Díli, 31 out (Lusa) - O Estado
timorense deveria reconhecer e homenagear como "heróis" dois homens
que denunciaram a espionagem que a Austrália realizou a Timor-Leste durante as
negociações para o tratado de fronteiras marítimas de 2004, disse hoje um
senador australiano.
"Bernard Colllaery e a
Testemunha K, na minha opinião, são heróis. Revelaram algo que era ilegal, que
era condenável e não consistente com a forma como os australianos se comportam.
E infelizmente estão a ser julgados pelo que fizeram", disse à Lusa em
Díli o senador Rex Patrick.
"Na minha opinião, sem a
ação destes dois homens, Timor-Leste não teria estado numa posição para
renegociar o tratado. São, por isso, heróis para mim e deviam ser considerados
heróis pelos timorenses", afirmou.
Os dois homens, um ex-agente dos
serviços secretos australianos, conhecido como "Testemunha K" (a sua
identidade nunca foi revelada publicamente) e o seu advogado, Bernard Collaery,
estão a ser julgados acusados de conspiração pelas autoridades em Camberra.
Em causa está uma denúncia por
parte da "Testemunha K", que divulgou um esquema de escutas montado
em 2004 pelos serviços secretos australianos em escritórios do Governo
timorense, em Díli.
De acordo com os relatos, através
das escutas, o Governo australiano obteve informações que permitiriam favorecer
as intenções australianas nas negociações com Timor-Leste da fronteira marítima
e pelo controlo dos poços de Greater Sunrise.
Os acusados, que regressam na
quinta-feira ao tribunal, enfrentam uma pena máxima de dois anos de prisão, se
forem considerados culpados. O Governo australiano tem defendido que dada a
natureza do conteúdo do caso o que ocorre no tribunal deve ser 'fechado', algo
contestado pela defesa e por críticos da decisão de acusar os dois homens.
"Estiveram, solidamente,
levantados por Timor-Leste e agora não podem ser abandonados por Timor-Leste.
Não há dúvida de que podem ser condenados à prisão", disse Patrick.
Motivo pelo qual, insiste, o seu
papel deve ser reconhecido de alguma forma pelas autoridades timorenses.
"Sei que em termos
internacionais a Austrália não interferiria em questões judiciais timonasses e
Timor-Leste não interfere em questões judiciais australianas", disse.
"Mas isso não significa que
não se possa mostrar apoio absoluto pelos dois e uma das formas que isso pode
ocorrer pode ser através de uma honra de Estado, uma medalha, porque fizeram
algo muito bom para Timor-Leste", afirmou.
Patrick, que está em Díli para
uma visita de cinco dias de uma delegação parlamentar australiana - a primeira
a Timor-Leste desde 2011 - considera que "todos os australianos razoáveis
concordariam com esta premissa".
A "Testemunha k" está
sem passaporte há vários anos e impedido de sair do país, e Collaery foi
impedido de falar do processo e alvo de rusgas durante as quais as autoridades
confiscaram documentos de Timor-Leste.
Só em maio de 2015 é que o
Governo australiano aceitou devolver a Timor-Leste os documentos que tinha
confiscado na rusga que uma equipa de agentes da ASIO (Organização Australiana
de Serviços Secretos) fez a 03 de dezembro de 2013, aos escritórios de Collaery.
Os documentos forneciam
"detalhes sobre atividades de espionagem por parte da Austrália em relação
a Timor-Leste, durante a negociação do CMATS", o que levou o Estado
timorense a apresentar uma queixa contra a Austrália junto do Tribunal Internacional,
em Haia.
A 03 de março de 2014, o Tribunal
emitiu medidas provisórias a favor de Timor-Leste, com a imposição de uma
injunção à Austrália de "não interferir de forma alguma na comunicação
entre Timor-Leste e os seus consultores jurídicos" em relação à Arbitragem
do Tratado do Mar de Timor (TMT), qualquer futura negociação bilateral sobre as
fronteiras marítimas ou a procedimentos relacionados.
A austrália pediu em setembro de
2014 ao Tribunal Internacional de Justiça e à Arbitragem do Tratado do Mar de Timor
um adiamento de seis meses às audiências para permitir aos dois países
"procurar obter um acordo amigável".
Timor-Leste concordou com o
pedido da Austrália, que era condicionado a Camberra aceitar falar sobre as
fronteiras, tendo o prazo ampliado terminado em março de 2015. Só dois meses
depois é que Camberra devolveu os documentos.
Numa entrevista à Lusa, em abril,
na altura da campanha para as legislativas antecipadas, Xanana Gusmão,
Presidente na altura em que as escutas foram realizadas, contou pela primeira
vez à Lusa alguns dos contornos do caso.
Os dois países estavam a negociar
o que seria conhecido como o Tratado sobre Determinados Ajustes Marítimos no
Mar de Timor (CMATS), assinado em 2006 pelo então primeiro-ministro Mari
Alkatiri, e que dava 10% das receitas da zona disputada à Austrália.
Xanana Gusmão explicou que foi em
2009 que teve conhecimento de que um espião australiano tinha colocado um
sistema de escuta na sala do Conselho de Ministros timorense, durante o período
em que decorriam as negociações do CMATS, lideradas por Alkatiri e José
Ramos-Horta, lembrou.
"Fiquei com aquilo e ninguém
mais soube. Porque só em fevereiro de 2013 é que o CMATS poderia ser
trabalhado, porque até lá não havia licença nenhuma em causa. Esperei esse
tempo todo", explicou.
Em dezembro de 2012, já
primeiro-ministro, encontrou-se com a sua homóloga australiana em Bali, Julia
Gillard, a quem falou do caso.
"Disse-lhe em Bali que
tínhamos problemas, disse que não queria levantar o caso e disse para
resolvermos isto entre nós sem fazer grandes ondas. Mandei carta, recusou, não
fizeram nada. Mandei outra carta e nada. E então, é que já era tempo, levei ao
tribunal internacional", explicou.
ASP // MAG