Em
janeiro de 2015, o primeiro ministro de Guiné Bissau, Hernâni Coelho, realizou
um discurso em prol do uso do português como língua de trabalho na União
Econômica e Monetária da África Ocidental (UEMOA). Também no início deste ano
(março), o ministro dos Negócios Estrangeiros timorense declarou que a CPLP
deve promover uma maior difusão do português em Timor Leste e em Bissau. O discurso
destes líderes coloca em cheque a ideia de lusofonia presente na estruturação
da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), que pressupõe um conjunto
de Estados que apresentam o idioma como fator de coesão. Desta forma, o
conceito ao deixar implícita a noção de unidade linguística, minimiza as
diferentes dinâmicas de apropriação de tal idioma, devido às particularidades
históricas vividas por cada país. O texto que segue realiza uma análise sobre
os níveis de adesão ao português em Timor Leste e em Guiné Bissau, assim
como os esforços dos governos destes países na difusão do idioma entre suas
populações.
Partindo
da premissa de Ferdinand Saussure, importante linguista francês do século XX,
observamos que a língua, além de ser um conjunto de signos usado por uma
determinada comunidade para a comunicação entre seus membros, é também uma
instituição social, que ao representar um sistema de valores de um povo, passa
a adquirir uma conotação política.
A
adoção de uma língua oficial por parte de um país expressa significativamente o
caráter político que o uso do idioma possui. Pois tal definição implica
determinar qual língua será usada nas relações oficiais do Estado, em seu
âmbito doméstico e externo, garantida pela lei e prevista na
constituição. Além disto, o papel do Estado na definição da sua língua
oficial torna-se decisivo no que diz respeito ao processo de construção das
identidades nacionais, já que o idioma representa um importante componente
cultural de um povo, contribuindo para a criação da consciência coletiva que,
quando afirmada, acaba por fomentar a unidade política de um país,
concretizando assim sua centralidade estatal.
Há
casos em que a língua oficial adotada coincide com a língua nacional, aquela já
falada por um determinado povo que partilha de elementos étnicos comuns, sem
estipulação de decreto oficial, em outras palavras, é a língua materna. No
âmbito da CPLP, temos como exemplo o caso de Portugal e do Brasil. Mas é
importante salientar que a determinação legal de uma língua pode acarretar um
processo de substituição de valores culturais, pois nem sempre o idioma oficial
está em convergência com a língua materna partilhada por uma comunidade ou por
parte dela, como nos casos de Timor Leste e Guiné Bissau. Na maioria dos países
da CPLP, os diferentes contextos históricos vividos explicam as variáveis do
percentual de adesão efetiva do português nestes países[1]. E nestes casos de divergência, e alta adesão a outros idiomas
que não o oficial, torna-se fundamental o papel dos Estados na difusão de
políticas linguísticas que promovam a língua escolhida.
A
análise do caso de Timor Leste revela a complexa situação linguística no âmbito
deste Estado, que possui duas línguas oficiais previstas pela constituição, o
português e o tétum. A última, é a de maior adesão pelo povo timorense,
que interliga os diferentes falantes de cerca das quinze outras línguas
maternas, ataurense, baiqueno, becais, búnaque, cauaimina, fataluco,
galóli, habo, idalaca, lovaia, macalero, macassai, mambai, quémaqueetocodede,
que estão distribuídas ao longo dos treze distritos que compõe o país. Timor
Leste conta ainda com o inglês e o indonésio como línguas de trabalho.
A
justificativa para tamanha pluralidade linguística na esfera doméstica está no
processo histórico de colonização pelo qual o país passou. Timor Leste esteve
sob dominação de Portugal por aproximadamente quatro séculos, que se estenderam
de finais do século XVI à 24 de abril de 1974, quando o país alcançou sua
independência em razão da queda do Regime Salazarista. A esta época, o tétum já
era usado como principal língua para a comunicação entre os reinos já
existentes. Porém, foi relativamente curto, o espaço de tempo em que se vigorou
a independência alcançada, pois em 7 de dezembro de 1975 Timor Leste sofreu um
violento processo de recolonização, desta vez realizado pela Indonésia. O
término da nova condição colonial, só teve fim devido à intervenção da
Organização das Nações Unidas (ONU) em 1999, culminando com a retomada da independência
do Estado em 2002[2].
