Lamia
Oualalou, Rio de Janeiro – Opera Mundi
Especialistas
discutem aprofundamento da presença chinesa na América Latina e ponderam impactos
e vantagens do protagonismo da China na região
“É
claro que não serão US$ 53 bilhões, uma parte deste anúncio é um sonho, que
será derrubado, por exemplo, pela impossibilidade de conseguir licenças
ambientais e pela burocracia brasileira”, avalia Paulo Wrobel, professor de
relações internacionais na PUC-Rio e pesquisador no Centro de Política Brics.
"Mas uma boa parte destes investimentos vão se concretizar, e estamos
falando de muito dinheiro”, completa, lembrando que a China tem duas coisas de
sobra: capitais financeiros e eficiência.
O
interesse da China por Brasil e América Latina em geral não é novo. Desde o
início dos anos 2000, Pequim, preocupada em garantir acesso a matérias-primas
latino-americanas, vem aumentando sua presença na região. A primeira fase dessa
inserção foi comercial: entre 2000 e 2012, o fluxo comercial aumentou 2.500%,
passando de US$ 12 bi a US$ 261 bilhões.
Num
segundo momento, a China decidiu controlar cadeias inteiras de produção, desde
a matéria-prima inicial até o produto acabado. Para isso, as empresas públicas
chinesas passaram a adquirir grandes áreas agrícolas e terras ricas em minerais. A
estratégia, entretanto, causou preocupação: os países começaram a questionar
essa apropriação levantando questões sobre soberania das nações
latino-americanas. Na Argentina e no Brasil, por exemplo, os Congressos
promulgaram leis restringindo a compra de terras por estrangeiros, em
referência direta ao apetite chinês.
Pequim,
em seguida, mudou de estratégia, tomando por alvo empresas especializadas no
transporte e no comercio de matérias-primas. Em 2014, a Cofco, uma das
principais companhias chinesas do setor agroalimentar, gastou, respectivamente,
US$ 1,2 bilhão e US$ 1,5 bilhão para assumir o controle da Nidera (Holanda) e
da Noble Group (Hong Kong). Embora nenhuma destas empresas seja
latino-americana, ambas estão muito bem estabelecidas na Argentina e no Brasil.
Para
o suprimento de energia, a China adotou ainda outra estratégia, apostando nas
suas enormes reservas monetárias. Em poucos anos, os bancos chineses passaram a
ser importantes credores de muitos países da região, especialmente na
Venezuela, Equador e Argentina, que têm difícil acesso aos mercados
financeiros tradicionais. "Quando os preços do petróleo caíram em 2008-2009,
o Equador ficou à beira da insolvência, e a China apareceu como um
salvador", lembra o economista Alberto Costa, ex-ministro do presidente
Rafael Correa, e hoje uma figura da oposição esquerdista. O cenário se repetiu
na Venezuela, e na Argentina.
Um
credor sem imposições
O
interesse chinês na América Latina coincidiu com a ascensão de governos
progressistas na região depois de duas décadas — 1980 e 1990 — marcadas pelo
neoliberalismo imposto por FMI (Fundo Monetário Internacional) e Banco Mundial.
Estas receitas econômicas, chamadas de "Consenso de Washington", em
referência às sedes das duas instituições na capital norte-americana, foram
rejeitadas desde a eleição, entre outros, de Hugo Chávez (Venezuela), Luiz
Inácio Lula da Silva (Brasil), Nestor Kirchner (Argentina) e Evo Morales
(Bolívia). "Essa retórica contra as organizações financeiras
internacionais casou muito bem com o surgimento de um novo credor e parceiro
comercial, a China, que empresta dinheiro sem qualquer condição", analisa
o equatoriano Juan Carlos Calderón, diretor do portal de informação PlanV.
Sem o ônus de impor um ajuste fiscal ou privatizar faixas inteiras da economia
em nome da eficiência do setor privado, o dinheiro chinês tem um custo político
muito mais baixo. Paulina Garzón, a diretora da Iniciativa para o
Desenvolvimento Sustentável dos Investimentos América Latina-China, uma
organização sediada em Washington, lembra a importância das transferências: “Entre
2005 e 2014, os bancos chineses emprestaram aos governos na região US$ 119
bilhões. Desse total, US$ 56,3 bilhões foram somente para a Venezuela. O resto
foi dividido entre Argentina, Brasil e Equador ".
Vantagens
para a China
Para
compensar os aportes, Pequim recebe petróleo com um preço abaixo do mercado.
Cerca de 90% da produção petroleira do Equador é comprada pela China, segundo
estimativas da agênciaReuters. A maioria dos barris, entretanto, nem é
encaminhada aos portos chineses: uma boa parte é vendida no mercado secundário,
gerando lucros importantes.
Além
disso, em troca dos empréstimos, a China também negocia condições preferenciais
para suas empresas públicas — além de pleitear a administração dos
investimentos por quadros chineses. No entanto, há limites: embora
constatemente haja especulações de invasão da mão de obra chinesa na América
Latina, com hordas de trabalhadores sendo "exportadas" para a região,
este fenômeno é, na maioria das vezes, um mito. "A China está muito consciente
do que pode e do que não pode fazer. Nunca haverá milhares de chineses
trabalhando em canteiros no Brasil", insiste Paul Wrobel.
