muito conhecidos
entre esses amigos. À época já se notavam diferenças de sensibilidade quanto ao
futuro país que sonhavam?
Entre as pessoas, não necessariamente. Mas começou a haver pressão de grupos. A
Fretilin foi criada depois, mas já havia a Associação Social-Democrata, que
incluía o Ramos Horta e o Mari Alkatiri, e a União Democrática Timorense [UDT].
Já no regresso da Austrália, tive a noção do que cada grupo queria, e vários
timorenses começaram a dizer que Portugal estava longe demais e a Indonésia ali
mesmo ao lado e que estávamos liquidados se começássemos à espera do dinheiro e
das decisões portuguesas.
Como eram esses posicionamentos?
Foi na altura em que se formou a Apodeti, próxima dos interesses indonésios.
Porque, no início, a UDT insistia apenas numa transição muito gradual. Eu
próprio, quando comecei a ouvi-los falar sobre isso, concordei, para que, ainda
ligados a Portugal, se pudessem organizar os recursos humanos que permitissem
chegarmos à independência de forma consistente. O grande volte-face foi a ASDT
transformar-se em Fretilin.
O que leva uma organização
social-democrata a transformar-se numa frente revolucionária?
Nesse momento, eu estava ainda na Austrália. Segundo me apercebi, tiveram
influência os estudantes que estavam em Portugal a frequentar a universidade, o
Abílio Araújo e outros. Ele tinha contactos com elementos dos movimentos de
libertação dos territórios coloniais portugueses africanos e foi-se aproximando
das ideologias que os orientavam. Cada timorense que vinha estudar para
Portugal era doutrinado por ele, formando um grupo pequeno mas muito eficaz que
logo regressou a Timor. Como eram mais bem preparados politicamente do que os
que estavam no território, influenciaram ideologicamente a mudança do partido.
Timor era a colónia mais distante
e a mais abandonada. Isso terá facilitado a vida, com menos vigilância e
perseguições?
Acredito que sim. A presença portuguesa, apesar das fragilidades, teve de ser
assegurada enfrentando algumas sublevações significativas, até à queda final,
mesmo que esta não tenha sido clamorosa, até porque as forças ali estacionadas
eram poucas e estavam desmembradas. Durante séculos, os portugueses
aproveitaram-se da estrutura social timorense, corporizando múltiplos pequenos
reinos, e dos conflitos entre eles, apoiando estrategicamente uns contra
outros. Em 1912 deu-se uma grande rebelião, e a gradual intercomunicação
permitiu que as diversas tribos passassem a conhecer-se melhor e a entenderem
as similitudes, apesar das disputas pela posse das terras.
Como é que soube do golpe em
Portugal? Foi logo no 25 de Abril?
Não foi de imediato. Por alguma razão éramos o território mais ostracizado e
isolado. Apercebemo-nos através da rádio de forma confusa, e os militares
portugueses estacionados começaram a reagir com satisfação. Ficámos na
expectativa e desconfiados, mas depois de estarmos certos do que realmente
tinha acontecido começámos a trocar impressões e a falar às claras.
Estavam ainda sem imaginar os
conflitos entre a UDT e a Fretilin. Como foi essa guerra que dividiu a
sociedade timorense, famílias, grupos de amigos, e fez mortos?
Aconteceram alguns excessos, inevitáveis naquela altura, tanto da parte da
Fretilin como da parte de alguns nacionalistas, que, vendo o rumo dos
acontecimentos, começaram a apoiar a UDT, que desencadeava por si uma
resistência grande aos factos tendentes à independência. Numa sociedade como a
timorense gerou-se uma tensão inesperada cada vez mais fraturante. A rivalidade
de opiniões e as contradições acerca da questão da independência foram
notórias, e começaram pequenos focos de confronto. Tentei denunciar o perigo no
jornal, e a certa altura nem da UDT nem da Fretilin me queriam enxergar, por
ter um posicionamento independente. Amigos que tinha de um lado e de outro
criticavam-me asperamente e viravam-me as costas.
Quando é que percebeu que o
confronto armado iria acontecer?
A administração portuguesa já não estava apta para resolver a situação, via-o
claramente quando discutia com responsáveis portugueses, e diziam que quando
queriam debater o processo de descolonização os interlocutores apenas falavam
empolgadamente de marxismo-leninismo... Talvez pela força que a Fretilin ia
demonstrando possuir, o Governo, não abertamente, inclinava-se para lhe dar um
certo apoio.
Havia uma situação curiosa no
seio do Exército, em que os comandos estavam próximos da UDT e os milicianos da
Fretilin...
