Guerra
na Síria ganhou outra dimensão com a morte de Aylan Kurdi. Agora, morte
semelhante lembra conflito de décadas.
Mohammed
Shohayet, de 16 meses, é uma das mais recentes e incompreensíveis vítimas de
uma crise de refugiados que não tem recebido nem um décimo da atenção daquela
que é concedida aos acontecimentos na Síria.
A
criança perdeu a vida, em conjunto com a mãe e um irmão mais velho, durante a
tentativa de travessia do rio Naf, cuja parte do percurso faz fronteira entre a
Birmânia e o Bangladesh. Esta família rohingya deixara a sua aldeia no estado
de Rakhine - onde esta etnia de origem indo-ariana está concentrada na Birmânia
- a caminho do outro lado da fronteira, onde o pai já se encontrava. Mas o
barco em que seguiam afundou-se, devido ao excesso de pessoas a bordo, e Zafor
Alam perdeu a mulher e ambos os filhos. Ontem, em declarações a vários órgãos
da imprensa internacional lançou um apelo, pedindo que cesse a violência das
autoridades birmanesas sobre os rohingya, etnia que segue o islão e aquém o
governo de Naypyidaw não reconhece o estatuto de etnia nacional nem de
cidadãos, desde os anos 80, e tem ativamente perseguido e procurado expulsar do
país.
Tem havido sucessivos ciclos de violência e foram impedidos de votar nas
eleições de 2015.
"Quando
olho a imagem [do corpo sem vida do filho na margem do rio], sinto-me morrer.
Não há nada que me prenda à vida neste mundo", afirmou Zafor Alam,
"implorando a todo o mundo para que aja agora" ou as forças de
segurança do regime birmanês "irão matar todos os rohingya". Imagens
divulgadas desde outubro, quando se iniciou a atual crise, indiciam situações
de violência generalizada envolvendo os militares.
Um
relatório da Amnistia Internacional (AI) divulgado em meados de dezembro - À
beira da rutura. Os Rohingya: perseguidos em Myanmar [designação oficial
da Birmânia], abandonados no Bangladesh - traça um panorama trágico
para esta comunidade, que é expulsa de um país e deixada à sua sorte no outro,
quando não forçada a regressar ao primeiro. De acordo com o documento da AI,
pelo menos desde novembro, as forças de segurança do Bangladesh estão
"deliberadamente a obrigar as populações rohingya a voltarem para
trás", isto a reentrarem na Birmânia. Por outro lado, os rohingya que
conseguem chegar a países da região, como a Malásia, Paquistão Indonésia ou
Tailândia, não têm aqui garantido o estatuto de refugiado. De acordo com a AI,
não têm acesso ao mercado de trabalho e podem ser detidos e expulsos a qualquer
momento.
Em
crises passadas, como a de 2015, quando milhares de rohingya procuraram chegar
de barco aos países acima referidos, muitas embarcações foram deixadas sem
apoio no alto mar ou levadas de volta a águas birmanesas.
O
relatório descreve situações de destruições de aldeias pelas forças de
segurança birmaneses, um alto grau de violência sobre civis, violações de
mulheres e outras situações que configuram, segundo uma das suas autoras disse
ao DN, possíveis casos de crimes contra a humanidade e genocídio.
O
pai de Mohammed explicou que na aldeia onde esta família vivia,
"helicópteros sobrevoaram o local, abrindo fogo sobre nós". Zafor
Alam contou ainda que os seus avós foram queimados vivos e todas as habitações
destruídas.
Na
entrevista que concedeu por telefone ao DN, uma das autoras do relatório, Laura
Haigh mostrou-se desapontada com a atuação de Aung San Suu Kyi, que sem o ser
nominalmente, desempenha as mais importantes funções governativas, notando que
o seu papel no passado e enquanto Nobel da Paz devia mostrar outro tipo de
atenção à presente crise.
No
final de dezembro, um grupo de 23 personalidades, entre as quais alguns
distinguidos com o Nobel da Paz, endereçaram uma carta aberta ao Conselho de
Segurança das Nações Unidas chamando a atenção para a gravidade da situação. Na
carta criticam abertamente Suu Kyi, notando que, "apesar de repetidos
apelos", ela "não tenha tomado nenhuma iniciativa para garantir
completa e igual cidadania para todos os rohingya".
Por
outro lado, um relatório de uma comissão de inquérito oficial, ontem divulgado,
recusa a existência de "genocídio ou perseguição religiosa".