Na
década de 80, durante o domínio indonésio, o uso do português foi abolido em
Timor, que passou a ter o bahasa indonésiaimposto como língua oficial do
país. A partir de então, o português passou a ser usado clandestinamente pelos
nativos como elemento de resistência à ocupação da Indonésia e a sua tentativa
de imposição cultural aos timorenses, prevendo até pena de morte para aqueles
que falassem o idioma do antigo colonizador. Nesse contexto, o português passou
a configurar-se como importante fator na construção da identidade coletiva do
povo timorense, sendo o símbolo da luta pela unidade política do país.
Os
efeitos da invasão indonésia em
Timor Leste, no que tange à multiplicidade linguística do
país, expressam-se no fato de a taxa de alfabetização no idioma indonésio ser
de 55,6%, e a parcela do português ser de apenas 39,3%, permanecendo o tétumcom
o percentual majoritário de 77,8% de fluência da população. Tais estimativas
possuem relação direta com o período no qual o bahasa indonésio ocupou
o papel de língua oficial, enquanto vigorava a proibição do ensino do
português. Expressão disto é o fato de que em 2002, na consolidação da
independência de Timor Leste com a promulgação da Constituição que prevê a
língua portuguesa como um dos idiomas oficiais, 90% da parcela da população
timorense não era alfabetizada em português. Tal fato deixou evidente a necessidade
do governo traçar políticas que promovessem a difusão deste idioma, e em razão
deste baixo número de falantes que a Constituição de 2002 também estabelece o tétum,
como língua oficial do país. “O tétum e o português são as línguas oficiais
da República Democrática de Timor Leste.” (Artigo 13).
O
relato de Ruak, ex-líder do movimento de resistência e ex-presidente timorense,
retrata o porquê desta escolha e como o idioma sobreviveu no país, mesmo diante
da política de proibição dos indonésios. Segundo ele, o uso do português
manteve-se firme devido a quatro fatores:
“Primeiro,
a presença da classe dirigente lusófona; segundo, por ser a única língua
ortograficamente desenvolvida; terceiro, porque era a nossa língua oficial
definida desde sempre; por último, porque era uma das armas para contrapor à
língua malaia no âmbito da luta cultural, ressurgindo como desejo de
oficialidade para afirmação identitária dos timorenses. “(Ruak 2001: 47).
Além
disto, é possível atribuir ainda à escolha do Estado pela lusofonia à tentativa
de uma melhor inserção no sistema internacional, pois o português já possuía um
caráter transnacional na época da independência, com a existência da CPLP
(1996), ocupando a posição do oitavo idioma mundial mais falado, com cerca de
230 milhões de falantes, segundo dados da própria instituição. Há ainda contida
em tal opção, que se revelou uma estratégia política do governo, a ideia de
destacar a especifidade do país no âmbito do Sudoeste Asiático, que é o único
da região que possui o português como língua oficial.
Neste
sentido, desde a consolidação da independência, o governo timorense vem
promovendo uma reforma progressiva dos currículos escolares, visando a
introdução do ensino do português já nos primeiros anos de alfabetização no
ensino básico. Tal ação emerge através do Projeto de Reintrodução da
Língua Portuguesa em Timor-Leste (PRLP), iniciativa do Instituto Português de
Apoio ao Desenvolvimento (IPAD)[3], que teve início no ano 2000. O mesmo vem sendo implementado
através do decreto do Plano Estratégico de Desenvolvimento Nacional (PED)[4] que determina o uso dos idiomas maternos enquanto língua
intermediária para a aprendizagem das línguas oficiais, pois o tétum não possui
um léxico publicado, uma terminologia técnico-científica.
“Com
vista a melhorar o acesso à educação e criar bases sólidas em termos de
literatura e escrita em Português e Tétum, os idiomas locais serão usados como
idiomas de ensino e aprendizagem, no primeiro ciclo do ensino básico,
proporcionando uma transição suave para a aquisição das línguas oficiais de
Timor Leste, de acordo com as recomendações da Política de Ensino Multilíngue
baseada nas Línguas Maternas para Timor-Leste.” (Timor-Leste 2010: 21 -
PED).
A
exemplo do que o PED vem tentando introduzir no ensino educacional timorense, o
governo de Moçambique aprovou recentemente, a resolução que estabelece que a
partir 2017 o país promoverá o ensino primário bilíngue do português e das
línguas maternas moçambicanas[5] derivadas do bantu. O processo linguístico no país
se assemelha com o processo timorense de apropriação da língua portuguesa: o
português também foi usado lá como elemento de luta anticolonial. E,
posteriormente constituiu-se como um dos símbolos de construção da identidade
coletiva de Moçambique, que também dispõe em sua Constituição
que “o Estado valoriza as línguas nacionais como património cultural”, (Art.