Sim, era uma situação incontrolável, e falando com o Magiollo Gouveia — oficial
do Exército então ainda no comando da Polícia de Segurança Pública, que depois
se demitiria do cargo e desertaria das tropas portuguesas para se juntar às
forças da UDT — também o acusei de estar a favorecer claramente este lado da
contenda, o que perigava o ainda possível equilíbrio que mantivesse a paz. Fui
acompanhando os comícios de ambas as forças, e o embate era em torno da
aplicação da filosofia marxista, tentando mobilizar as multidões que iam a
essas reuniões e com ações diretas nas comunidades. Entendi que era altura de
me decidir. Tinha grandes amigos também na UDT, mas aderi à Fretilin.
A tensão foi aumentando
rapidamente...
No sítio onde eu morava com a família, uma localidade chamada Farol, aquilo era
tudo UDT. Observei o crescendo de tensão, e em Farol sentia-me de certo modo
deslocado, por isso fui à sede da Fretilin e fiquei lá. E o embate deu-se no
golpe ensaiado. As pessoas estavam alerta, sabíamos que algo ia acontecer, sem
saber exatamente o que seria.
Antes mesmo do golpe retiraram-se
para a montanha?
Só mais tarde. Estava na sede apenas por razões de segurança, não era membro do
Comité Central nem quadro, apenas simpatizante. Na noite de 10 de agosto estava
de certo modo responsável pela segurança civil, e a situação era já previsível.
Então fui falar com uns membros do Comité Central e perguntei-lhes porque é que
não tomavam a iniciativa. Hesitaram na resposta, com evasivas e indecisões.
Trocámos impressões sobre a situação... e resolveu-se que eu ia falar ao
quartel-general das forças portuguesas. Apareceram uma data de oficiais...
majores, capitães... e disseram que se eu estava em comunicação com os membros
do Comité Central que lhes transmitisse que queriam falar com eles. Regressámos
à sede e começámos a organizar-nos.
Para quê? O que achavam que ia
acontecer?
A tensão crescia, e era clara a incapacidade do Exército para controlar a
situação. Como responsável pela segurança dos nossos civis, à noite mandei
chamar todos os membros do Comité Central que ainda estavam em Díli para que se
reunissem na sede, de modo a continuar organizadamente a retirada estratégica
para Aileu, nas serranias que circundavam a cidade.
Quem deu essa diretiva?
O vice-presidente da Fretilin. A ordem foi acatada por todos os presentes.
Regressaram a suas casas, para depois, às quatro horas da madrugada, estarem
todos ali reunidos, para a caminhada. Todavia, à hora definida, só apareceu um.
Ficámos à espera uma infinidade de tempo, até que decidimos, como já era manhã,
seguir viagem. Com tudo isto, chegámos tarde ao ponto de encontro, nos
arredores da cidade, e já os outros grupos tinham partido. Como eu não sabia o
caminho para Aileu, eu e o meu companheiro Juvenal retrocedemos.
Não era meterem-se na boca do
lobo?
Não tínhamos alternativa senão regressar à sede. A administração portuguesa
estava a preparar-se para apoiar uma intervenção de oficiais timorenses do
Exército. Fomos intercetados e perguntaram-nos se havia na sede algum membro do
C.C., para participar num hipotético diálogo, enquanto outro grupo de oficiais
estava em conversações com a UDT, para ver se seria possível resolver
politicamente a situação. Falei com o Juvenal e lembrei que teria dificuldades
de ligação com os camaradas mais responsáveis, pelo que me parecia que era
proveitoso que fosse ele ver o que os portugueses queriam, enquanto eu ficava
de guarda à sede. Sugeriram-lhe que houvesse diálogo e levaram-no de volta. No
dia seguinte, como previsto, vieram buscá-lo, para integrar uma reunião
tripartida entre eles, nós e a UDT. Uma discussão em que se previa a mediação
dos militares de origem timorense integrados no Exército português. Quando ele
regressou, vinha apreensivo, até porque nas circunstâncias em que se encontrou
não pôde deixar de desvendar que o C.C. estava em Aileu, ao que eles afirmaram
estarem dispostos a levá-lo de helicóptero até lá para contactar alguns
membros. À hora combinada vieram buscá-lo. Soubemos depois que o helicóptero
tinha sido apreendido no seu destino, porque a Fretilin já estava preparada
para desencadear o contragolpe, em reação às movimentações golpistas do adversário.
Foi esse o momento em que se deu
o primeiro volte-face nos acontecimentos?