Abel
Coelho de Morais – Diário de Notícias
Foto:
Mohammed Shohayet, de 16 meses, morreu durante a tentativa de travessia do rio
Naf, cuja parte do percurso faz fronteira entre a Birmânia e o Bangladesh. A
imagem foi ontem divulgada pela CNN
Laura
Haigh: "Isto é violência organizada pelo Estado"
Em
conversa telefónica com o DN, Laura Haigh, uma das principais autoras do
relatório de dezembro da Amnistia Internacional sobre a crise dos rohingya e
especialista em Birmânia, explicou a que tipo de perseguições esta comunidade
está a ser sujeita.
Que
provas existem de estar em curso uma tentativa de genocídio da população
rohingya?
O
que a AI documenta na investigação realizada é que está em curso uma campanha
de violência contra os rohingya pelas forças militares e de segurança, uma ação
de punição coletiva contra esta comunidade que pode configurar uma situação de
crimes contra a humanidade. Estamos a assistir à violação dos direitos básicos,
como por exemplo, execuções à margem da lei, o uso de força pelas autoridades
com os militares a deslocaram-se às vilas e a obrigarem as populações a
deixá-las, algemando civis sem qualquer razão ou abatendo-os de modo aleatório,
a detenção de feridos a quem não é concedido qualquer tratamento, ou pessoas
que são levadas para local incerto sem conhecimento dos familiares, sem
formalização de quaisquer acusações ou acesso a apoio jurídico. Estão ainda
documentadas situações de violações ou outros abusos sexuais de mulheres pelas
forças de segurança da Birmânia, que foram entrevistadas algumas neste país e
outras já no Bangladesh, testemunhos corroborados por elementos de outras
agências. Há também casos de mulheres forçadas a tomarem medicamentos para
abortarem, o que prova terem sido vítimas de agressões sexuais. E muitos dos
testemunhos obtidos são de pessoas que tinham acabado de atravessar a
fronteira.
Tem-se
falado de povoações que são totalmente destruídas...
Recorremos
à análise de imagens de satélite da área em causa [o estado de Rakhine] e,
segundo as nossas estimativas, foram destruídas dezenas de milhares de
infraestruturas, na maioria habitações. O governo tem insistido que são as
próprias populações a incendiarem as suas casas, mas se observarmos com atenção
as imagens ao longo do tempo nota-se que o padrão de destruição não é
aleatório, há claramente alvos específicos em cada aldeia ou de uma aldeia em
si, incendiada de forma sistemática. O padrão obedece mais ao de uma operação
militar do que ações de guerrilha, também um dos argumentos do governo, ou a
casos isolados de incêndio.
Isso
prova que as populações estão a ser forçadas a deixarem os locais onde vivem?
O
incêndio das casas é disso exemplo. Segundo a ONU, 30 mil pessoas foram já
forçadas a deixarem a sua habitação. Mas, de facto, não é claro quantas pessoas
estão a ser afetadas. Poderão ser muitas mais. Estamos a falar apenas daquelas
que chegaram ao Bangladesh; há muitas outras refugiadas no Norte da Birmânia,
que procuram esconder-se das forças de segurança. Muitas delas estarão sem
documentos de identidade, o que piora ainda a situação, já que os rohingya têm
um estatuto diferenciado na Birmânia. E se a questão é agora a de garantir a
sua segurança, a longo prazo é o de saber o que lhes irá suceder.
Em
anteriores crises, verificaram-se conflitos entre os rohingya, muçulmanos, e a
restante população, budista. Há notícia agora de situações semelhantes?
Algumas
situações, com as aldeias rohingya a serem atacadas e, principalmente, as
mulheres têm sido assaltadas e roubadas ou aqueles que têm algum gado, este tem
sido levado. Mas, ao contrário de 2012, a grande maioria da violência tem
origem nas forças de segurança.
É
o Estado a perseguir a população.
É,
sem dúvida, o Estado birmanês a perseguir e reprimir uma parte da sua
população. Uma realidade que vem do início dos anos 80 quando as autoridades
começaram a restringir todos os direitos dos rohingya. Isto a que estamos a
assistir é violência organizada pelo Estado.
Abel
Coelho de Morais – Diário de Notícias
Foto:
Laura Haigh é uma das principais autoras do relatório de dezembro da Amnistia
Internacional sobre a crise dos rohingya e especialista em Birmânia