Xanana Gusmão sob críticas: feministas e entidades da comunicação social denunciam intimidação e abuso de poder
O Primeiro-Ministro de Timor-Leste, Xanana Gusmão, gritou a uma jornalista durante uma entrevista, o que levou a condenações por parte da AJTL, do Conselho de Imprensa e de movimentos feministas.
Menos de uma semana depois de elogiar o papel das mulheres e defender a sua participação ativa na sociedade durante o Dia Internacional da Mulher, o Primeiro-Ministro de Timor-Leste, Kay Rala Xanana Gusmão, protagonizou um episódio de gritos contra uma jornalista.
Durante uma entrevista coletiva realizada esta quinta-feira, 13 de março, Xanana respondeu de forma exaltada a uma profissional da comunicação social que o questionou sobre a possibilidade de pacientes timorenses serem transferidos para um hospital em Atambua, na Indonésia.
“Não é transferência. Nunca disse isso”, exclamou o Primeiro-Ministro, elevando o tom de voz. “Se houver algumas doenças, precisamos de enviar pacientes para lá (Atambua, Indonésia). Isso não significa que enviamos todos. Encerrar o Guido Valadares? Quando ouvirem algo, têm de procurar compreender”, disse de forma irritada.
Em determinado momento, aproximou-se da jornalista, levando-a a recuar, e questionou: “Fala tétum ou não?” Depois, virou-se para o Presidente da República, José Ramos-Horta, e riu-se.
As declarações surgiram após a visita recente de Ramos-Horta a Atambua. Xanana Gusmão afirmou que a recomendação para uma parceria com um hospital na cidade indonésia partiu do próprio Presidente e que esta medida poderia ajudar a reduzir os custos dos tratamentos médicos no estrangeiro.
No entanto, a possibilidade de encaminhar pacientes para Atambua foi noticiada por um órgão de comunicação social, gerando intenso debate nas redes sociais. Em resposta à controvérsia, uma jornalista do Independente tentou esclarecer a questão junto do Primeiro-Ministro, mas a reação de Xanana acabou por gerar ainda mais críticas.
O comportamento do chefe de Governo foi amplamente condenado por profissionais da comunicação social e por organizações que defendem a liberdade de imprensa e os direitos das mulheres.
Jornal Independente reage: “Uma pergunta não é uma faca para justificar tal agressividade”
O Jornal Independente considerou a reação do Primeiro-Ministro desproporcional e desnecessária. “É lamentável. O Primeiro-Ministro devia responder de uma forma mais adequada, porque uma pergunta não é uma faca que magoa ao ponto de justificar uma reação tão agressiva”, criticou Jorgino dos Santos, chefe de redação do órgão de comunicação social.
Jorgino dos Santos observou ainda que a atitude do governante pode ter sido resultado da pressão gerada pela forte reação do público ao tema, e não da forma como a pergunta foi colocada. “Pelo contrário, mesmo que a pergunta tivesse sido mal formulada, o Primeiro-Ministro tinha a obrigação de corrigir e responder de forma mais adequada, e não gritar”, salientou.
O chefe de redação sublinhou que não é a primeira vez que algo do género acontece e que, Por isso, o governante deve explicar as suas posições com racionalidade e clareza. Devemos respeitar o trabalho dos jornalistas e protegê-los de qualquer forma de intimidação”, defendeu Otélio Ote.
Francisco Simões, representante dos jornalistas no Conselho de Imprensa, comentou o episódio e considerou que, apesar do tom exaltado do Primeiro-Ministro, a situação não constitui uma intimidação.
“Na minha opinião, isto não foi intimidação, porque, depois de responder em voz alta, o Primeiro-Ministro sorriu, o que demonstra que não teve a intenção de intimidar. No entanto, psicologicamente, os jornalistas não se sentiram seguros. O que ele quis mostrar foi a sua insatisfação com as críticas, alegando que não refletiam o que ele havia dito anteriormente sobre a transferência de pacientes para Atambua”, explicou.
O representante dos jornalistas sublinhou ainda a importância da Secretaria de Estado para a Comunicação Social (SECOMS) na sensibilização dos órgãos do Estado para o respeito pelos jornalistas.
“A SECOMS tem um papel fundamental na divulgação e sensibilização junto dos membros dos órgãos do Estado sobre a comunicação com os jornalistas, promovendo o respeito pela liberdade de imprensa, pela liberdade de expressão e pelos próprios jornalistas”, afirmou.
Simões discordou da forma como o Primeiro-Ministro reagiu, argumentando que, embora tenha o direito de responder, não deveria ter levantado a voz contra os jornalistas, que apenas estavam a cumprir o seu dever.
“Independentemente de a pergunta ser crítica ou não, se não quiser responder, não precisa de o fazer dessa forma. Os jornalistas estão apenas a cumprir a sua missão de divulgar informação correta para o público. O Primeiro-Ministro, ou qualquer responsável político, tem o dever de responder aos jornalistas sobre assuntos de interesse público”, reforçou.
Por fim, defendeu que os jornalistas são “os olhos, os ouvidos e a voz do povo” e que todas as perguntas relacionadas com o interesse público devem ser respondidas com responsabilidade e ética pelas fontes.