O helicóptero foi e já não regressou. As populações daquela região aderiram à
Fretilin, declarando-se a contraofensiva. A UDT conseguira a adesão de mais
tropas que tinham estado integradas no Exército colonial, o que significava
também a apreensão e redistribuição de armamento. Vieram em camiões de Baucau e
de Los Palos, comandados pelo capitão Nino, que era cunhado dos Carrascalão,
chefe da UDT. Eu não ia a casa há semanas, e a minha mulher levou as crianças
para estarmos um pouco juntos. Foi quando começaram a dizer que vinham carros
cheios de militares. Mandei-os embora, todo o mundo fugiu, fiquei sozinho na
sede com um irmão do Ramos Horta, Francisco, e outro militante. Sugeriram-nos
que fugíssemos, mas nós permanecemos ali. Chegaram os camiões e estacionaram
diante da nossa sede, tendo saído de um deles o Magiollo, o capitão Nino e o
João Carrascalão.
Já Magiollo estava integrado na
UDT?
Organizado nas suas forças ou então a organizá-las, sozinho ou com o apoio de
Nino. Magiollo, de chicote na mão, diante da sede, muito excitado, olha para
mim e grita, apontando para a nossa bandeira: “Arreia já esse trapo!” Disse
aquilo três vezes, e eu respondi: “Não percebo...” Ele voltou a gritar-me, e eu
voltei a responder-lhe que não percebia o que é que ele queria. O João
Carrascalão também começou a gritar para eu tirar a bandeira, e eu respondi que
era nosso direito ter o símbolo hasteado na nossa sede. Continuaram a
ameaçar-nos fisicamente, até que eu disse: “Se quiserem, arreiem-na vocês pela
força, que eu não o faço!” Levaram-na para o jipe e ameaçaram que não saíam
dali. Respondi que era problema deles mais aqueles camiões. Os tropas estavam
visivelmente incomodados. Olhei-os frontalmente, passei com os olhos um por um,
e entrei no edifício. Eles continuavam aos berros e levaram-me de seguida.
De uma forma geral, qual era o
ambiente na cidade?
Em Díli, e noutros locais também, estavam a prender pessoas que nos eram
afetas. Fomos levados para a sede do golpe. A minha sorte foi ter ido naqueles
cinco ou seis camiões com militares, porque acalmaram as forças da UDT. Estava
apenas de calções. Todos os prisioneiros que já ali estavam tinham as caras
doridas, num bolo, via-se que tinham sido muito bem ‘tratados’, mas foi um
reencontro cheio de gritos de alegria. Ficámos ali cerca de uma semana.
Saíram todos nessa altura?
Abandonaram-nos ali. Entretanto, em Aileu tínhamo-nos organizado, e em Díli as
companhias restantes juntaram-se à Fretilin e eles tiveram de retirar.
Começaram então os tiros e os combates. Antes dessa fase eram apenas
escaramuças ligeiras. Nunca vi tanta angústia entre as nossas forças. Sobretudo
quando os nossos, inadvertidamente, bombardearam o local onde nos encontrávamos
ainda prisioneiros. Nessa altura, os que nos tinham cativos não resistiram
naquela posição e retiraram, deixando-nos presos. Ainda atiraram duas ou três
granadas contra as celas. Ficámos de olhos semicerrados a ver para onde caíam,
mas quem as atirou não quis liquidar-nos, ou não sabia fazer aquilo, ou foi do
nervoso, e não rebentaram.
Conseguiram escapar da prisão e
subitamente estão no meio de uma guerra fratricida...
São sempre as guerras mais terríveis, entre irmãos. Depois de uma saída muito
rápida, fomos refugiar-nos numa igreja, onde já estavam as forças militares que
tinham aderido ao nosso movimento. Estávamos ainda a três meses de distância da
proclamação unilateral de independência feita pela Fretilin.
Ultrapassemos esses curtos
momentos de guerra civil para falar da invasão indonésia que se seguiu. O
Xanana estava em Díli?
Não, não estava. Encontrava-me na fronteira. Depois de empurrarmos os
contingentes afetos à UDT para o lado de lá da fronteira, os indonésios
começaram a reagir. Estavam preparados para a guerra, mas inicialmente
utilizavam o que chamávamos as milícias, civis pró-indonésios incorporados para
os combates. Se não estavam militarmente organizados, em termos de pensamento
estavam preparados para cobrir a defesa da fronteira. Foi uma situação
complexa, pois a linha de demarcação não era tão clara e não podíamos contar
com apoio logístico, dada a intensidade de ataques de um exército que estava bem
preparado, e os indonésios foram ganhando terreno e ocupando regiões. Depois
dos acontecimentos de agosto, no mês seguinte fui eleito para o Comité Central,
nomeado responsável pelo departamento da formação. Já nessa qualidade,
desloquei-me para observar o que se passava em Maliana, quando fui surpreendido
pela invasão com tropas, veículos militares, armamento, e tivemos de fugir.
