sexta-feira, 15 de novembro de 2024

Massacre de Santa Cruz: histórias de jovens que arriscaram tudo pela liberdade

Antónia Martins | Diligente

Os jovens combatentes pela independência sabiam que iriam pagar com a vida, mas, conscientemente, sacrificaram-se para alcançar a vitória. Sem o jornalismo corajoso e apaixonado, esses sacrifícios teriam sido em vão.

Na manhã de 12 de novembro, há 33 anos, milhares de jovens timorenses reuniram-se em Díli, conscientes de que estavam a desafiar a morte. Aqueles que se juntaram à procissão para o cemitério de Santa Cruz sabiam que estavam a arriscar tudo. Não era apenas uma marcha para prestar homenagem a Sebastião Gomes, brutalmente assassinado dias antes, mas uma ousada declaração ao mundo: Timor-Leste exigia o seu direito à autodeterminação.

Ao relembrar o massacre de Santa Cruz, destacam-se os 271 jovens que perderam a vida, segundo o relatório Chega! da Comissão de Acolhimento, Verdade e Reconciliação de Timor-Leste (CAVR), e os inúmeros que desapareceram sem deixar rasto.

A tragédia, capturada pelas corajosas lentes do jornalista britânico Max Stahl, tornou-se um ponto de viragem para a luta pela independência timorense. O mundo, até então alheio, finalmente abriu os olhos para o sofrimento deste pequeno território, ocupado pela Indonésia.

A violenta repressão ao protesto não foi apenas um banho de sangue no cemitério. Foi um capítulo numa longa história de torturas, desaparecimentos e violência sexual que marcaram a ocupação indonésia. Durante anos, o povo de Timor-Leste enfrentou uma opressão impiedosa, perdendo vidas e dignidade para que as gerações futuras pudessem viver em liberdade.

Segundo Duarte Basílio Ximenes, conhecido como ‘Leki Kiik’, sobrevivente dos incidentes em Motael e do massacre de Santa Cruz, o objetivo dos jovens naquele dia não era apenas homenagear Sebastião Gomes e protestar, mas chamar a atenção internacional para a causa timorense.

“É melhor morrer por uma causa justa do que viver sem fazer nada”, recorda Januário Gomes ‘Tali Meta’, sobrevivente do massacre e ex-prisioneiro. Em entrevista ao Centro Audiovisual Max Stahl de Timor-Leste (CAMSTL), ‘Tali Meta’ afirmou que dar a vida para que outros possam viver melhor é um sacrifício de enorme valor. Para estes jovens, a morte era um preço aceitável para que o mundo percebesse a brutalidade que se vivia sob o jugo indonésio.

O massacre no cemitério: testemunhos de horror

Os jovens ativistas preparavam-se para receber a delegação do Parlamento português com manifestações. A delegação incluía Jill Jolliffe como membro informada (ela vivia em Portugal há alguns anos). No entanto, os indonésios impediram a delegação de entrar devido à sua presença, levando os portugueses a cancelar a visita. Ainda assim, alguns jornalistas conseguiram entrar em Timor-Leste disfarçados de turistas. Ao perceberem a presença de jornalistas, os jovens decidiram avançar com a manifestação.

A iniciativa tornou-se uma prova concreta para a diplomacia de Ramos-Horta, que procurava levar ao fórum internacional as denúncias de violações de direitos humanos cometidas pela ocupação indonésia.

Enquanto a procissão seguia em direção ao cemitério, os militares, polícias e agentes de inteligência indonésios alinhavam-se na rua, observando a multidão. Estima-se que cerca de 3.500 jovens tenham participado na missa em Motael.

O que começou como uma homenagem pacífica rapidamente se transformou num protesto, onde panfletos foram lançados ao ar, clamando por liberdade. Para ‘Leki Kiik’, a manifestação foi o ponto de partida para um plano maior.