“Se uma pergunta não for pertinente ou não puder ser respondida, pode-se simplesmente esclarecer isso, sem necessidade de levantar a voz ou demonstrar agressividade. Caso contrário, estaríamos a atentar contra a liberdade de imprensa. No entanto, no caso do Primeiro-Ministro, não considero que tenha havido uma violação da liberdade de imprensa”, concluiu.
Os episódios de intimidação e desrespeito contra jornalistas em Timor-Leste refletem-se diretamente na posição do país na classificação mundial da liberdade de imprensa, elaborada pela organização Repórteres Sem Fronteiras (RSF). Timor-Leste já ocupou a 10.ª posição, destacando-se como um dos países mais livres para o exercício do jornalismo na região, mas caiu 10 lugares e atualmente está na 20.ª posição.
O secretário de Estado da Comunicação Social, Expedito Ximenes, inicialmente aceitou dar uma entrevista ao Diligente sobre o caso, mas no momento da conversa recusou-se a comentar a situação. Expedito Ximenes afirmou que primeiro precisava de consultar Xanana Gusmão, justificando que, por ser o primeiro-ministro, só ele poderia dar orientações sobre o que dizer. O secretário acrescentou que poderia pronunciar-se apenas na próxima segunda-feira, adiando assim qualquer esclarecimento oficial.
O Provedor dos Direitos Humanos e Justiça, Virgílio Guterres, afirmou que, numa república democrática, responder às perguntas dos jornalistas é um dever político dos governantes. “Basta responder de acordo com a forma como a pergunta foi apresentada. Berrar ou gritar, culpabilizando um jornalista em público, não é uma atitude decente. Mais vale não responder do que reagir dessa maneira”, declarou.
Para o Provedor, o problema não está na ausência de leis para lidar com situações como esta, mas sim na dificuldade de as aplicar quando se trata de figuras públicas. “No caso de Xanana Gusmão, muitas vezes nem a coragem nem a razão são suficientes. Se a mesma situação envolvesse outra pessoa ou outro político, o desfecho poderia ser diferente”, criticou Virgílio Guterres.
Contradição flagrante
O episódio torna-se ainda mais controverso por ocorrer poucos dias depois de Xanana Gusmão ter destacado a importância das mulheres na sociedade timorense. No passado dia 8 de março, durante as comemorações do Dia Internacional da Mulher, o Primeiro-Ministro apelou ao empoderamento feminino e sublinhou a necessidade de promover a sua participação ativa no desenvolvimento do país.
No entanto, a recente atitude do governante contrasta com esse discurso, gerando críticas sobre a coerência das suas palavras e ações. Além disso, este não é um episódio isolado, uma vez que Xanana Gusmão já protagonizou outros momentos de confronto com jornalistas no passado.
A atitude do Primeiro-Ministro em relação a uma jornalista gerou críticas de organizações feministas, que consideram o episódio um reflexo do sistema patriarcal que continua a oprimir e desvalorizar as mulheres em Timor-Leste.
Emília Moniz, membro do movimento Feminista Revolucionário (FERA), classificou o comportamento do governante como uma “violação dos direitos humanos e um abuso de poder”. Segundo a organização, este tipo de postura reforça a ideia de que as mulheres e outros grupos vulneráveis são constantemente desvalorizados no poder.
“Os governantes continuam a dar pouca importância à presença das mulheres nos espaços de decisão. Limitam-se a falar sobre o papel feminino no mercado de trabalho, não porque acreditam na igualdade de oportunidades, mas porque lhes convém manter essa narrativa”, criticou Emília Moniz.
A FERA alertou ainda para o perigo da normalização deste comportamento, pois leva a sociedade a aceitar abusos cometidos por políticos. “Por outro lado, quando são cidadãos comuns a cometer atos semelhantes, a punição é imediata. As leis raramente se aplicam às classes altas”, apontou a organização.
O movimento também fez um apelo aos jornalistas, reconhecendo o seu papel fundamental na luta contra a opressão. “O jornalismo tem um papel crucial na denúncia das injustiças. É essencial continuar a questionar o poder e a dar voz a quem tenta silenciar os mais fracos”, reforçou a FERA.
A organização pretende mobilizar a sociedade para a defesa dos direitos das mulheres através da realização de debates, da promoção da leitura e da publicação de artigos nas redes sociais.
A responsável do Movimento Rosas Mean, Fi Che, também condenou a atitude do Primeiro-Ministro, sublinhando que as suas ações não refletem os discursos que faz sobre a importância das mulheres.
“Mesmo quando fala sobre a valorização das mulheres, as suas atitudes não condizem com as palavras. A sociedade continua a dignificá-lo, apesar das contradições evidentes entre o que diz e o que faz”, afirmou.
Fi Che alertou que, sendo Xanana Gusmão uma figura de grande influência no país, o seu comportamento contribui para a perpetuação da desigualdade de género. “Se a sociedade o vê como um líder poderoso, então a sua atitude só reforça a ideia de que as mulheres são inferiores e não merecem respeito”, destacou.
A ativista também criticou o silêncio de algumas organizações que tradicionalmente defendem os direitos das mulheres, como a Rede Feto e a Fokupers, face a este episódio. “Há em Timor-Leste várias organizações que deveriam posicionar-se contra este tipo de situações, mas acabaram por silenciar”, observou.
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