Como reagiu a Frente perante a
invasão?
Houve uma reunião extraordinária do Comité Central, onde foi afirmado que, com
aquele movimento de tropas na área de fronteira, a invasão seria inevitável, e
nós não tínhamos meios para enfrentá-la, muito menos contê-la. Foi então
decidido enviar representantes para o exterior para estabelecer urgentemente
contactos e solicitar apoios, a fim de tentarmos estancar a ocupação. Antes
mesmo de os emissários saírem da reunião, o Presidente Rogério Lobato fez uma
intervenção acusando os membros do C.C. de estarem seguros e confortáveis, sem
arriscarem nada, enquanto outros militantes resistiam e morriam na fronteira.
Como reação, três ou quatro de nós levantámos a mão e dissemos que os que se
deixavam ficar na capital era porque queriam e que naquele mesmo dia saíamos.
Vendo isso, todos levantaram a mão e foram saindo em grupo. Nós fomos em direção
à ribeira de Lois, o curso de água mais caudaloso do país. O inimigo teria
muita dificuldade em ultrapassar os terrenos montanhosos que a circundavam.
Tínhamo-nos dado uma semana para observar como paravam as coisas e tentar
participar na resistência efetuada pelas famílias, que já exerciam um
verdadeiro movimento subversivo patriótico. Quando chegámos, apresentámo-nos ao
nosso comandante da região, o Ermenegildo, que ficou muito admirado,
perguntando o que estávamos ali a fazer. Perante a evidência, apenas comentou:
“Fiquem naquele canto e não me atrapalhem!” Estivemos muito tempo em Lois.
Nessa altura, os nossos mensageiros estavam de partida de Timor, o Rogério, o
Mari Alkatiri e o Ramos Horta...
Entretanto, decorria a invasão em
grande escala.
Confrontámo-nos com as primeiras evidências das manobras indonésias. Às quatro
da madrugada, ouvimos um enorme barulho. Saímos das barracas, olhámos para o
céu e vimos todos aqueles aviões a passar. Só pensávamos: “Meu Deus, o que nos
vai acontecer?” O Ermenegildo foi enviado a Díli para saber o que lá se
passava, mas já não pôde entrar na cidade, viu as pessoas a fugirem e regressou
com a notícia da ocupação. Deslocámo-nos para sítios protegidos, onde se podia
observar as operações lá em baixo na cidade, e confirmámos que a população
recuava para as montanhas. Durante o contragolpe, na guerra civil, a minha
família tinha-se refugiado num certo local, e ainda fui lá abaixo para ver se a
via, mas não, o que significava que tinha ficado retida na cidade. Os indonésios
trocavam tiros com os nossos lá em baixo. Fui até perto da cidade, para ver se
tinha possibilidade de ajudar gente a fugir ao cerco e levá-los para a
montanha, mas não havia hipótese de contactos.
Mas a opção de estabelecer a
guerrilha não é imediata.
O inimigo estava a avançar para leste, e nós dirigimo-nos para oeste, para nos
posicionarmos nas suas costas. O Nicolau Lobato, com quem eu tinha feito a
tropa no Exército colonial, incumbiu-me de estabelecer a defesa de civis em
fuga e ensaiar a resistência em local que dificultasse a progressão do inimigo
em direção de Ermera. Estivemos ali umas duas semanas. O comandante
Ermenegildo, com quem estava em contacto, alertou-me de que as tropas
indonésias tinham ultrapassado as nossas linhas de defesa, e na área onde nos
encontrávamos o avanço deles era muito mais forte. Nessa altura, os membros do
Comité Central já tinham saído de Aileu. Fomos de Unimog rapidamente à procura
deles. No dia a seguir do recuo, o inimigo chegou a Aileu com tanques e armas
pesadas. No nosso reencontro fizemos uma reunião em que o Lobato sugeriu que
cada um escolhesse uma região, preferencialmente que conhecesse ou que fosse
sua terra de origem, a fim de nos dispersarmos até que a situação permitisse
reunirmo-nos outra vez. Então fui para Manatuto, a minha terra.
Estamos a quantos meses da
decisão de instalar a guerrilha?
