O historiador brasileiro Leandro
Karnal, autor do livro “Todos Contra Todos”, sobre a história do ódio no país,
afirma que a internet favoreceu “um diálogo de surdos” durante a campanha
eleitoral, mas defende que o clima ainda é muito mais violento nas redes
sociais do que nas ruas
O mito do “homem cordial”, que
Sérgio Buarque da Holanda, o pai de Chico, usou em 1936 para descrever as
raízes dos brasileiros, é enganador. O Brasil nunca foi um país pacífico. A sua
História está manchada a sangue por violência, tortura, conflitos, assassinatos.
Os brasileiros ao volante matam
mais do que a guerra na Síria. O trânsito é uma metáfora trágica, lembra o
historiador Leandro Karnal, autor de “Todos Contra Todos”, sobre as raízes do
ódio no país. “Somos um país violento. [Somos] violentos a conduzir, violentos
nas ruas, violentos nos comentários e nas fofocas, violentos ao torcer por
nosso time, violentos ao votar”.
O que há de novo, sublinha
Leandro Karna, professor da Universidade Estadual de Campinas, é o papel das
redes sociais, que favoreceram um debate “dentro de bolhas sistémicas, bolhas
de acesso à verdade onde há um efeito de eco. Sentimos que todo o mundo está
connosco porque só ouvimos quem concorda connosco”.
Que tempos são estes que vivemos
no Brasil, onde a cisão social provocada pelas eleições é tão acentuada?
O nosso imaginário nacional sempre enfatizou a concórdia, o país da paz e sem
desastres naturais. Esse imaginário de que éramos um povo pacífico não corresponde
à História, temos uma História extremamente violenta e com episódios muito
sangrentos contra indígenas, contra negros, contra a população brasileira em geral. O que aconteceu
várias vezes no campo político é essa bipolaridade, essa cisão em dois campos
inimigos que não reconhecem no outro campo a cidadania ou a pertença à nação
brasileira. Isso aconteceu em 1935, aconteceu entre 1961 e 1968, voltou a
acontecer em 1989 com a campanha entre Collor e Lula, e extremou-se graças às
redes sociais de 2013 até hoje. As redes sociais magnificaram uma intensa
campanha de ódios pessoais, porque o momento é de divisão política profunda:
quase metade do país acredita num candidato, mais de metade acredita noutro, e
as duas partes consideram que a vitória da outra é o fim do Brasil, é o fim da
democracia, da civilização ou da ordem social. Vêm na outra parte não um
adversário com um projeto diferente para o país, mas um inimigo mortal.
O que é preocupante é a forma
como esse ódio saiu da vida virtual e entrou, por exemplo, nas famílias e nas
redes de amigos, provocando divisões inflamadas.
Sim, é uma característica nova que as redes sociais trouxeram à tona.
Estimularam um ódio que estava dominantemente na Internet e que começou a
aparecer também no mundo real, com assassinatos e violência motivados por
divisões políticas. Não há chance de diálogo, é um diálogo de surdos, onde não
se admite nenhuma crítica ao seu candidato e nenhum louvor ao outro candidato.
Mas o clima da internet ainda é muito mais violento do que o clima geral, das
ruas. A internet faz parecer que somos um país em guerra civil e nas ruas não é
o que vemos. A nossa política sempre gerou essa violência, ainda que, ao
contrário de Portugal ou dos Estados Unidos, nunca tenhamos eliminado um Rei ou
um Presidente da República.
Bolsonaro foi hábil em levar a
sua campanha para as redes sociais e capitalizar essa divisão profunda a seu
favor.
Sendo ele um candidato novo, pertencendo a um partido que até agora era aquilo
a que chamamos ‘nanico’, inexpressivo, e que agora é a segunda maior bancada na
câmara dos deputados, a sua campanha conseguiu apostar muito mais em meios
dinâmicos como as redes sociais do que nos programas de TV. Já ninguém vê
propaganda política na televisão. Esta é uma campanha que está a acontecer
essencialmente em grupos de WhatsApp, que passaram a ser considerados fontes de
verdade. As fotomontagens e as fake news são vistas acriticamente, somos muito
mais passionais do que racionais. Isto está insuportável. Você publica uma
árvore dizendo que ela é o símbolo do Brasil e que o amarelo está florindo e
alguém comenta: “É porque o PT não roubou esta árvore” ou “Com Bolsonaro essa
árvore vai florir mais”. As pessoas estão monotemáticas e isso é um equívoco
muito grave e que vai repetir-se durante bastante tempo. Pela primeira vez na
História brasileira os jovens estão muito politizados, têm muitas opiniões,
ainda que os eleitores no geral não tenham argumentos: as suas opiniões são
postadas em bolhas epistémicas, bolhas de acesso à verdade, onde causam efeito
de eco. Sentimos que todo o mundo está connosco porque só ouvimos quem está
connosco. Talvez seja uma oportunidade para a nossa jovem democracia, que
ressurgiu em 1985. O que é preocupante é que o estado democrático de direito
não tem tantos entusiastas como tinha outrora. Pelo contrário, em nome do seu
projeto as pessoas facilmente o sacrificariam.