O plano era ousado: alguns dos jovens levavam granadas, esperando confiscar armas dos militares. Mas como lembra ‘Leki Kiik’, o destino não esteve do seu lado. Os militares presentes estavam desarmados. Apenas um militar estava armado, mas os jovens decidiram que não valia a pena atirar uma granada para obter apenas uma arma.

No entanto, pouco depois, chegou um carro vindo de Becora para o cemitério, transportando militares armados. Um jovem lançou uma granada ao veículo, mas esta não explodiu, perdendo-se assim uma oportunidade de confiscar armas. “Se não houvesse falhas, não teriam morrido tantos jovens”, recordou o sobrevivente.

Acrescentou que, após a granada não rebentar, os tiros ecoaram pelo cemitério. Testemunhou que os primeiros disparos não partiram dos militares indonésios, mas sim de timorenses. Enquanto isso, as milícias, relatou ‘Leki Kiik’, esfaqueavam os jovens independentistas.

De acordo com o relatório da CAVR, logo que chegaram ao cemitério, os jovens foram massacrados pelas forças indonésias, que abriram fogo durante 5 a 10 minutos com metralhadoras.

Jacinto Alves, um ativista clandestino que conseguiu escapar, testemunhou: “Depois de caminhar cerca de 200 metros, ouvi tiros rápidos durante aproximadamente cinco minutos, seguidos de disparos isolados, que continuaram por muito tempo já depois de eu ter chegado a casa”.

Simplício Celestino de Deus, um sobrevivente, relatou à CAVR que, após cerca de 10 minutos de tiroteio, viu os militares a entrar no cemitério, onde pontapeavam e agrediam os feridos com coronhadas.

Muitos jovens foram executados a sangue frio, enquanto outros, mesmo feridos, encaminhados diretamente para o mortuário, onde foram executados. Aviano Faria, um dos sobreviventes, escapou fingindo ser um informador dos militares indonésios.

O relatório indica que o número estimado de pessoas detidas após o incidente, segundo a Amnistia Internacional, foi de cerca de 300. Os testemunhos recolhidos descreveram os métodos de detenção arbitrária como brutais, envolvendo espancamentos severos tanto por parte da polícia como dos militares.

As detenções e torturas de jovens ativistas pró-independência intensificaram-se após o massacre. “Muitos foram mortos no cemitério, mas muitos mais perderam a vida fora dele, enquanto tentavam fugir ou eram retirados dos seus esconderijos em casas e em outros locais para serem assassinados”, relatou Simplício de Deus.

O documento destaca que os estudantes foram especificamente alvo das forças de segurança após o massacre em Santa Cruz. “No final, muitas crianças pagaram um preço elevado pelo seu envolvimento no massacre. Dos 271 registados como mortos no cemitério de Santa Cruz, 42 tinham menos de 17 anos, incluindo alguns com apenas dez anos de idade.”

Max Stahl: o jornalista que mudou o destino de Timor-Leste

Foi a coragem de Max Stahl que trouxe estas atrocidades à luz. Max acompanhou a procissão e capturou em vídeo a brutalidade que se desenrolou diante dos seus olhos. Sob risco de vida, escondeu a gravação num túmulo e conseguiu escapar.

Segundo ‘Leki Kiik’, que alega ter estado ao lado de Max Stahl enquanto este enterrava a gravação, o jornalista usou uma pequena faca para escavar a terra. Apesar de ter sido detido, foi posteriormente libertado por não terem encontrado qualquer gravação.

Quatro dias depois, a 16 de novembro de 1991, a filmagem foi transmitida pela televisão holandesa, provocando uma onda de indignação global. Esta exibição mudou drasticamente a perceção mundial sobre a ocupação indonésia em Timor-Leste, confirmando o que os apoiantes da sociedade civil há muito denunciavam: que “Timor-Leste era uma sociedade em grande sofrimento, onde a repressão militar era uma realidade, e que um verdadeiro ato de autodeterminação era a chave para a paz”.