9). Em tais iniciativas consegue-se promover maior difusão do idioma oficial e,
ao mesmo tempo, o intermédio das línguas maternas no ensino realiza a
reafirmação das múltiplas identidades regionais.
Em
Timor Leste,
com o intuito de tornar efetiva a utilização do português em atos da
administração pública, em 2010, foi aprovada uma resolução pelos deputados
timorenses que torna obrigatório o uso da língua portuguesa nas assembleias,
pelo menos uma vez ao mês. [6]Contudo, a aprovação de tal medida ainda surte poucos efeitos,
pois os próprios parlamentares não são letrados no idioma. A fim de colocar em
prática tal determinação, Timor Leste, em cooperação com o Instituto Camões em
2004, passou a desenvolver uma política de alfabetização em língua portuguesa
dos oficiais públicos.
Dos
esforços para disseminação do português em Timor Leste, há de se
destacar ainda a parceria com os países integrantes da CPLP, sobretudo a
cooperação de Brasil e de Portugal, que colaboram através do envio de material
de didático para as escolas nacionais. Também promovem a ida de docentes de
língua portuguesa para a capacitação dos professores timorenses, que também não
estão plenamente aptos ao ensino da língua, sendo este um grande entrave do
processo de difusão do idioma ao longo do país.
Em
março de 2015, Hernâni Coelho, ministro dos Negócios Estrangeiros de Timor
Leste, declarou em entrevista à agencia Lusa que, para suprir tal defasagem, o
país necessita do apoio dos meios e recursos disponíveis na comunidade
lusófona.
“A
CPLP, através do Instituto Internacional de Língua Portuguesa (IILP) pode
exercer um papel fundamental na minimização dos impactos negativos, que a
interrupção dos 24 anos de ensino do português gerou em Timor Leste, causando
um ‘gap’ entre a geração que fala e a que não fala o idioma”; declarou o
ministro. O IILP é uma instituição da CPLP, cuja finalidade é "a
promoção, a defesa, o enriquecimento e a difusão da língua
portuguesa como veículo de cultura, educação, informação e acesso ao
conhecimento científico, tecnológico e de utilização oficial em fóruns
internacionais” (Estatuto IPLP-1999).
A
instituição também desempenha importante papel neste processo, com uma campanha
de capacitação didática dos educadores nacionais em Timor Leste, iniciada
em 2014. De acordo com a Diretoria de Educação Global do Banco Mundial, a
implantação de tais esforços tem sido positiva, pois a taxa de conclusão da
alfabetização primária no país aumentou de 73% em 2009, e para 83% em 2012.
Porém, tal tarefa educacional é ainda um trabalho para longo prazo, que só
apresentará resultados efetivos nas próximas décadas.
Em
Guiné Bissau,
percebe-se mais uma vez o quanto a experiência histórica vivida por um país
reflete em sua dinâmica linguística. Apesar de o idioma ser a língua oficial do
Estado, o português é falado por menos de 10% da população, segundo dados da
própria CPLP. Na compreensão de tal fato, encontra-se a ideia de que, desde
antes do início da colonização portuguesa no país, nos idos de 1446, Guiné
Bissau já era habitada por balantas, mandingas, manjacos, fulas, felupes e
por outras etnias, o que nos revela uma já existente pluralidade linguística. A
despeito do cenário de ampla diversidade, Guiné Bissau possuía o crioulo
guineense como língua de intermédio na comunicação entre esses diferentes
povos.
A
partir de 1960, conduzida pelo Partido Africano para Independência de Guiné a
Cabo Verde (PAIG), Bissau foi a primeira colônia na África a libertar-se do
domínio de Portugal num processo de lutas que só terminou no ano de 1974.
A época da independência o idioma do colonizador já era o menos falado e o
crioulo representava o de maior difusão entre o povo guineense. A opção de
adotar o português como língua oficial revelou-se pela concepção de Amílcar
Cabral, líder do PAIG, de se alcançar o desenvolvimento e progresso através das
possibilidades de integração internacional que o português oferecia ao jovem
país. No discurso de Cabral, nota-se novamente a estratégia política que revela
a escolha do Estado por um determinado idioma para ser usado como sua língua
oficial:
“Se
queremos levar para frente o nosso povo durante muito tempo a nossa língua tem
que ser o português; (...) devido a necessidade de estabelecer contatos com
outros países e para o conhecimento científico, a Língua Portuguesa é adotada
como Língua Oficial na Guiné Bissau, assumindo o estatuto de língua da
administração, justiça, legislação e de comunicação com o exterior”. (Cabral
1990).