Quando dispersámos era janeiro. Tivemos a sorte de podermos instalar-nos em
sítios conhecidos, em que tínhamos apoios. Em março pudemos ter uma primeira
reunião envolvendo os dirigentes políticos e o nosso comando militar, para
analisarmos a nossa capacidade armada. Os comandantes estavam aflitíssimos, e a
decisão em jogo era pedir ou não apoio exterior. Um dos pecados mortais dos
nossos políticos da altura era não entender o que poderia passar-se no nosso
território. Vinham imbuídos das teorias adquiridas nas lutas de Angola,
Moçambique e Guiné, e nem imaginavam o que teriam de enfrentar! Nessa altura,
os contactos políticos que tínhamos estabelecido garantiam podermos trazer de
Moçambique armamento e veículos que ali estavam estacionados, para utilizar em
Timor. Xavier do Amaral estava presente na reunião. Ao ver as acusações que os
políticos, inexperientes das coisas da guerra, faziam aos militares,
chamando-os de revisionistas, impôs-se, gritando: “Não quero saber se são
revisionistas ou neorrevisionistas, se são capitalistas, comunistas ou
socialistas... desde que nos deem armas. Peçam-nas!” Cada um regressou ao seu
sítio, mas notava-se esse afastamento entre políticos e militares, e durante um
ano isso custou-nos muito, provocando a ineficácia da nossa resistência. Em
maio houve nova reunião, bem mais importante, pelas decisões de organização.
Até ali, a nossa participação na guerra foi mais de oposição, em defesa e ajuda
das populações. Ainda não era a guerrilha. Fomos perdendo terreno gradualmente
mas ganhando a estima das populações. Nesse segundo encontro discutimos dois
pontos: adotarmos uma estratégia militar e transformarmo-nos num partido
marxista-leninista-maoista.
Mas essa decisão era apenas
ideológica, teórica?
Não só. Por exemplo, por razões ideológicas, substituía-se um bom comandante, e
vitorioso contra o inimigo, por um jovem inexperiente, porque tinha um discurso
mais conforme com a linha política! Por outro lado, a direção optou pela
estratégia maoista das grandes marchas, a exemplo da história da China. Uma
imitação desajustada, e não éramos nós os únicos a querer ganhar a guerra, o
inimigo também queria. E já estávamos a pensar formar grandes companhias de
soldados e coisas assim!
Como armavam esses efetivos?
Nessa altura, detínhamos cerca de 26 mil armas... Havia recontros com o
inimigo, e éramos habilidosos na captura de armas e munições quando tal
acontecia. Em 1979, quanto eu estava a estudar as táticas de guerrilha, mandei
grupos de batedores que não descobriram nada. Então, em 1980, internei-me na
montanha com uma companhia de 70 homens armados. Percorremos o país e só
encontrámos dois pelotões e uma companhia já a oeste e pequenos grupos aqui e ali.
No mesmo ano, em março, sobrava-nos, neste grupo, cerca de 700 armas, para mais
de 1500 guerrilheiros. Foi nesse ano que nos instalámos e iniciámos a
guerrilha.
Foi difícil o incremento da
guerra de guerrilha?
Inicialmente, sofremos muitos desaires. A lei fundamental da guerrilha é o bom
conhecimento do terreno, e ainda não o tínhamos. Fomos evoluindo, mas havia
companhias em determinados locais em que foi mais complicado chegarem a essa
performance. Melhorámos, em 1984, quando entregámos maior iniciativa aos
comandantes, limitando a ação do Estado-Maior, mais teórico. A partir daí, até
1986, foram anos de ouro. Tomámos a decisão de que cada armamento capturado era
para a companhia que o capturava, e isso fez desenvolver a nossa atividade. Mas
houve entretanto a mudança de tática indonésia, que deixou de agir com
batalhões e material pesado. Pela nossa parte, criámos uma quebra de confiança
nas forças indonésias, provocada pela eficácia dos nossos pequenos grupos de
ataque, quatro ou cinco combatentes. Eles perceberam que também teriam de agir
assim, e passámos a ser atacados por núcleos muito menores. Sofremos com isso
várias perdas. A partir de 1987 recompusemo-nos, e o inimigo viu que a mudança
de tática tivera sucesso, mas deixara de ter continuidade. Da nossa parte,
porque tínhamos cada vez menos efetivos, passámos à tática do “bate e foge”,
quando eles estavam de regresso das surtidas, e isso causou imensos danos na
confiança do inimigo. A partir dos finais dos anos 80 e pela década seguinte,
passámos a conhecer melhor os seus batalhões, as suas limitações, os mais
aguerridos ou os mais amedrontados e as suas formas de agir.
Como é que conheceram isso?
Tínhamos informações sobre os batalhões que saíam dos quartéis e vimos as
diferentes quebras de moral. Havia os que não eram muito combativos e menos
ágeis. E escreviam mensagens nas árvores como: “Não queremos morrer!”
Como se fosse um pacto...