Ramos-Horta afirmou à CAVR que a filmagem de Max Stahl no cemitério de Santa Cruz foi crucial para impedir que a comunidade internacional continuasse a duvidar das suas denúncias de genocídio.

A saída da filmagem do país foi orquestrada por Saskia Kouwenberg, jornalista e ativista de direitos humanos, com a ajuda do Ministro dos Negócios Estrangeiros holandês que visitava Timor-Leste em antecipação à esperada visita da delegação portuguesa. Saskia conseguiu passar pelo aeroporto sem ser revistada, tendo-se preparado para o pior: fez sangrar o nariz e espalhou o sangue nas cuecas, precisamente sobre o local onde escondeu a gravação.

Para Max Stahl, a mensagem captada pela sua câmara foi uma mensagem de dignidade. Antes, a morte de um timorense era apenas “um momento fugaz na morte de mais um ser humano, impotente perante o abuso e a crueldade da ignorância e do poder”, mas esta filmagem transformou a perceção das pessoas em todo o mundo. “Às vezes, a dignidade pode mudar o mundo. Esta foi uma mensagem que libertou uma nação e reacendeu a esperança num mundo de desespero”, afirmou Max Stahl em 2020, numa homenagem às vítimas do massacre.

“Continuemos todos a luta pela dignidade, contra todas as probabilidades, pela qual morreram aqueles jovens no dia 12 de novembro de 1991”, concluiu Max Stahl no seu discurso de 2020, um ano antes da sua morte.

A data da sua morte coincidiu com a de Sebastião Gomes, ocorrendo exatamente trinta anos depois, a 28 de outubro de 2021. “Parece demasiado forte para ser coincidência. Ele não o teria sabido conscientemente, porque estava inconsciente, mas, de alguma forma, sabia. De certa forma, o significado desse acontecimento foi muito profundo. É quase perturbador porque é tão coincidente”, lembrou a mulher de Max Stahl, Ingrid Bucens, emocionada.

O funeral do jornalista, segundo a sua mulher, não poderia ter sido noutro local. “Nunca pensou em querer morrer, mas disse-me que, se morresse, gostaria que as suas cinzas fossem espalhadas em Santa Cruz”, revelou. Uma pequena parte das suas cinzas foi espalhada na Suécia, de onde é originária a família da sua mãe.

Para Ingrid, Max Stahl era um pensador profundo, elegante, inteligente e socialmente consciente do que realmente importava. “Ele tinha grande esperança no desenvolvimento de Timor-Leste e estava orgulhoso do facto de os timorenses terem conseguido gerir a sua transição”, contou Ingrid.

“O que aconteceu em Santa Cruz não foi apenas crucial para Timor-Leste, mas também para o percurso pessoal de Max, porque, como ele próprio disse, quase morreu nesse dia”, acrescentou Ingrid.

Segundo ela, a ligação que o seu falecido marido estabeleceu com Timor-Leste e com o seu povo deu um novo rumo à vida dele, tornando-se uma força motriz para a sua existência e o seu empenho em servir a população timorense.

Isto manifestou-se no seu envolvimento com o Centro Audiovisual Max Stahl de Timor-Leste (CAMSTL). Max Stahl acreditava que a preservação desta história seria um recurso contínuo e valioso para os timorenses, académicos e jornalistas, ajudando a manter vivas as histórias, promover o orgulho nacional, a pertença e a paz. A paixão e dedicação do jornalista mantiveram-se até ao seu último suspiro. Pouco antes de morrer, escreveu à sua mulher: “Talvez eu precise de morrer para que o CAMSTL sobreviva”.

Ingrid revelou que Max Stahl lutou incansavelmente para que o CAMSTL fosse reconhecido, apoiado e transformado em propriedade do Estado. “E quando estava a morrer, pensou: isto fará com que os timorenses queiram manter o CAMSTL vivo. Era o que mais importava para ele”, afirmou Ingrid.

