Os jovens combatentes pela
independência sabiam que iriam pagar com a vida, mas, conscientemente,
sacrificaram-se para alcançar a vitória. Sem o jornalismo corajoso e
apaixonado, esses sacrifícios teriam sido em vão.
Na manhã de 12 de novembro, há 33
anos, milhares de jovens timorenses reuniram-se em Díli, conscientes de que
estavam a desafiar a morte. Aqueles que se juntaram à procissão para o
cemitério de Santa Cruz sabiam que estavam a arriscar tudo. Não era apenas uma
marcha para prestar homenagem a Sebastião Gomes, brutalmente assassinado
dias antes, mas uma ousada declaração ao mundo: Timor-Leste exigia o
seu direito à autodeterminação.
Ao relembrar o massacre de Santa
Cruz, destacam-se os 271 jovens que perderam a vida, segundo o relatório Chega!
da Comissão de Acolhimento, Verdade e Reconciliação de Timor-Leste (CAVR), e os inúmeros que
desapareceram sem deixar rasto.
A tragédia, capturada pelas
corajosas lentes do jornalista britânico Max Stahl, tornou-se um ponto de
viragem para a luta pela independência timorense. O mundo, até então
alheio, finalmente abriu os olhos para o sofrimento deste pequeno território,
ocupado pela Indonésia.
A violenta repressão ao
protesto não foi apenas um banho de sangue no cemitério. Foi um
capítulo numa longa história de torturas, desaparecimentos e violência sexual
que marcaram a ocupação indonésia. Durante anos, o povo de Timor-Leste
enfrentou uma opressão impiedosa, perdendo vidas e dignidade para que as
gerações futuras pudessem viver em liberdade.
Segundo Duarte Basílio Ximenes,
conhecido como ‘Leki Kiik’, sobrevivente dos incidentes em Motael e do massacre
de Santa Cruz, o objetivo dos jovens naquele dia não era apenas homenagear
Sebastião Gomes e protestar, mas chamar a atenção internacional para a causa
timorense.
“É melhor morrer por uma causa
justa do que viver sem fazer nada”, recorda Januário Gomes ‘Tali Meta’,
sobrevivente do massacre e ex-prisioneiro. Em entrevista ao Centro Audiovisual
Max Stahl de Timor-Leste (CAMSTL), ‘Tali Meta’ afirmou que dar a vida para que
outros possam viver melhor é um sacrifício de enorme valor. Para
estes jovens, a morte era um preço aceitável para que o mundo percebesse a
brutalidade que se vivia sob o jugo indonésio.
O massacre no cemitério:
testemunhos de horror
Os jovens ativistas preparavam-se
para receber a delegação do Parlamento português com manifestações. A delegação
incluía Jill Jolliffe como membro informada (ela vivia em Portugal há alguns
anos). No entanto, os indonésios impediram a delegação de entrar devido à
sua presença, levando os portugueses a cancelar a visita. Ainda assim, alguns
jornalistas conseguiram entrar em Timor-Leste disfarçados de turistas. Ao
perceberem a presença de jornalistas, os jovens decidiram avançar com a manifestação.
A iniciativa tornou-se uma prova
concreta para a diplomacia de Ramos-Horta, que procurava levar ao fórum
internacional as denúncias de violações de direitos humanos cometidas pela
ocupação indonésia.
Enquanto a procissão seguia em
direção ao cemitério, os militares, polícias e agentes de inteligência
indonésios alinhavam-se na rua, observando a multidão. Estima-se que cerca
de 3.500 jovens tenham participado na missa em Motael.
O que começou como uma homenagem
pacífica rapidamente se transformou num protesto, onde panfletos foram lançados
ao ar, clamando por liberdade. Para ‘Leki Kiik’, a manifestação foi o ponto
de partida para um plano maior.
O plano era ousado: alguns
dos jovens levavam granadas, esperando confiscar armas dos militares.