O pacto foi posterior, na altura em que fazíamos fogueiras para cozinhar, e
eles também, ou à noite, e isso servia de aviso entre nós e evitava-se o
contacto, às vezes durante meses... Havia alturas em que retirávamos dos nossos
acantonamentos e eles chegavam, pegavam fogo, os helicópteros metralhavam, mas
já lá não estávamos, e eles podiam reportar um grande combate sem perdas nem
prisioneiros. Aí, sim, houve um verdadeiro pacto. Por outro lado, quando eles
deixavam o acampamento para ir em patrulha, nós íamos até lá... e sempre nos
deixavam sal, açúcar, noodles... Mas quando se tratava de um batalhão
aguerrido, ficávamos bem escondidos. Com o incremento da nossa rede
clandestina, as pessoas que recebiam armas dos indonésios para nos combater
cediam-nos munições e davam informações preciosas. Havia redes de apoio que
chegavam a informar-nos em que árvores iam deixar munições e medicamentos.
Todavia, o vetor fundamental foi
a boa relação com as populações civis.
Eram nossos aliados. Lembremos que uma percentagem esmagadora da população
estava logo no início contra os invasores. Depois foram sofrendo a repressão,
os dirigentes e líderes políticos foram sendo massacrados, quem falasse
português era preso e liquidado, e os civis tiveram o sofrimento de três anos
refugiados no mato, com fome, frio, doenças... Quando regressaram às aldeias
estavam esfomeados, e foi a Cruz Vermelha Internacional que os salvou. E
perderam as poucas riquezas e bens, porque os indonésios levavam tudo o que
encontravam. Eram essas pessoas que encontrávamos pela calada da noite,
clandestinamente, fidelíssimos aliados, e esses liurais, quando podiam, traziam
as populações para se encontrarem connosco.
Mas há momentos em que os
guerrilheiros vivem situações críticas, escondidos em covas e sem comida.
Quanto à falta de víveres, não constituiu problema maior. O organismo humano
habitua-se com alimentação mínima. Os momentos mais dramáticos eram diferentes.
Nos primeiros tempos da guerrilha houve muitos companheiros, que eram exemplo
de combatentes e bons comandantes, que foram aliciados para trair. Houve outro
momento trágico, quando uma companhia, que me acompanhava há muito, foi sendo
atacada, e dos 70 e tal homens, no fim, restaram 12!
Como é que fazia o contacto e
dava as diretivas?
Quando a nossa organização já estava sólida, deslocava-me sozinho através do
território, era mais fácil utilizar as redes viárias para as viagens. Ia de
carro, com o apoio de membros da nossa rede clandestina civil. Era mais fácil a
deslocação pessoal do que de um grupo de guerrilheiros.
Viajava de dia?
Sim, com os devidos cuidados. Muitas vezes regressava de motorizada. Quando os
indonésios iam em operações, levavam a única fotografia que tinham minha,
tirada há muitos anos. E passei muitos postos de controlo de motorizada...
Dizia-lhes bom-dia e boa-tarde, tinha o cuidado de levar maços de cigarros, e
lá passava... O meu condutor da motorizada saudava de cabeça, eu imitava-o, e
raspávamo-nos!
Mas numa dessas vezes foi
finalmente capturado.
Tinha ido a Díli preparar a organização clandestina, sobretudo dos jovens, no
contacto previsto com a delegação parlamentar portuguesa. Não era fácil, porque
os indonésios tudo fariam para impedi-lo, depois da experiência da ação feita
pela juventude por altura da visita do Papa a Timor. Estávamos a preparar-nos
para agir durante essa visita, e eu tinha decidido, com os portugueses ali,
perante eles e os populares, aparecer e fazer uma declaração.
Mesmo correndo o risco de ser
apanhado?!
A facilidade criada nas minhas deslocações empolgou-me, a mim e aos meus
camaradas. Podia ser apanhado, mas no meio de toda a população e diante dos
parlamentares portugueses. Mas a delegação cancelou a vinda, e ao entusiasmo
sucedeu-se o desânimo, e as lamentações foram sendo reproduzidas até que caíram
nos ouvidos indonésios. Durante a preparação, tudo perfeitíssimo, segredo
absoluto, mas depois perdeu-se a disciplina do secretismo, o desânimo de ver
todo o trabalho cair por terra tornou alguns menos vigilantes. Eu já estava em
Díli, numa outra casa antes daquela em que fui feito prisioneiro, e o
responsável veio falar-me e dizer que o pessoal estava desorientado, o inimigo
daqui a nada ia começar com as torturas. Todos os cartazes que foram levados na
manifestação de 12 de novembro, nas comemorações diante do cemitério, não foram
feitos nos dias anteriores, era material preparado para receber a delegação.
