Nobel
da Paz birmanesa faz 70 anos. Em entrevista à DW, Hans-Bernd Zöllner, autor de
biografia sobre a líder oposicionista, afirma que sua imagem de heroína tem
sofrido desgaste no cotidiano político do país.
A
Prêmio Nobel da Paz Aug San Suu Kyi faz 70 anos nesta sexta-feira (19/06). Em
entrevista à DW, Hans-Bernd Zöllner, autor de biografia sobre a líder
oposicionista de Mianmar, diz que sua imagem de heroína tem sofrido arranhões
no cotidiano político de seu país.
Entretanto,
Zöllner afirma que Suu Kyi ainda pode desempenhar um papel importante no futuro
de Mianmar, colaborando para obtenção de um acordo entre correntes políticas e
grupos étnicos rivais.
Deutsche
Welle: Nesta sexta-feira, Aung San Suu Kyi completa 70 anos. Ela é
reverenciada em todo o mundo como um símbolo da liberdade. Em sua opinião, qual
é o maior mérito político dela?
Isso
só será possível de dizer com exatidão em retrospectiva, ao olharmos para o
passado durante o centésimo aniversário dela. Pois o processo de transformação
em Mianmar, no qual ela está fortemente envolvida, ainda está longe de
terminar. Poucos meses depois do aniversário dela, serão realizadas eleições
que indicarão o caminho para o futuro. Ainda não está claro se ela participará.
Essa é uma das muitas questões em aberto.
O
maior mérito dela é, certamente, o fato de que expôs para um público mais
amplo, em seu país e no exterior, a questão do futuro de Mianmar e,
possivelmente, de outros países em situações semelhantes, fazendo com que seus
problemas não fossem esquecidos.
O
senhor falou nas eleições presidenciais e parlamentares, a serem realizadas no
fim deste ano. Que tarefa Aung San Suu Kyi deve assumir depois no cenário
político de Mianmar? Segundo a lei, ela não pode ser eleita presidente, porque
foi casada com um estrangeiro e os dois filhos dela são cidadãos britânicos.
De
fato ela não pode ser presidente. A Constituição também não pode ser mudada a
tempo. Na minha opinião, o papel dela pode ser ajudar a que, pela primeira vez
na história política de Mianmar, seja alcançado um acordo entre as pessoas que
até agora determinaram a política nacional. De um lado, estão os militares e,
do outro, civis que saíram das fileiras militares. E também existe a chamada
oposição, representada por Aung Suu Kyi. Se for obtido um acordo – que
provavelmente já está sendo negociado a portas fechadas – isso já seria um
grande avanço. Tal coisa nunca aconteceu na história política recente de
Mianmar.
A
imagem imaculada da Prêmio Nobel da Paz também sofreu arranhões nos últimos
anos. O antigo papel como um ícone da liberdade tem sido trocado por Aung San
Suu Kyi, desde o fim de sua prisão domiciliar, no fim de 2010, pelo papel de
uma política pragmática. Por isso, ela também tem recebido uma série de
críticas. Como ela lida com essa mudança?
Tenho
minhas dúvidas se houve mesmo uma mudança na sua pessoa. Eu acho que a mudança
está essencialmente no olho de quem vê, quer dizer, em nossos olhos. Ela foi
colocada na posição de um ícone. Mas poderíamos acusá-la de não ter resistido
particularmente a essa sua redução à figura de um ícone, realizada tanto aos
olhos de seu povo como aos olhos do público internacional.
Desde
que está na política, ela sempre insistiu que é uma política que fundou um
partido. E ela agora tem de lidar com problemas da política de Mianmar que
considero insolúveis a curto prazo. E, claro, com os arranhões que recebe uma
imagem de um ícone, quando ela fica muito tempo pendurada na parede.
Quais
são esses problemas, concretamente?
