Findo o Ano, recapitulamo-lo. Ano
este que foi ateado pelas penas flamejantes do Galo de Fogo que a todos não só
aqueceu como abrasou, carbonizou, fazendo jus à labareda. Em todos os palcos
lhe sentimos o garbo e não raras vezes a jocosa actividade de manobras
ameaçadoras, fustigada por lutas de poder entre dois governantes mundiais que
insistem em fulminar o mundo na sua “máquina- brinquedo” de mísseis e nuclear.
Nas cinzas do Ano Findo contamos agora com alguma sagacidade de pensamento,
lugares seguros que sobram para a razão. Nem sempre somos galvanizados.
Camões já nos tinha deixado «A
Máquina do Mundo» e agora ela pode ser de novo a grande «Máquina do Mundo
Reinventada», o mecanismo impresso numa Esfera Armilar que nos indaga ainda e
nos incita ao prazer de a visitar. Camões não perfilava uma concepção
mecanicista do mundo, do cosmos. Toda a sua epopeia está repleta de animismo
que assenta nos deuses como força interpretativa e se coloca na esfera do
Olimpo, uma ideia Renascentista do universo como ser vivo e que está presente
também nas epopeias gregas. Ora a descrição desta máquina pensante aponta para
o plano da ciência e da inteligência tecnológica não deixando por isso de ser
um elo visionário que a sua maravilhosa capacidade enquanto grande poeta lhe
dava permissão de ver, imprimindo quase uma tónica de contradição a toda a
narrativa. Vejamos então as estrofes 78 e 80 (canto X) do poema:
Qual a matéria seja não se
enxerga/ mas enxerga-se bem que está composto/ de vários orbes que a divina
verga/ compôs/ e um centro a todos só tem posto/volvendo ora se abaixa, ora se
erga/……-Vês aqui a grande máquina do mundo/ etérea e elementar, que fabricada/
assim foi do saber alto e profundo/ que é sem princípio e meta limitada.
Aqui, na grande «Máquina do
Mundo» não estamos estritamente num código Ptolemaico, mas sim muito mais perto
da visão de Ezequiel com os querubins das quatro rodas que influenciou o
romance de Raymond Abellio «Os olhos de Ezequiel» e ele comenta: o
Espírito constrói e destrói, os olhos de Ezequiel são habitados pela luz e
perseguidos pelas sombras.
Só que na máquina camoniana a
ordem e o movimento em vez de se oporem, conjugam-se, dando uma grande harmonia
espacial que a globalização presente não tem, não passando por isso de um trenó
ou mesmo uma carroça que produz aparentemente efeitos duplos mas está assente
numa infindável monotonia de igualização do espaço. O mito reconciliador desta
Máquina não tem nada a ver com a massificação dos mecanismos, talvez estejamos
num estado de ascese da matéria e que os materiais se iluminem numa luz não
gerada por combustão estando finalmente na presença de um Deus ex machina.
Nós que no ano transacto
atravessámos as fogueiras, tivemos, alguns, resoluções que em muitos casos se
nos podem afigurar como acções heróicas e algumas vezes quase sentimos a
presença de uma intervenção inesperada que fez descer à cena um qualquer
mecanismo: escutámos o primeiro robot e vimos uma realidade para a qual estamos
ainda toldados – o calor toldou-nos o entendimento – presos andamos a um
mecanismo chamado Geringonça, cujas visões não rasam nenhuma destas esferas e
que pela própria constituição torpe dela nos abeiramos à procura de milagres ou
de uma outra matéria rarefeita que não engloba tais poderes.
O que está configurado nestas
duras ferramentas de Vulcano não dá nem para passar a primeira prova de um
tempo novo que nos indicaram. Com a usurpação e a necessidade construímos uma
gigante Roda Paleolítica cujo resultado testámos desde a condição sem nunca nos
abeirarmos da frase derradeira de Goethe «o quê? bebo a luz?». Bebemos vinhos e
água – pouca : a seca arrasa e promete calcinar os solos. Há sem dúvida uma
plataforma artificial que luta contra o tempo porque neste caminho serão tão
artificias os organismos atávicos como estes já mencionados nos parecem.
Situados no limiar da modernidade
os grandes poetas se encontram, talvez a muito espaço luz da sua filiação
temporal, e voltando às rodas: as rodas avançam e recuam, quatro Querubins
fazem mover quatro rodas: Quando eles paravam, elas paravam. Quando eles se
elevavam, elas elevavam-se juntamente com eles. A Máquina estava unida a um
propósito. O que me lembra um poema de Elliot: no ponto imóvel do mundo
que gira/ nem carne nem sem carne/ nem de nem para/ no ponto imóvel, lá está a
dança/ mas nem parada nem em movimento/.
Findo o acto o pano cai, entramos
em mais um Ano Novo sem percepcionarmos o labor que foi preciso para que raras
vezes no vasto mundo aconteça nascer um poeta. Sim, será sempre aquela
“máquina” de efeitos que nos colocam as Naves por onde iremos passar. Alguns.
Ninguém entra nas naves a haver sem calcular tamanhos dons.
Um Bom Ano.