Em resposta a um governo
ultra-liberal e moralmente conservador, disposto a liquidar sindicatos, 150
milhões de trabalhadores pararam. Como eles podem, ao longo do ano, mudar a
maré do país
Vijay Prashad, do Tricontinental
Institute | Outras Palavras |Tradução: Felipe Calabrez
As cidades indianas nunca se
calam. O som é uma característica constante – as buzinas dos carros, o cantar
dos pássaros, os gritos dos vendedores ambulantes, o zumbido constante de um
motor de motocicleta. Em 8 de janeiro, uma terça-feira, a Índia entrou em greve. Cerca de 150
milhões de trabalhadores permaneceram longe de seus locais de trabalho. Os
sindicatos de esquerda convocaram uma paralisação geral em um país exausto pela
crescente desigualdade e tomada por um clima de insatisfação.
As ruas de Kerala – um Estado
governado por uma Frente da Esquerda Democrática – não permaneceram
silenciosas. Carros e motos mantiveram seu caminho. Mas as estradas estavam
silenciosas. O transporte público parou, porque os sindicatos de transporte
ajudaram a liderar a greve. A capital, Thiruvananthapuram, lembrava a cidade de
cerca de 20 anos atrás, quando o trânsito era mais leve e a cidade mais calma.
Mas não havia nada calmo na atmosfera. Os trabalhadores estavam com raiva. O
governo em Delhi continua a traí-los.
As maiores greves da História
Paralisações desta magnitude não
são incomuns na Índia. A maior greve registrada na história mundial ocorreu na
Índia em 2016, quando 180 milhões de trabalhadores protestaram contra o governo
do primeiro-ministro Narendra Modi. As demandas de agora são – como sempre –
múltiplas, mas centram-se na deterioração do sustento dos trabalhadores, no
desaparecimento do próprio trabalho para muitas pessoas e no ataque político
aos sindicatos.
O governo do primeiro-ministro
Modi está ansioso para alterar as leis sindicais. Tapan Sen, o líder do Centro
de Sindicatos Indianos (CITU), afirmou que as mudanças levariam, na prática, à
escravização dos trabalhadores indianos. São palavras fortes – mas não é
impossível.
Liberalização
Desde que a Índia conquistou a
independência, em 1947, tem seguido uma trajetória ambígua de desenvolvimento
nacional. Importantes setores da economia permanecem nas mãos do governo, com
empresas estatais formadas para garantir bens industriais essenciais aos
objetivos de desenvolvimento do país. O setor agrícola também foi organizado
para que o governo fornecesse crédito a agricultores a taxas subsidiadas e o
governo estabelecesse preços mínimos de aquisição, para assegurar que os
agricultores continuassem a cultivar alimentos essenciais.
Tudo isso mudou em 1991, quando o
governo começou a “liberalizar” a economia, privatizar o setor público, reduzir
seu papel no mercado agrícola e receber investimentos estrangeiros. O
crescimento passou a ser baseado na taxa de retorno do investimento financeiro
e não no investimento em pessoas e no seu futuro. A nova orientação política –
a liberalização – aumentou a classe média e produziu quantidades fabulosas de
dinheiro. Mas também criou uma crise agrária e produziu uma situação precária
para os trabalhadores.
Desmobilizar os trabalhadores
O governo, desde 1991, sabia que
não bastava privatizar o setor público e transferir valiosos ativos públicos
para a iniciativa privada. Era preciso fazer mais duas coisas.
Primeiro, era preciso se
certificar de que as empresas do setor público fracassariam e perderiam
legitimidade. O governo privou essas empresas do setor público de verbas e
deixou-as balançar ao vento. Sem investimento, elas não conseguiram renovar-se
e começaram a definhar. Seu falência validou o argumento da liberalização,
embora a sua tivesse sido fabricada pelo corte total de investmento.
Segundo, o governo pressionou
para quebrar o poder sindical usando os tribunais para minar o direito de greve
e usando o legislativo para alterar as leis sindicais. Sindicatos mais fracos
significariam trabalhadores desmobilizar, o que significaria que os
assalariados ficariam totalmente à mercê das empresas privadas.