Consequências
sociais e ambientais
A
outra preocupação remete às consequências sociais e ambientais da presença chinesa.
"A escala dos investimentos e os setores nos quais estão focados —
petróleo, mineração e agricultura — fazem com que o impacto seja muito
importante", considera Paulina Garzón. No Equador, o apetite chinês
poderia ter incentivado a decisão do presidente Rafael Correa em 2013 de
explorar o petróleo no Parque Nacional Yasuni. Cinco anos antes, ele tinha, no
entanto, prometido a preservação desta região, considerada a mais rica do mundo
em termos de biodiversidade. "Os casos de violações dos direitos dos
trabalhadores e dos indígenas são cada vez mais frequentes”, diz Juan Carlos Calderón.
Ele cita a gigantesca hidrelétrica de Coca-Codo Sinclair onde 14 trabalhadores,
incluindo três chineses, morreram no ano passado. "Um acidente que as
autoridades equatorianas decidiram não investigar", acrescenta.
A
China, que baseou o seu crescimento em usinas de energia térmica e no
deslocamento forçado de milhões de pessoas, é facilmente retratada na imprensa
latino-americana como uma potência devastadora, tanto na área social quanto na
ambiental. "Mas o país mudou. Agora, é o primeiro investidor em energias
renováveis, inclusive no Brasil, onde ela deve financiar a geração de
eletricidade a partir de turbinas eólicas", diz Paulo Wrobel. Na Colômbia,
Benjamin Creutzfeldt, um pesquisador especialista em China do Colégio de
Estúdios Superiores em Administração, também aponta a necessidade de acabar com
a demonização das empresas chinesas. "O impacto social e ambiental delas é
o mesmo que aquele causado por empresas canadenses ou australianas. São os
países receptores de investimentos que devem estabelecer regras para se
proteger", acredita.
Desindustrialização
e falta de planejamento
Debate
semelhante acontece em torno da reprimarização econômica, fenômeno de
desindustrialização, acelerado pelos investimentos chineses, que forçam o país
a reajustar o foco para a exportação de matérias-primas.
"Já
não é mais um risco, é uma realidade. O Equador, por exemplo, está apostando
cada vez mais numa economia extrativista para satisfazer as necessidades dos
chineses, intensificando o modelo de exportação de matérias primas”, denuncia
Juan Carlos Calderón. Quem discorda é Benjamin Creutzfeldt: "A
desindustrialização é uma preocupação legítima, mas o risco é o mesmo com uma
empresa britânica”. Para ele, os chineses estão dispostos a investir em
infraestrutura, o que poderia ajudar a modernizar as economias
latino-americanas. “Cabe a cada país saber trabalhar para lucrar com essa
relação”, completa.
Deste
ponto de vista, a falta de plano estratégico, seja em Brasília, Buenos Aires,
Caracas ou Quito é o verdadeiro problema. “Apesar da importância dos
investimentos, aqui no Brasil, é a improvisação que prevalece”, considera Paulo
Wrobel. Ele lembra, por exemplo, que a Caixa Econômica Federal foi escolhida
para gerir os fundos investidos pela China no país. "Mas a Caixa é um
banco imobiliário especializado no financiamento de casas para as famílias de
média e baixa renda, ela não tem expertise sobre infraestrutura, não
faz sentido", avalia o pesquisador.
Imperialismo
com nova cara?
Ao
contrário da "improvisação à brasileira", a estratégia da China
parece bem clara, e a viagem de Li Keqiang na região é mais um sinal da
presença mais agressiva da China no cenário mundial. Apesar de ser marginal em
termos de comércio internacional, a América do Sul não deixa de ser uma zona
considerada historicamente como o quintal dos Estados Unidos. "Enquanto a
política externa brasileira é muito menos ativa hoje do que durante os anos
Lula, esta aliança estratégica com a China é agora o eixo principal",
observa Paulo Wrobel, que também lembra a criação do banco de Brics (China, Índia, Rússia, Brasil
e África do Sul), cuja sede será localizada em Xangai.
Fica
uma duvida: será que a China vai conseguir evitar ser taxada de imperialista
como foram os Estados Unidos? É claro que o primeiro-ministro Li Keqiang foi
cuidadoso em seus discursos.
"Os
chineses aprendem muito rapidamente, há uma rotação muito eficaz de seu corpo
diplomático, eles convidam regularmente delegações latino-americanas, tudo para
ajustar sua estratégia a cada país e para acabar com o mito da China
enigmática", diz Benjamin Creutzfeldt. Mas esta postura discreta se torna
cada vez mais difícil de ser mantida. "Quando um país passa a ser a
primeira potência do mundo, com presença comercial, política e militar, mostrar
os músculos acaba sendo inevitável", conclui Paulo Wrobel.