Surpresa: Coreia do Sul
aproxima-se da China e Rússia, sacode o xadrez geopolítico na Ásia e amplia
isolamento dos EUA, cuja única política parece ser a guerra
Adam Garrie* no The Duran | Outras Palavras | Tradução: Vila Vudu
O presidente sul-coreano
Moon Jae-in reuniu-se há uma semana (em 14/12) com Xi Jinping, presidente da
China. O encontro reafirmou que a Coreia do Sul, um tradicional aliado dos EUA
na Ásia, quer mesmo engajar-se na Iniciativa Cinturão e Estrada, ICE, da China.
As implicações da decisão vão além das questões vinculadas à economia da Coreia
do Sul. O movimento pode levar a mais uma abertura para a paz na região – o que
os EUA tentam impedir ou retardar o máximo possível.
Durante toda a Guerra Fria, a
doutrina da destruição mútua assegurada [em inglês: mutually assured
destruction], que atende pelo acrônimo muito adequado
de MAD [“louco(a)”], assegurou que, por mais altas que fossem as
tensões, nenhuma das potências nucleares jamais atacaria diretamente a outra.
Embora a Guerra Fria tenha
acabado, a ideia de que seria loucura dois países matarem-se mutuamente,
contando os mortos aos milhões, ainda vale e mantém-se forte. Por essa razão, o
presidente Putin da Rússia disse mais uma vez que o programa de armas da Coreia
do Norte é movido por razão bem clara. As autoridades em Pyongyang não querem
ver seu país e seu povo destruídos como Iraque e Líbia, simplesmente porque os
países árabes não contavam com o fator MAD de contenção.
Mas, com a embaixadora de Trump na
ONU, Nikki Haley, e o diretor da CIA, Mike Pompeo, seguindo o ímpeto
literalmente alucinado do próprio Trump e ameaçando pelo menos uma vez por
semana destruir a Coreia do Norte, há um enredo real que está deixando muita
gente preocupada nos bastidores em Washington.
A Coreia do Sul está claramente
movimentando-se na direção da China e da Rússia, as superpotências
geograficamente mais próximas. Na verdade, num sentido literal, a única coisa
que separa a Coreia do Sul de Rússia e China é a Coreia do Norte. Apesar disso,
por décadas, a mentalidade de soma zero (“o vencedor leva tudo”) da Guerra Fria
que dominou as relações geopolíticas no século 20, levou a Coreia do Sul a
manter-se separada dos dois vizinhos gigantes.
Isso já mudou muito hoje em dia.
Mais que isso, o âmbito e a intensidade das relações de Seul com ambas as
capitais, Pequim e Moscou, aceleraram-se rapidamente no governo moderado do
presidente Moon Jae-in.
Moon desenvolveu relacionamento
pessoalmente caloroso e visivelmente produtivo com Vladimir Putin desde que
assumiu a presidência, em maio de 2017. Moon apoiou, sem hesitar, a iniciativa
de Putin de cooperação econômica tripartite entre Rússia e os dois estados
coreanos, quando a iniciativa foi exposta pela primeira vez no Fórum Econômico
Oriental em Vladivostok.
Coreia do Sul e Rússia continuam
a trabalhar em projetos mais imediatos de energia, incluindo o fornecimento de
gás natural liquefeito russo à Coreia do Sul. Há outras conversações em curso
sobre acordos de livre comércio mais amplos entre Moscou e Seul, que podem
estar concluídas em 2018.
O relacionamento da Coreia do Sul
com a China continua a expandir-se por linhas semelhantes a essas. Foi o
significado da visita de Moon Jae-in a Pequim, na qual manteve conversações
substanciais com o presidente chinês Xi Jinping.
Uma reportagem da Xinhua
sobre o encontro indica claramente que os dois países são sinceros no movimento
para buscar relações calorosas para o século 21, depois de anos sem relações
oficiais, durante a Guerra Fria (elas só foram restabelecidas em 1992). Mais
crucial: a mídia chinesa parece estar otimista quanto à participação da Coreia
do Sul na Iniciativa Cinturão e Estrada.
Em vários sentidos, a Iniciativa
Cinturão e Estrada permanece como um dos pontos mais críticos que podem afetar
um possível alívio nas tensões entre as duas Coreias. Aparentemente a Coreia do
Sul percebe esse risco, tanto de seu próprio ponto de vista econômico como em
relação às preocupações de segurança primordiais para a região e o mundo em
geral.
Há visões quase opostas em
choque. O EUA dispõem-se a matar de fome a Coreia do Norte, para obrigá-la a
curvar-se, tática que Putin já avisou que não funcionará, porque os coreanos
“comerão grama” se preciso for, mas nunca se renderão às provocações do Ocidente.
A China e a Rússia, enquanto isso, veem com clareza que só a abertura de
oportunidades que mutuamente favoreçam os dois lados podem resolver a crises
geopolíticas.
A China implementou um modelo
“ganha-ganha” de gestão de crises nas suas primeiras iniciativas modernas de
promover a paz em disputa que envolve terceiros: o plano de paz chinês para o Estado
Rakhine de Myanmar foi anunciado sem alarde, mas já está sendo
implementado.
A chave para o sucesso do
programa foi estimular a cooperação entre autoridades nos dois lados, em
Myanmar e em Bangladesh, com promessas de maiores investimentos econômicos e
oportunidades de comércio como integrantes da Iniciativa Cinturão e Estrada.