Agora, o legado está nas mãos dos timorenses e da família de Max Stahl: a sua mulher e filhos. Ingrid compromete-se a continuar a contribuir e a trabalhar para garantir que o arquivo seja sustentável a longo prazo. Max deixou a memória de Santa Cruz como uma herança aos seus filhos, contando-lhes a história e levando-os ao cemitério todos os anos, antes de deixar Timor-Leste em 2020.

“Max Stahl destacou que o CAMSTL defende a ideia de que as vidas das pessoas que vivem e crescem em Timor-Leste são tão valiosas quanto as de quem cresce nos Estados Unidos ou na Europa e merecem ser vistas e respeitadas da mesma forma”, afirmou Arnold S. Kohen, ativista e escritor que apoiou a causa timorense a nível internacional, numa homenagem a Max Stahl em novembro de 2021.

Arnold S. Kohen deixou um alerta: “Todas as nações têm uma história e, se não a conhecem ou compreendem, estão condenadas a repeti-la.”

- Imagem: Procissão de Motael para o cemitério de Santa Cruz este ano, em homenagem aos jovens mortos no massacre de 1991/Foto: DR

Timor-Leste | A INVENÇÃO DO DIA ESCURO

Ludo Lunden | Diligente

33 anos depois do Massacre de Santa Cruz, a 12 de novembro de 1991, a Polícia Nacional de Timor-Leste (PNTL) decidiu proibir qualquer manifestação pública nas comemorações de 2024. É paradoxal que, num país cuja independência foi conquistada por meio de manifestações e sacrifícios, se silenciem agora as vozes que pretendem exercer justamente o direito à liberdade de expressão. Esta proibição, mais do que uma simples medida de repressão bacoca, parece trair o próprio espírito de luta que levou Timor-Leste à sua soberania.

A 28 de outubro de 1991, Sebastião Gomes, um jovem de 18 anos, apoiante da independência e membro da Resistência Nacional dos Estudantes de Timor-Leste (RENETIL), foi assassinado na Igreja de Motael. Duas semanas depois, a 12 de novembro, ocorreu o Massacre de Santa Cruz.

Foi precisamente dessa igreja que partiu a procissão, dirigindo-se para o cemitério de Santa Cruz, onde se depositaram flores na campa de Sebastião Gomes, e o rastilho para os protestos que se seguiram face à aparição de militares do TNI indonésio armado com metralhadoras. No rescaldo, resultaram pelo menos 271 mortos e 278 feridos, de acordo com a imprensa da altura (Rádio Renascença e semanário Expresso) e um número indeterminado de desaparecidos.

A 12 de novembro de 2024, comemorou-se o 33.º aniversário daquela data e se, ao nível do discurso, a efeméride é considerada uma memória preciosa, algumas práticas parecem indicar outra direção. No dia anterior às comemorações, o Comando-Geral da PNTL, através do Comando Operacional, emitiu uma diretiva ao Comando Municipal de Díli para “garantir a segurança durante as comemorações do 19.º aniversário do Dia Nacional da Juventude e do 33.º aniversário do Massacre de Santa Cruz”. Esta diretiva incluiu a proibição de qualquer manifestação pública, entenda-se, de protestos de qualquer índole.

O Comandante da PNTL de Díli, Superintendente-Chefe Orlando Gomes, assegurou que iria destacar efetivos para locais mais propícios, no seu entendimento, a manifestações de protesto indesejadas. Asseverou que iria “atuar contra grupos ou pessoas que queiram realizar ações de manifestação neste dia” (Youtube da RTTL, Últimas Notícias de 11 de novembro de 2024).

O dia cujo lema é “Orgulho com a nossa história e juntos desenvolvemos a nossa nação para um futuro prospero” conta assim com um primeiro paradoxo: delibera-se silenciar as vozes de jovens que, eventualmente, quisessem protestar em homenagem aos jovens que protestaram a 12 de novembro de 1991 e que, em última instância, tiveram um papel crucial no processo que conduziu à independência e soberania de Timor-Leste.