Conseguimos acalmar as nossas hostes, embora muita gente fosse apanhada e
morta. Eu fui continuando o meu trabalho de contactos no território e em bases
de apoio que tinham sido desativadas por força da pressão. Combinei com os
comandantes sem atividade que preparassem os homens, que eu traria armas do
leste para serem distribuídas naquela região, limítrofe de Remelau, para abrir
mais uma frente de combate. Eu ia voltar para o mato, mas regressei a Díli à
espera que o armamento chegasse. Quando isso acontecesse, seria o padre Mário
Belo, um amigo já falecido, que me levaria a pouco e pouco as armas até ao
mato, sendo que eu levaria a última leva e criaria um novo foco de resistência.
Mas houve falhas de segredo, e um timorense de origem chinesa, que costumava
trazer-me de Cabelaque na sua motorizada, foi preso. Talvez por estar um pouco
embriagado, começou a falar demasiado. Foram avisar-me disso. As coisas
complicavam-se, e os meus contactos insistiam para que saísse da cidade e
regressasse à montanha. Naquele momento de decisões, resolvi ficar em Díli e
não fazer nada em minha defesa, podendo até ir preso para Cipinang, pois achei
que internacionalmente era mais útil como prisioneiro político incómodo do que
como chefe guerrilheiro isolado com ação limitada.
Foi uma decisão politicamente
incómoda e arriscada.
Sabia que não iriam matar-me. A prática indonésia nesses tempos era matar os
menos importantes e no caso dos mais responsáveis não, para utilizá-los
politicamente. Teriam de aproveitar a minha pessoa para fazer declarações, o
resto dependeria de mim, ao conseguir aguentar as pressões. Numa bela manhã,
estava eu a escovar os dentes quando chegaram. Meti-me outra vez no meu
subterrâneo, onde me apanharam.
A prisão de um símbolo da
liberdade de um povo e que tem uma aura de invencível é algo de complicado...
No primeiro mês estava mesmo aflito, no sentido da repercussão que a minha
detenção poderia causar entre as nossas forças.
Podia ter desencadeado uma
rendição geral.
Sim, mas ao tomar aquelas decisões lembrei-me de que em 1980, meses após a
morte de Xavier Lobato, os indonésios tinham distribuído panfletos apelando à
rendição. Nessa altura, foi uma tristeza generalizada, uma quebra geral da
moral, mas deixei-os superar aquele estado de espírito e chamei as minhas
tropas, lembrando-lhes os nossos objetivos, que em nada se restringiam à figura
de Lobato, mas da pátria sofrida.
A prisão é então feita porque
estrategicamente resolve dar um rumo diverso à caminhada de libertação?
Não foi assim tão meditada. Estava em Díli à espera das armas, uma questão de
semanas. Mas nesse espaço de tempo é que me ocorreu toda a reflexão que fiz.
Foi torturado?
Não fisicamente. Aliás, eu estava a prever mais pressão psicológica do que
tortura física. Tive essas pressões, mas também bati com o punho na mesa. Se
eles estavam formados em coação psicológica, eu estava em conhecer os meus
soldados, as suas reações...
A sua prisão abalou as estruturas
do movimento.
Chocou, sim, como chocaram muitas outras prisões. Cada soldado sofria choques
individuais, porque sabia que os seus familiares eram torturados.
Havia algo preparado para o caso
de acontecer a sua prisão, como a substituição do comando?
Nunca se pensou nisso. A minha decisão fora tomada naqueles poucos dias, sem
discussão.
A guerrilha não parou...
Não parou, hesitou apenas. Havia outros comandos, gente capaz de assumir a
direção. E já havia essa experiência, em todas as companhias, a de ultrapassar
a morte de um bom comandante.
Foi sujeito a interrogatórios
difíceis?
Não diria tanto. Estive uns dias em Díli a ser interrogado. O comandante-chefe
das Forças Armadas foi visitar-me à prisão; falámos através de um intérprete.
Eu estava algemado, e ele ordenou que me retirassem as algemas. E foi muito
respeitoso durante a conversa.
Durante a sua detenção, houve a
aparição na televisão, transmitida em todo o mundo...
Foi uma filmagem editada, imagens manipuladas. Foi antes do julgamento. Se
fosse positiva para o adversário, nem teria ido a julgamento! Depois da prisão
perpétua tentaram explorar tudo isso e modificaram a sentença para 20 anos.
Depois foram sete anos na prisão
de Cipinang. Terão sido os anos menos difíceis neste percurso?