O
principal foco são os problemas multiétnicos, envolvendo a questão de como pode
ser possível a reconciliação entre os diferentes grupos étnicos. Os grupos
étnicos reconhecidos ainda não estão totalmente prontos a fazer as pazes com o
governo central. E existe, ainda, o problema da reconciliação com os muçulmanos
[que não são oficialmente reconhecidos como grupo étnico]. São questões
difíceis.
Ainda
mais difícil é fazer funcionar uma economia liderada pelo maior grupo étnico, o
dos birmaneses, sem que aconteça o que aconteceu em épocas anteriores, quando
as riquezas da terra foram colhidas majoritariamente pelos estrangeiros –
chineses, japoneses, coreanos, indianos ou mesmo pelos ocidentais. Este é um
dos tristes legados em
Mianmar. Até agora, não foi possível pacificar a maioria da
população de forma que ela se sinta como a maior beneficiada pelas riquezas do
país. Isso é incrivelmente difícil.
O
senhor vê chances de que Aung San Suu Kyi possa fazer algo a este respeito?
Não.
Nesse ponto, ela precisa de conselheiros. Acho que ela não tem muito
conhecimento técnico para isso. Essa é uma das dificuldades que só podem ser
resolvidas no trabalho em equipe, a partir de vários lados, e também com
assistência internacional. E também há o outro problema já mostrado neste papel
de ícone: o Ocidente tem pouca ideia das estruturas políticas, econômicas e
afins do país. E os parceiros asiáticos não estão muito interessados em ajudar.
O
senhor falou em conflitos étnicos, sobre os quais muito se discute atualmente,
devido à crise de refugiados. Como o senhor classifica o silêncio de Aung San
Suu Kyi sobre o tema dos rohingyas?
Ela
não fica tão em silêncio assim. E o que ela diz é correto. O problema é
extremamente complexo e historicamente carregado. E se você olhar para ele do
ponto de vista da marca registrada dela, que é a "democracia", então,
você há de reconhecer que a maioria da população budista é da opinião de que os
muçulmanos em geral e os rohingyas, em especial, não fazem parte do país. De
acordo com a lógica deles, eles são bengaleses e, logo, não são de Mianmar.
Esta é a opinião da maioria da população. E nada mudaria se Aung San Suu Kyi
dissesse: "Sim, eles são daqui."
Além
do mais, se você tentar rastrear essa questão historicamente, é muito difícil
se descobrir o que é verdadeiro e o que não é. É uma questão politicamente
difícil. Neste aspecto, eu defendo Aung San Suu Kyi 100%. Fazer uma declaração
simples sobre isso, como querem principalmente os simpatizantes dela no
exterior, seria algo que não ajudaria muito.
Suu
Kyi também cometeu erros políticos nos últimos anos e tomou decisões erradas?
Isso
é difícil de dizer. Ela ainda não conseguiu até agora agir muito politicamente.
Ela é deputada em um
Parlamento em que não é possível realizar grandes debates.
Seu problema é que tem que pensar suas atitudes considerando três aspectos
diversos: os conceitos tradicionais de política do país, seus próprios conceitos
de uma democracia influenciada pelo Ocidente e as regras constitucionais
introduzidas em 2008, que ela teve que aceitar ao assumir seu mandato no
Parlamento.
No
Parlamento, não são pronunciados grandes discursos. São feitas perguntas e
lançadas contribuições para discussão. Na nossa compreensão da política, é
muito difícil fazer política no país, especialmente porque as bancadas dos
partidos não possuem líderes. Aung San Suu Kyi é o membro mais proeminente de
um partido que detém 34 de 440 assentos. Não dá para esperar muito disso. O que
ela fez e continua fazendo é, principalmente, política simbólica. Até que ponto
isso pode levar, no final, a um acordo entre ela e os políticos que,
predominantemente, são originários dos meios militares e que têm as rédeas do
poder nas mãos, é a grande e interessante questão, que permanece em aberto.
Deutsche
Welle