Mas como lembra ‘Leki Kiik’, o destino não esteve do seu lado. Os
militares presentes estavam desarmados. Apenas um militar estava armado,
mas os jovens decidiram que não valia a pena atirar uma granada para obter
apenas uma arma.
No entanto, pouco depois, chegou
um carro vindo de Becora para o cemitério, transportando militares armados. Um
jovem lançou uma granada ao veículo, mas esta não explodiu, perdendo-se assim
uma oportunidade de confiscar armas. “Se não houvesse falhas, não
teriam morrido tantos jovens”, recordou o sobrevivente.
Acrescentou que, após a granada
não rebentar, os tiros ecoaram pelo cemitério. Testemunhou que os
primeiros disparos não partiram dos militares indonésios, mas sim de
timorenses. Enquanto isso, as milícias, relatou ‘Leki Kiik’, esfaqueavam
os jovens independentistas.
De acordo com o relatório da
CAVR, logo que chegaram ao cemitério, os jovens foram massacrados pelas forças
indonésias, que abriram fogo durante 5 a 10 minutos com
metralhadoras.
Jacinto Alves, um ativista clandestino
que conseguiu escapar, testemunhou: “Depois de caminhar cerca de 200
metros, ouvi tiros rápidos durante aproximadamente cinco minutos, seguidos de disparos
isolados, que continuaram por muito tempo já depois de eu ter chegado a casa”.
Simplício Celestino de Deus, um
sobrevivente, relatou à CAVR que, após cerca de 10 minutos de
tiroteio, viu os militares a entrar no cemitério, onde pontapeavam e agrediam
os feridos com coronhadas.
Muitos jovens foram executados
a sangue frio, enquanto outros, mesmo feridos, encaminhados diretamente para o
mortuário, onde foram executados. Aviano Faria, um dos sobreviventes, escapou
fingindo ser um informador dos militares indonésios.
O relatório indica que o número
estimado de pessoas detidas após o incidente, segundo a Amnistia Internacional,
foi de cerca de 300. Os testemunhos recolhidos descreveram os métodos
de detenção arbitrária como brutais, envolvendo espancamentos
severos tanto por parte da polícia como dos militares.
As detenções e torturas de jovens
ativistas pró-independência intensificaram-se após o massacre.
“Muitos foram mortos no cemitério, mas muitos mais perderam a vida fora dele,
enquanto tentavam fugir ou eram retirados dos seus esconderijos em casas e em
outros locais para serem assassinados”, relatou Simplício de Deus.
O documento destaca que os
estudantes foram especificamente alvo das forças de segurança após o
massacre em Santa Cruz.
“No final, muitas crianças pagaram um preço elevado pelo seu
envolvimento no massacre. Dos 271 registados como mortos no cemitério de Santa
Cruz, 42 tinham menos de 17 anos, incluindo alguns com apenas dez anos de
idade.”
Max Stahl: o jornalista que mudou
o destino de Timor-Leste
Foi a coragem de Max Stahl que trouxe
estas atrocidades à luz. Max acompanhou a procissão e capturou em vídeo a
brutalidade que se desenrolou diante dos seus olhos. Sob risco de
vida, escondeu a gravação num túmulo e conseguiu escapar.
Segundo ‘Leki Kiik’, que alega ter
estado ao lado de Max Stahl enquanto este enterrava a gravação, o jornalista
usou uma pequena faca para escavar a terra. Apesar de ter sido detido, foi posteriormente libertado
por não terem encontrado qualquer gravação.
Quatro dias depois, a 16 de
novembro de 1991, a
filmagem foi transmitida pela televisão holandesa, provocando uma onda de
indignação global. Esta exibição mudou drasticamente a perceção
mundial sobre a ocupação indonésia em Timor-Leste, confirmando o que os
apoiantes da sociedade civil há muito denunciavam: que “Timor-Leste era uma
sociedade em grande sofrimento, onde a repressão militar era uma
realidade, e que um verdadeiro ato de autodeterminação era a chave
para a paz”.
Ramos-Horta afirmou à CAVR que a
filmagem de Max Stahl no cemitério de Santa Cruz foi crucial para
impedir que a comunidade internacional continuasse a duvidar das suas denúncias
de genocídio.
