Díli,
11 nov (Lusa) - Dois dias depois do massacre de Santa Cruz, a 14 de novembro de
1991, Saskia Kouwenberg coseu duas cuecas uma à outra, arranhou o interior do
nariz até chorar e deixou cair sangue no tecido, que escondia um documento
vital.
A
'bolsa' improvisada pela holandesa, manchada de sangue, tinha no seu interior a
cassete com as imagens do massacre no cemitério de Santa Cruz, recolhidas pelo
jornalista inglês Max Stahl e que, para muitos marcaram um momento de viragem
na questão de Timor-Leste.
Foi
uma medida preventiva. Saskia Kouwenberg, que aceitou pela primeira vez contar
a história, explicou à Lusa que o conteúdo da cassete que transportou de Díli
tinha que chegar às televisões de todo o mundo.
Pensando
que a sua bagagem poderia ser revistada - e contando com os eventuais
preconceitos muçulmanos caso isso acontecesse -, Kouwenberg, que conversou com
a Lusa pela rede social Skype, a partir de Amesterdão, queria garantir que as
imagens não seriam descobertas.
"Pedi
a um jornalista que me arranjasse agulha e linha. Eu uso sempre cuecas enormes.
Confortáveis mas enormes. Arranhei tanto o nariz que até chorei. E enchi as
cuecas de sangue, e depois cozi duas e meti a cassete lá dentro e fui para o
aeroporto", recordou.
Envolvida
no movimento pacifista da década de 1980 teve o primeiro contacto com os
timorenses em Darwin, norte da Austrália, para onde se mudou com o marido no
início dos anos 1990.
A
proposta visita de uma delegação parlamentar portuguesa a Díli, em outubro de
1991 fez aumentar o interesse à volta da situação em Timor. Como a visita
coincidia com uma viagem que Saskia e o seu marido na altura, Russell, deveriam
fazer à Europa, decidiram incluir uma passagem por Díli.
"Na
altura disseram que ia ser muito difícil entrar, que não íamos conseguir. Mas
conseguimos entrar. Só que a visita da delegação acabou por ser cancelada e
tudo entrou em colapso", recorda.
O
Governo indonésio rejeitou a inclusão na delegação - de que fariam parte 12
jornalistas - da jornalista australiana Jill Jolliffe, considerada próxima da
resistência, e Portugal recusou manter a visita se esta fosse excluída.
"Isso
gerou pânico em Timor. Muitas pessoas e muitos jovens tinham-se preparado para
visita e queriam, a todo o custo, falar com eles", recorda Saskia, uma dos
sete ou oito estrangeiros que estavam em Díli na altura.
A
tensão aumentou e a 28 de outubro tropas indonésias e elementos
pró-integracionistas atacaram um grupo de jovens que estava na Igreja de Motael
a preparar manifestações para receber a delegação parlamentar, de que resultou
a morte do jovem pró-independentista Sebastião Gomes e do pró-integracionista
Afonso Henriques.
A
12 de novembro realiza-se uma missa e cerimónia em homenagem de Sebastião Gomes
e milhares de pessoas dirigem-se de Motael até ao cemitério de Santa Cruz.
Durante
o percurso alguns abriram cartazes e faixas de protesto. As forças indonésias
respondem com extrema violência, matando mais de 250 pessoas.
Um
ativista neozelandês, Kamal Bamadhaj, foi morto, dois jornalistas foram
espancados, os americanos Amy Goodman e Allan Nairn, e as imagens foram
registadas pelo jornalista inglês Max Stahl.
Nesse
dia Saskia estava como uma grande dor nas costas, que praticamente não a
deixava movimentar-se. Gravou algumas imagens, ainda na igreja, e regressou ao
Hotel Díli, onde estava hospedada.
"Quando
saí de novo vi que a cidade estava praticamente deserta e comecei a perguntar o
que tinha acontecido. Estavam pessoas escondidas em vários locais que disseram
que tinha acontecido algo muito mau", contou.
"Nessa
noite falei com o Max que disse que tinha escondido o filme no cemitério. Ele
foi lá busca-lo e, depois a questão era quem tirava o filme de Timor. Eu
ofereci-me porque não tinha sido vista em Santa Cruz", explica.
Primeiro
tentou com o Relator Especial da ONU para Direitos Humanos e Tortura, Pieter
Kooijmans, que estava em Díli a quem pediu se podia levar a cassete.
"Ele
disse que não. Estava borrado de medo. Falei também com a Embaixada holandesa.
Ninguém acreditava que isto tinha acontecido", disse.
Retirar
a cassete com as imagens de Timor-Leste, recorda, foi uma espécie de
"filme B" que começa no aeroporto onde chega, no dia seguinte, com o
seu marido e o americano Steve Cox, e é informada de que o voo estava cheio.
"Eu
corri para o avião a dizer que tinha que sair. Os militares tentaram tirar-me
das escadas. Estava aos gritos. E enquanto isto estava a decorrer o Kooijmans
passou por mim e fez que não me conhecia", disse.
"Depois
de muitos gritos e discussão deixaram-me entrar com o Steve Cox e o Russell. E
quando chegámos vimos que havia mais lugares vazios. Foi uma situação muito
tensa", disse.
Os
seus companheiros de viagem saíram em Kupang, Timor indonésio, e Saskia
continuou até Bali onde se misturou com turistas enquanto esperava ligação para
Jakarta.
Ali,
depois de uma conversa de uma hora entre o embaixador e as autoridades
indonésias, acabou por passar pela zona VIP, sendo levada para um quarto na
missão diplomática de onde não pode sair.
"Eles
insistiam que eu entregasse tudo o que tinha comigo. Diziam-me que eu não ia
conseguir sair com o filme. Pensei e dei-lhes um pacote que disse que só podiam
entregar ao charge d'affairs - que eu sabia que estava fora. Eles pensaram que
era a cassete mas era só uma cópia do livro Exodus", conta, sorrindo.
Coze
as cuecas e prepara-se para nova viagem para o aeroporto antes do voo para
Amesterdão. Apesar do medo e de mais negociações com as autoridades indonésias
é levada de carro à porta do avião e embarca, sem que a sua mala seja sequer
revistada.
"Passam
quatro dias entre sair de Díli e estar em segurança. Na Holanda tive que dar o
filme aos donos que tinha contratado Max Stahl. Eu queria que o filme fosse
transmitido nessa mesma noite porque ainda havia a controvérsia porque a
Indonésia negava que tinha havido um massacre em Timor", disse.
"Eles
insistiam que as imagens eram para usar num documentário. E eu recusei-me a entregar
a cassete. Pedi primeiro à televisão holandesa que fizesse uma cópia. E essas
foram as imagens transmitidas na noite de sábado 16, cinco dias depois do
massacre", recorda.
Um
momento crucial para Timor-Leste, quer pelo reconhecimento internacional que o
problema assumiu mas, destaca, pelo impacto que as imagens tiveram em Portugal.
"Até
Santa Cruz havia tanta negação na comunidade internacional sobre o que estava a
acontecer. E aqui tínhamos um exemplo em que os indonésios diziam que nada
tinha acontecido, e as imagens mostraram o contrário, que algo grande tinha
ocorrido", disse.
"Essas
imagens fizeram uma grande diferença especialmente em Portugal. Porque as
pessoas na capela e no cemitério estavam a rezar em português. E em poucos dias
todas as casas em Portugal acenderiam velas por timor, comprometendo-se a não
abandonar Timor de novo", afirmou.
ASP
// EL