Díli, 27 jan (Lusa) -- O terceiro
presidente indonésio, Bacharuddin Jusuf Habibie, reservou para si um lugar na
história de Timor-Leste quando, há exatamente 20 anos, admitiu pela primeira
vez a possibilidade de um referendo aos timorenses.
Declarações depois de uma
histórica reunião do Conselho de Ministros indonésio de 27 de janeiro de 1999
que marcariam o arranque de um ano em que os timorenses puderam, pela primeira
vez, escolher o seu destino.
José Ramos-Horta, principal rosto
da frente diplomática da resistência timorense, recordou à Lusa que nessa
altura estava nos escritórios da CNN em Atlanta, onde tinha previsto várias
entrevistas sobre a questão de Timor.
"Estava a ser entrevistado
quando alguém veio a correr dizer que o Habibie estava a dizer que queria ver
resolvida a questão de Timor: aquilo só tem pedras, dizia ele", recordou.
Horta recorda que aquele momento
ocorreu num contexto muito particular, com a crise financeira dos tigres
asiáticos - grupo constituído por Coreia do Sul, Singapura, Taiwan e Hong Kong
-, que também fazia mossa na Indonésia.
A pressão crescente em torno à
situação de Timor-Leste deixava Jacarta, que precisava de apoio financeiro
internacional, numa situação complicada, que só se agravou com uma carta do
então primeiro-ministro australiano John Howard, que empurrou o terceiro
presidente indonésio para uma mudança histórica.
E que ocorre depois de anos de
pressão, incluindo com a atribuição do Nobel a Ramos-Horta e Ximenes Belo.
"Para um país
super-orgulhoso como a Indonésia, superativo na comunidade internacional o
Nobel foi tremendo", recordou horta.
Em novembro de 2015, numa
entrevista alargada à Lusa, o antigo governador de Timor-Leste nomeado pela
ocupante indonésia, Mário Carrascalão, também recordou esse momento, que
ampliava a postura anterior de Habibie, já a favor de uma autonomia alargada.
Mário Carrascalão, na altura o
governador de Timor-Leste nomeado por Jacarta e membro do Conselho Consultivo
Nacional da Indonésia, tinha estado reunido com Habibie um dia antes, e a
postura da autonomia mantinha-se.
Timor-Leste teve
"sorte" com a conjuntura do momento mas Habibie, disse, atuou sempre
em defesa dos interesses indonésios. "Não nos deu isto pelos nossos lindos
olhos", recordou.
Nessa tarde de há 20 anos, com os
seus ministros, Habibie estava lívido, irritado com um relatório da sua
principal assessora, Dewi Fortuna Anwar, que confirmava o que já suspeitava: as
portas a que a Indonésia batia para pedir ajuda financeira não se estavam a
abrir.
Ou melhor, as portas abriam-se
mas, depois de muitos anos em que a comunidade internacional ignorava os abusos
cometidos pela Indonésia em Timor-Leste, os pedidos de ajuda indonésios eram
recebidos com uma pergunta sem precedentes.
Com o garrote financeiro ao
pescoço, crescente instabilidade interna e a Indonésia a lidar com o furacão
que implicou o fim da era Suharto - que tinha caído em 1998 - Timor-Leste
consolidava-se como a tal "pedra no sapato".
Irritado, Habibie mostra aos seus
colegas no Governo uma carta que ajudou a verter o copo: John Howard escreveu
em dezembro para Jacarta a defender que, depois de um período de autonomia,
deveria haver um ato de autodeterminação em Timor-Leste.
Richard Woolcott, embaixador da
Austrália na Indonésia entre 1975 e 1978 - quando ocorreu a invasão - recorda
os momentos históricos do início de 1999 e a evolução que abriria a porta à
consulta de 30 de agosto aos timorenses e a primeira de várias guerras de Habibie
com os generais indonésios.
Para Habibie, escreveu
recentemente Woolcott, seria ilógico para a Indonésia continuar a financiar uma
autonomia cara que poderia conduzir à independência mais tarde.
"'Porque temos este problema
quando temos uma montanha de outros problemas? Recebemos petróleo? Recebemos
ouro? Não. Só recebemos pedras. Se os timorenses são ingratos depois do que
fizemos por eles, porque temos que manter isto", escreveu Woolcott,
citando Habibie.
Por isso anunciou aos ministros
que a Indonésia avançaria já para uma consulta entre autonomia e independência
e "surpreendentemente só encontrou uma voz dissidente", a do seu
chefe da diplomacia, Ali Alatas, que achava prematuro e perigoso dar
independência quando os timorenses não estavam ainda preparados.
O anúncio histórico é feito por
Ali Alatas finda a reunião do Conselho de Ministros, na tarde de 27 de janeiro:
a Indonésia admite a possibilidade de ser concedida a independência a
Timor-Leste, se o povo timorense rejeitar um estatuto de autonomia.
Apesar da concessão de
independência a Timor-Leste "não constituir política do governo",
será "a última alternativa se o povo de Timor-Leste continuar a rejeitar a
(...) oferta de autonomia" do governo indonésio, disse.
A irritação e o desespero de
Habibie abriram uma janela fechada, à força e com a morte de mais de 200 mil
pessoas, durante mais de um quarto de século.
ASP // JPS