No que me toca pessoalmente, sim. Não sofri particularmente, e até tinha
visitas regulares de pessoas que me eram queridas. Não posso deixar de destacar
a importante visita de Nelson Mandela, que muito me honrou e deu outra moldura
à minha detenção. Mas foi muito complicado dirigir a luta ali detido. Havia que
tomar decisões, e não posso minimizar os que estavam fora, mas devo dizer que a
minha insistência em alguns aspetos, nomeadamente no cumprimento do referendo,
dependeu muito da teimosia e dos malabarismos para tentar por tudo continuar a
dirigir a luta, mesmo preso. E houve outros prisioneiros, nomeadamente os
jovens da Pró-Democracia, que também tiveram uma atividade marcante.
Em 1999, é libertado. O que é que
se sente numa ocasião dessas?
Senti uma ânsia enorme de retornar à pátria. Mas foi-me impedido e tive de
esperar uma ou duas semanas em Jacarta. De Salemba, na residência fixa após
Cipinang, era-me já permitido contactar com os nossos via telefone, e fui
acompanhando a evolução da situação difícil por que Timor passava, todo o
processo antes e depois do referendo, acompanhei a situação de violência que
estava a instalar-se e da fuga da população de Díli. A minha vontade era seguir
para lá imediatamente! O primeiro sentimento, quando pisei o solo pátrio, foi
de total tristeza. Havia muito fumo no ar, devido aos incêndios de casas
assaltadas pelas hordas das milícias pró-indonésias. Via-se toda aquela
destruição. Por outro lado, senti que estávamos libertados. Ainda bem que
recusámos o alvitre da ONU em adiar o referendo.
Nunca conseguiu cumprir um desejo
seu que me confidenciou uma vez ao telefone, o de retirar-se, independência
cumprida, para a sua casinha, pegar ao fim da tarde na sua cana de pesca e
contemplar o pôr do sol enquanto apanhava um ou outro peixinho...
Em 1999 e 2000 percorri o território todo e fui recebido com amor pela
população. Sabe o que lhes disse? “Já cumpri o meu dever. Deixo agora aos
intelectuais e políticos a obra da reconstrução.” Pediram-me que não saísse de
cena. E acabei por aceder às pressões internacionais, nomeadamente da ONU, do
Governo americano e até das entidades indonésias, todos referindo a
estabilidade da região e o garante da paz em Timor.
Conte lá como é que o Alexandre
Gusmão passa a Kay Rala Xanana Gusmão?
As pessoas às vezes ficam dececionadas quando lhes conto esta história e reagem
porque pensavam que era um nome de guerra. Como jornalista, eu publicava
artigos enquanto João Alexandre Gusmão e assinava JAG. Mas quando queria ser
mais corrosivo assinava de forma diferente. Naquela altura havia uma cançoneta
que tinha um refrão ‘xalalala’, e eu adotei-o. Deixei o ‘lalala’, por parecer
muito feminino, e passei a assinar Sha Na Na. Os amigos liam os artigos e
questionavam-se: “Quem será este palerma do Sha Na Na?!” Eu retorquia que não
sabia e adiantava que o meu artigo estava lá, com as iniciais JAG! Num belo
domingo, quando vinha das compras, passei por eles e cumprimentei-os, em
direção a casa. Deixaram que me distanciasse, e todos, em uníssono, gritaram:
“Shanana!” Inadvertidamente, voltei-me, e eles disseram: “És tu, pá!” E desde
aquele dia passaram a chamar-me Xanana. Quanto a Kay Rala, é outra história. No
momento da nossa retirada estratégica inicial, eu voltei a Manatuto para
defender a população. Um certo dia passámos por uma hortinha de mandiocas e
estava lá um velhote. Era um homem magrinho, magrinho, com os cabelos tão brancos
como esta toalha, e apresentaram-me a ele. Olhou-me e perguntou-me como me
chamava. Respondo-lhe: “José Alexandre Gusmão.” Ele repete, diz que conhece o
meu pai, a minha mãe e a minha família toda, e acrescenta: “Foi para este sítio
que os teus pais vieram quando foi da invasão japonesa, esconderam-se aqui.” E
continua: “Agora és comandante de pelotão. Queres ganhar a guerra, ser bom
comandante? Gusmão é nome de família, mas já José Alexandre é nome português.
Se estás a lutar pela liberdade desta terra, tens de levar um nome próprio da
terra. Agora escolhe. Um avô teu chamava-se Se Kay Rala, outro Se Kay Rola.
Escolhe, tens de escolher, se queres ganhar a guerra!” E eu disse: “Kay Rala.”
Deu-me a bênção e retorquiu: “Serás Kay Rala.”
António Loja Neves | Expresso |
Fotos: Luís Barra | em 06.01.2018 às 15h00