Na
atualidade, o crioulo permanece como a língua nacional de maior expressão no
país, não apenas ocupando majoritariamente as interações sociais da vida
ordinária no país, mas também sendo utilizado como instrumento de comunicação
em atos oficiais da administração pública e do ensino escolar, apesar de sua
grafia ainda permanecer sem regulamentação.
Em
janeiro de 2015 o primeiro ministro de Guiné Bissau, Domingo Simões Pereira,
iniciou esforços numa tentativa de consolidar a língua portuguesa como língua
de trabalho da União Econômica e Monetária da África Ocidental (UEMOA)[7], organização de integração regional que é majoritariamente
francófona.
“Eu
arrisco perguntar se o tempo não chegou para a adopção do português como língua
de trabalho da nossa comunidade, pois para participarmos no processo de
transposição de textos da Comunidade, ao mesmo tempo que outros países, é
essencial que as versões em português estejam disponíveis”,afirmou Simões
Pereira, reiterando que a Guiné Bissau, por ser o único lusófono, era o país
com a menor taxa de aplicação da legislação comunitária.
A
iniciativa do primeiro ministro guineense foi apoiada pela CPLP, que também
realiza esforços para que o português seja uma das línguas de trabalho das
organizações regionais africanas que contenham países lusófonos, a exemplo da
Comunidade Econômica dos Estados da África Ocidental[8] (CEDAO) que tem no português um dos idiomas de trabalho
desde 2010, devido à participação de Guiné Bissau e Cabo Verde na instituição.
Observa-se
ainda o empecilho da falta de capacitação dos professores guineenses,
semelhante à dificuldade enfrentada por Timor Leste, para alfabetização dos
seus nacionais na língua portuguesa. Em vista disto governo tem iniciado
parcerias de cooperação com Instituto Camões de Portugal (IC), para a formação
de professores do ensino básico da língua portuguesa. Outro obstáculo do caso
guineense consiste no fato de que o português não se caracteriza como forte
componente da identidade nacional como em Timor Leste, Em Guiné Bissau quem
assume essa relevância é o crioulo, o que acarreta num fraco estímulo ao uso do
português pela população. Apesar da sua oficialidade, a língua portuguesa
não se configura como elemento construtor de identidade cultural para o Estado
guineense, seja em âmbito regional seja nacional.
Com
efeito, os casos de adoção do português por Timor Leste e Guiné Bissau como
idioma oficial do Estado exprimem o caráter político implícito na escolha da
língua oficial. A retomada do idioma do colonizador surge, portanto, como
estratégia de tais países para firmarem-se no cenário internacional e criarem
vínculos com instituições relacionadas ao idioma escolhido. Trata-se, portanto,
de uma ação orientada para constituição de redes de solidariedade entre tais
países e os outros também falantes do mesmo idioma.
Por
fim, as diferentes experiências históricas vivenciadas fomentam a desconstrução
em torno de um sentido de unidade linguística no âmbito da CPLP, devido à
pluralidade étnica e cultural dos Estados-membros da comunidade. Os países que
possuem índice majoritário de adesão da língua portuguesa entre seus habitantes
constituem minoria dentro da comunidade: Portugal, Brasil e São Tomé e
Príncipe. Há de ressaltar que, ao promover políticas que estimulem a maior
adesão ao idioma oficial, os governos devem seguir cientes do plurilinguísmo
presente em suas esferas domésticas, elemento crucial das identidades culturais
e das especificidades históricas e regionais de cada um destes países.
REFERÊNCIAS:
[1]Saber mais sobre os diferentes níveis de difusão do português
na CPLP: GOMES, C. A.“Relatório OPLOP 03 - Abril: A língua portuguesa nos
países da CPLP (ParteI)”.
[2]Saber mais sobre o processo de autonomia do Timor Leste à
dominação da Indonésia: GOMES, C. A. “Relatório OPLOP 18 – Timor Leste: A
Conquista da Autonomia e os Desafios para o Futuro”.
[7]Além da Guiné-Bissau, a UEMOA congrega Benin, Burkina Faso,
Costa do Marfim, Mali, Níger, Senegal e Togo. Países que tem em comum a moeda,
o franco da Comunidade Financeira Africana, conhecido tradicionalmente por
franco CFA, um euro equivale a 656 francos CFA.
[8]A CEDEAO, é a organização de integração regional que engloba 15
países da África Ocidental, dentre os quais: Benim, Burkina
Faso, Cabo Verde, Costa do Marfim, Gâmbia, Gana, Guiné, Guiné-Bissau, Libéria,
Mali, Níger, Nigéria, Senegal, Serra Leoa e Togo.