Com certeza, enquanto os EUA vociferam ameaças, o modelo “ganha-ganha” dos
chineses garantiu a confiança e o apoio dos dois lados, de Naypyidaw e de Dhaka
– dois países que a Índia quer afastar da ICE. O método chinês superou sem
alarde e derrotou as ameaças dos EUA e as arapucas políticas da Índia.
Para a Coreia do Sul, um modelo
similar de “ganha-ganha” também está sendo tentado, apesar de as circunstâncias
serem muito diferentes.
Em 30 de outubro, Pequim e Seul
concluíram um acordo ainda não divulgado relacionado às graves preocupações da
China quanto à presença de mísseis do sistema US THAAD em território
da Coreia do Sul. Rússia e China tentaram negociar a saída da Coreia do Sul
dos US THAAD, com a presença dos mísseis dos EUA interpretada como
grave ponto de provocação contra Pyongyang, ao mesmo tempo em que também
representa uma ameaça contra China e Rússia.
A China mantém sua oposição à
presença do sistema THAAD e, embora os mísseis continuem na Coreia do
Sul, o fato de que os dois países, China e Coreia do Sul, tenham chegado a um
acordo sobre a questão significa que, nesse assunto, a China confia na boa
vontade do presidente da Coreia do Sul mais do que na dos EUA.
Essa boa vontade resultou na
reunião positiva em Pequim, quando os dois países decidiram ampliar os laços
comerciais de curto e de longo prazo.
Claramente não é o que os EUA
desejam. Os americanos procuram construir uma rede de nações que dependam
fortemente dos EUA para sua própria segurança e, consequentemente, para a
formulação de políticas, em troca de acordos econômicos.
O modelo chinês não tem
condicionantes que sufoquem os parceiros. A China deixou muito claro, seja em
palavras seja em ações, que nada exige em termos de política doméstica e de
governança em ‘troca’ de acordos de cooperação comercial e investimento.
O fato de o modelo chinês ser
hoje atraente para a Coreia do Sul, nação antes tão firmemente presa nas garras
dos EUA, dos quais nunca foi mais que estado satélite, demonstra que, na medida
em que os aliados dos EUA amadurecem, eles passam a buscar diversificar suas
relações econômicas e geopolíticas, não raras vezes à custa dos antes
inalteráveis laços com os EUA.
Isso não implica dizer que a
Coreia do Sul deixa de ser aliada e parceira dos EUA, o que ela ainda é. Mas no
modelo chinês há espaço para aliados novos e tradicionais, lado a lado, e novos
parceiros na Iniciativa Cinturão e Estrada.
A ideia de que tudo em
geopolítica é competição cabeça a cabeça é relíquia da Guerra Fria que continua
a modelar o pensamento dos EUA, ainda mais do que na Guerra Fria, quando os EUA
cortejavam Estados comunistas como a Romênia, e Estados não alinhados com
tendências à esquerda que iam de Índia ao Egito. A reaproximação de Nixon em
direção à República Popular da China e sua détente com a URSS
provaram que até no auge da Guerra Fria os EUA costumavam ser menos dogmáticos
e extremados do que viriam a ser a partir do início da década de 1990.
No paradigma formulado pelos EUA
de 2017, o único perdedor é a nação que insista em competir, em vez de buscar
extrair o melhor de cada situação. Nesse sentido, os EUA estão claramente no
lado perdedor, e o outro lado, China, Rússia e Coreia do Sul, são os
vencedores. Com o tempo, também a Coreia do Norte pode vir a ser Estado vencedor,
com Rússia e China sempre insistindo em coordenar um processo de paz, em
relação ao qual os EUA só fazem disparar sinais cada vez mais ambíguos e
confusos.
Quando sobrevier um eventual
processo de paz, a cooperação da Coreia do Sul será relevante. Se a Rússia, a
China e a Coreia do Sul vierem a formar uma teia de comércio e cooperação entre
elas, a única peça faltante será a Coreia do Norte.
Apesar da posição da Coreia do
Norte em relação à do Sul, autoridades em Pyongyang declararam que não
pretendem hostilizar o Sul, desde que Seul dê sinais de que negocia como Estado
soberano, que representa outra coisa, não apenas um instrumento da agressiva
política exterior dos EUA na região.
Ao cooperar com China e Rússia, a
Coreia do Sul pode tornar essa mensagem cada vez mais clara e, assim,
conquistar cada vez mais a confiança de Pyongyang.
O mesmo está acontecendo em
várias outras zonas geopolíticas de conflito. A conclusão lógica desse cenário
é que o único obstáculo que impede que se faça a paz e construa-se cooperação
produtiva é a presença dos EUA no Leste da Ásia.
A Coreia do Sul está fazendo seu
próprio percurso, motivo pelo qual os EUA tentam criar e provocar tensões na
península coreana, para impedir que se construa qualquer tipo de paz, como
resultado do já inegável movimento de pivô geopolítico de Seul.
*Adam Garrie - Jornalista inglês
especializado em geopolítica com foco na Eurásia. Editor de The Duran
(theduran.com) e colaborador articulista ou colunista de diversos veículos em
língua inglesa
Também publicado em PÁGINA GLOBAL
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