Um segundo paradoxo reside na circunstância de se saber que a geração de jovens que protestou em 1991 é, mais de três décadas depois, a mesma geração que agora permite estas intenções por passividade, por silêncio, por anuência ou, mais grave, está nos círculos do poder a tomar este tipo de decisões.

Um terceiro paradoxo é que, naquele dia, também se comemorou a décima nona edição do Dia Nacional da Juventude e poucas dúvidas restam que seria a juventude atual o alvo predileto do Superintendente-Chefe Orlando Gomes.

Estas medidas de repressão bacoca encontram maior eco sobretudo em datas comemorativas ou efemérides relevantes: aquando da visita do Papa Francisco, foram detidos ativistas por transportarem sinalética da Palestina ou da Papua Ocidental (bandeiras, crachás ou simples t-shirts) a evocar aqueles movimentos independentistas ou simplesmente a clamar um breve slogan de revolta.  Também ocorreram detenções de estudantes universitários em frente ao Parlamento Nacional.

Sim, este ímpeto repressor manifesta-se periodicamente em detenções de jornalistas, ativistas e jovens que ousam protestar. As autoridades insistem que não se pode manchar a sacralidade destas cerimónias, mesmo que estas homenageiem os jovens que, em 1991, perderam a vida com o clamor da sua voz.

No dia 12 de novembro de 1991, jovens cordeiros timorenses baliram pelo direito ao protesto, pelo direito à reunião, pelo direito à manifestação, pelo direito de voto pelo seu futuro, pela independência e pela soberania. À espera dos cordeiros estavam lobos armados que dispararam, que raptaram, que feriram e que mataram. Agora alguns lobos- disfarçados-de-cordeiros, porventura antigos cordeiros, reprimem os atuais que, neste ambiente, nunca balirão.

É difícil acreditar que o “chefe da alcateia” dos atuais lobos-disfarçados-de-cordeiros desconhecesse as intenções do Superintendente-Chefe Orlando Gomes: o seu chefe, o chefe do seu chefe e o chefe supremo da alcateia. E se não ordenou, possibilitou por anuência ou passividade.

Depois de mais de três décadas de escuridão em Timor-Leste, onde jovens derramaram sangue e morte, não era preciso inventar um dia escuro. Não se coaduna, não se adequa, não se justifica…

Ludo Lunden, ex-professor em Timor-Leste após a independência, contribuiu para a formação de jovens professores nas áreas de língua portuguesa e didática. Atualmente, vive em Portugal, dedicando-se à escrita e à investigação em temas de educação, com um foco específico na história da educação e no estudo de manuais escolares.

Imagem: Fridia Lisnawati

LER MAIS

Na pele de uma criança trabalhadora: o preço da sobrevivência em Timor-Leste

Lourdes do Rêgo | Diligente

Com apenas 10 anos, Faustino carrega nas suas pequenas mãos mais do que sacos de snacks: carrega o peso das responsabilidades que a vida lhe impôs. Dividido entre a escola e a venda ambulante, sonha com um futuro diferente — um futuro em que poderá usar uma farda de polícia, ajudando a sua comunidade.

Ao meio-dia, sob o sol escaldante, encontramos Faustino, de 10 anos, no jardim à frente do Palácio do Governo. Perante o imponente edifício, Faustino parece quase insignificante, uma pequena figura movendo-se sob o sol de meio-dia. A sua presença frágil, vestida com uma simples camisola de manga curta, contrasta com a solidez e a opulência da estrutura à sua frente.

Enquanto segura firmemente pacotes de camarão crocante e noodles amarrados com cuidado, caminha sozinho, tentando atrair clientes com um sorriso tímido, enquanto os carros e as pessoas apressadas passam por ele. Apesar de ser apenas um estudante do 4.º ano, Faustino já conhece o que é a dureza da vida.