Direito de Greve
Essa greve, como as 17
anteriores, é sobre as condições de vida e sobre o direito de greve. Uma nova
lei sindical está em tramitação. Significaria a morte do sindicalismo
na Índia. A afirmação de Tapan Sen sobre escravidão parece menos hiperbólica
nesse contexto. Se os trabalhadores não têm poder, eles são efetivamente
escravizados na empresa. Já é o caso em fábricas que operam quase como campos
de concentração.
Andar pelas fábricas ao longo do
corredor de Chennai-Coimbatore, no sul do país ou na área de Manesar, no norte,
dá uma ideia do poder destas novas fábricas. São fortaleza, difíceis de
penetrar. Ou uma prisão. De qualquer forma, os sindicatos não são bem-vindos
lá. São mantidos distantes à força – violência política ou de músculos . Os
trabalhadores são frequentemente trazidos de longe, migrantes com poucas raízes
nas regiões. Nenhum trabalhador fica muito tempo. Assim que aparentam estar
estabelecidos, são removidos.
A existência de trabalhadores
temporários e sindicalistas perseguidos cria um ambiente de trabalho árido. A
cultura da solidariedade da classe trabalhadora se desgasta, a violência social
cresce – é a sementeira da política neofascista.
Esperança no Estado de Kerala
Kerala é um lugar único na Índia.
Aqui, a cultura da luta continua forte; o orgulho pela história da
transformação social de Kerala é evidente. Ao longo dos últimos cem anos, o
Estado intensificou seu ataque à hierarquia e à divisão. Práticas sociais
arcaicas foram derrotadas, e o movimento de esquerda cultivou a manifestação
pública como uma característica normal da vida social.
Quando a esquerda está no poder –
como está agora – ela não introduz novas políticas por decreto. Os movimentos
sociais desenvolvem campanhas públicas para conscientizar e construir uma
vontade política por trás dos projetos. Esta é uma das razões pelas quais o ar
de desesperança não contamina Kerala.
Em outras partes da Índia, cerca
de 300 mil pequenos agricultores cometeram suicídio, boa parte em razão de
dívidas agrárias. O professor Siddik Rabiyath, da Universidade de Kerala, conta
que os pescadores têm uma dívida maior do que os agricultores, mas que não
cometem suicídio. Ele sugere que isso pode ser devido à esperança de que a
captura do dia seguinte irá resgatá-los da dívida. E também por causa da
atmosfera geral de esperança em Kerala.
Ano passado, quando este Estado
de 35 milhões de habitantes ficou submerso numa inundação, os pescadores
pegaram seus barcos e formaram a linha de frente no resgate. Não fizeram isso
por dinheiro ou fama, mas devido à tradição de solidariedade social do Estado e
à cultura de manifestação pública aqui presente.
Greve
As linhas ferroviárias de
Thiruvananthapuram não funcionaram. Os grevistas sentaram-se nos trilhos e
bloquearam os trens. O mesmo ocorreu em Assam, no extremo nordeste da Índia.
Eles também bloquearam linhas ferroviárias. A Autoestrada National 16, em Bhubaneswar,
no estado oriental de Odisha, tornou-se um estacionamento. Carros e motos não
podiam se mover. Escolas e universidades ficaram silenciosas. Os sindicatos
patrulhavam as áreas industriais fora da capital, Delhi, e de Chennai. Os
ônibus públicos em Mumbai permanecem em seus estacionamentos e as paradas,
desertas.
O governo do Primeiro Ministro
Narendra Modi permaneceu em
silêncio. Haverá eleições no final desse ano. A temperatura
na Índia não está a favor de Modi. Mas essa não é a razão de seu silêncio. Ele
criou o hábito de ignorar as ações públicas, de se manter acima de tudo,
fingindo que nada está ocorrendo. Se a nova lei sindical entrar em vigor, a
Índia abandonará qualquer compromisso com a democracia no local de trabalho. Isso
é parte da lenta erosão do processo democrático no país, um movimento em
direção ao horror da hierarquia e dominação. Os trabalhadores não querem isso.
Estão nas ruas. E têm outros planos para seus futuros.
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