Porque é que os brasileiros se
desencantaram com a democracia?
É bastante claro que a formulação tradicional da nossa política, através de partidos,
eleições reguladas, liberdade de imprensa, não representa mais a forma dinâmica
como as pessoas querem ser representadas. A política é analógica e a nossa
perceção do mundo é inteiramente digital. Abstrações como sistema e modo de
governo pertencem a um debate intelectualizado, e o debate político do eleitor
comum brasileiro é um pouquinho mais simples do que esse: ‘Lula deu-me Bolsa
Família, ninguém tinha feito nada por mim antes, então voto em Lula,
independentemente de qualquer denúncia de corrupção’; ‘Bolsonaro promete
metralhar os bandidos, eu fui assaltado e odeio bandidos, então voto Bolsonaro,
porque a democracia não garantiu a minha segurança’. Os argumentos são muito
mais pessoais do que argumentos teóricos. Somos nós, os professores, os jornalistas,
que falamos de princípios. Mas os princípios importam muito pouco à pessoa que
está a pensar quanto vai custar abastecer o seu frigorífico, como é a segurança
na cidade... Há um debate intelectualizado que não atinge a maioria, até porque
temos analfabetos funcionais em grande quantidade. Democracia não é sinónimo de
ética, mas de poder trazer à tona os deslizes éticos. Porque é que as
empreiteiras afirmam que fazem o mesmo jogo sujo há três gerações e só apareceu
agora? Porque agora temos democracia. No período militar não aparecia, então
dizia-se que tudo era honesto, tudo era melhor. Não havia denúncias de
corrupção na ditadura, e os escândalos da ditadura não apareciam na imprensa,
como não aparecem hoje na Coreia do Norte ou em Cuba. As ditaduras não
são transparentes, a democracia é. Por isso é que a democracia não causa esse
entusiasmo, porque ela não traz o paraíso imediato que as pessoas querem. Tudo
isso piorou porque temos pelo menos 13 milhões de desempregados e a crise
económica acentuou-se. Se o dinheiro estivesse fluindo, se houvesse dinheiro
para todos, a crise política não seria tão expressiva.
Os brasileiros estão a piscar o
olho à possibilidade de regressarem a um regime militar?
Existe um equívoco: o governo de um militar não é necessariamente um governo
antidemocrático. O Brasil teve um Presidente que era militar, Henrique Gaspar
Dutra, que governou sendo famoso por ser fiel à Constituição de 1946, logo após
a ditadura do nosso Estado Novo. Os EUA foram fundados pelo executivo de um
general no ativo, George Washington. O voto universal foi instituído nos EUA
por outro general, Andrew Jackson. E o governo de Eisenhower foi um governo de
um militar, herói da Segunda Guerra, absolutamente democrático. Então, há uma
fantasia que militar é o fim da democracia. Como nós, brasileiros, imitamos
tardiamente modelos europeus e americanos, estamos a descobrir o apogeu da
guerra fria, de direita vs esquerda, conservadores vs comunistas. Aquilo que
terminou teoricamente em 1989 com a queda do Muro de Berlim, o Brasil acaba de
descobri-lo com intensidade, acusando o outro de ser comunista ou fascista como
supremo chingamento. Temos pouca habilidade na discussão de argumentos, porque
temos uma tradição autoritária com pequenos hiatos democráticos, na qual o
diálogo nunca foi o forte. Se tivesse de identificar qual é a maior herança que
temos de Portugal, além da língua e da religião católica, diria que é o
sebastianismo: um dia vai surgir um Presidente que resolva tudo, um líder
sério, honesto e enérgico.
Entrevista de Nelson Marques em São Paulo – em Expresso | Na imagem: cartoon Bolsonaro (caceteiro)