Todas as manhãs, o quarto de cinco irmãos veste o uniforme escolar e segue para a escola. Quando as aulas terminam, corre para casa, almoça apressadamente e, sem descanso, segue o pai, que lhe entrega os produtos que deve vender até ao entardecer. Enquanto outras crianças saem da escola para brincar, Faustino escolhe ajudar a mãe e os irmãos. “Gosto de vender na rua porque, quando as pessoas compram, a minha mãe consegue garantir que continuamos na escola e comprar a comida que gosto”, partilha com um sorriso que mistura cansaço e esperança.

Mesmo com o cansaço visível no rosto e o peso das mercadorias nas mãos, Faustino não desiste. “Num dia bom, consigo ganhar 2 dólares. Às vezes, não vendo tudo, mas o que sobra trago para casa, e o dinheiro que ganho ajuda-nos a comprar mais krupuk e snacks para vender no dia seguinte”, explica, com uma maturidade que vai além da sua idade.

O irmão de 11 anos também faz a sua parte, vendendo café e doces no Jardim de Motael. O pai, por sua vez, trabalha como carregador no porto de Díli. E, apesar das dificuldades, Faustino mantém o foco: sonha em ser polícia, não para ele, mas para dar segurança e orgulho à sua família.

A situação é dura, mas não é exclusiva de Faustino. Mais de 52 mil crianças timorenses, entre os cinco e 17 anos, são sujeitas diariamente a algum tipo de trabalho infantil. São dados do estudo da Comissão Nacional contra o Trabalho Infantil (CNTI), que fez o levantamento do número de crianças trabalhadoras em Timor-Leste, de 2016 a 2022.

Mesmo assim, Faustino e a sua família não se deixam abater. “Adoro matemática, e quando chego a casa, o meu pai ensina-me a contar. Isso faz com que eu valorize o que aprendo na escola, mesmo que não seja o melhor da turma”, conta, com um brilho nos olhos. Nas férias, em vez de brincar, prefere sair para vender, embora admita que, como qualquer criança, também goste de momentos de diversão.

Por mais que famílias como a de Faustino façam sacrifícios para garantir que os filhos estudem, muitos jovens em Timor-Leste enfrentam barreiras quase intransponíveis.

Leis que protegem, realidades que persistem

De acordo com as alíneas a) e b) do artigo 18.º da Constituição da República Democrática de Timor-Leste (CRDTL), as crianças “têm direito a uma proteção especial da família, da comunidade e do Estado, sobretudo contra todas as formas de abandono, discriminação, violência, opressão, abuso sexual e exploração”.

A Declaração sobre Princípios e Direitos Fundamentais da Organização Internacional do Trabalho (OIT), da qual Timor-Leste é membro, sublinha que todos os países membros devem comprometer-se a respeitar e promover os quatro direitos e princípios fundamentais no ambiente de trabalho, incluindo a “eliminação efetiva do trabalho infantil”.

A OIT aponta como principais fatores que fomentam o trabalho infantil a desigualdade social, a carência de um sistema de educação pública de qualidade e a falta de políticas públicas voltadas para o planeamento familiar.

Conforme esta organização, o trabalho infantil agrava problemas psicológicos, reduz o desempenho escolar e prejudica a socialização, a preparação para o futuro mercado de trabalho e o desenvolvimento cognitivo da criança, comprometendo o seu crescimento enquanto adulto. Desta forma, o trabalho infantil é uma clara violação dos direitos humanos, pois impede que a criança possa crescer plenamente e viver a sua infância de forma adequada.

A realidade de crianças como Faustino, que enfrentam diariamente o desafio de conciliar o trabalho com os estudos, é um reflexo das dificuldades socioeconómicas que ainda prevalecem em Timor-Leste. Embora a Constituição e os tratados internacionais assinados pelo país garantam a proteção das crianças contra a exploração e assegurem o direito à educação, a prática revela um cenário onde muitas famílias, devido à falta de recursos, dependem do trabalho infantil para complementar o rendimento doméstico.