A saída da filmagem do país foi orquestrada por
Saskia Kouwenberg, jornalista e ativista de direitos humanos, com a
ajuda do Ministro dos Negócios Estrangeiros holandês que visitava Timor-Leste
em antecipação à esperada visita da delegação portuguesa. Saskia conseguiu
passar pelo aeroporto sem ser revistada, tendo-se preparado para o pior:
fez sangrar o nariz e espalhou o sangue nas cuecas, precisamente sobre
o local onde escondeu a gravação.
Para Max Stahl, a mensagem captada pela
sua câmara foi uma mensagem de dignidade. Antes, a morte de um timorense era
apenas “um momento fugaz na morte de mais um ser humano, impotente perante
o abuso e a crueldade da ignorância e do poder”, mas esta filmagem transformou
a perceção das pessoas em todo o mundo. “Às vezes, a dignidade pode mudar o
mundo. Esta foi uma mensagem que libertou uma nação e reacendeu a
esperança num mundo de desespero”, afirmou Max Stahl em 2020, numa homenagem às
vítimas do massacre.
“Continuemos todos a luta pela
dignidade, contra todas as probabilidades, pela qual morreram aqueles jovens no
dia 12 de novembro de 1991”,
concluiu Max Stahl no seu discurso de 2020, um ano antes da sua morte.
A data da sua morte coincidiu com
a de Sebastião Gomes, ocorrendo exatamente trinta anos depois, a 28 de outubro
de 2021. “Parece demasiado forte para ser coincidência. Ele não o teria sabido conscientemente,
porque estava inconsciente, mas, de alguma forma, sabia. De certa forma, o
significado desse acontecimento foi muito profundo. É quase perturbador porque
é tão coincidente”, lembrou a mulher de Max Stahl, Ingrid Bucens, emocionada.
O funeral do jornalista, segundo
a sua mulher, não poderia ter sido noutro local. “Nunca pensou em querer
morrer, mas disse-me que, se morresse, gostaria que as suas cinzas fossem
espalhadas em Santa Cruz”,
revelou. Uma pequena parte das suas cinzas foi espalhada na Suécia, de onde é originária a
família da sua mãe.
Para Ingrid, Max Stahl era um
pensador profundo, elegante, inteligente e socialmente consciente do que
realmente importava. “Ele tinha grande esperança no desenvolvimento de
Timor-Leste e estava orgulhoso do facto de os timorenses terem conseguido gerir a
sua transição”, contou Ingrid.
“O que aconteceu em Santa Cruz não foi
apenas crucial para Timor-Leste, mas também para o percurso pessoal
de Max, porque, como ele próprio disse, quase morreu nesse dia”, acrescentou
Ingrid.
Segundo ela, a ligação que o seu
falecido marido estabeleceu com Timor-Leste e com o seu povo deu um novo rumo à
vida dele, tornando-se uma força motriz para a sua existência e o seu
empenho em servir a população timorense.
Isto manifestou-se no seu
envolvimento com o Centro Audiovisual Max Stahl de Timor-Leste (CAMSTL). Max
Stahl acreditava que a preservação desta história seria um recurso contínuo e
valioso para os timorenses, académicos e jornalistas, ajudando a manter vivas as
histórias, promover o orgulho nacional, a pertença e a paz. A paixão
e dedicação do jornalista mantiveram-se até ao seu último suspiro. Pouco antes
de morrer, escreveu à sua mulher: “Talvez eu precise de morrer para que o
CAMSTL sobreviva”.
Ingrid revelou que Max Stahl
lutou incansavelmente para que o CAMSTL fosse reconhecido, apoiado e
transformado em propriedade do Estado. “E quando estava a morrer, pensou: isto
fará com que os timorenses queiram manter o CAMSTL vivo. Era o que mais
importava para ele”, afirmou Ingrid.
Agora, o legado está
nas mãos dos timorenses e da família de Max Stahl: a sua mulher e filhos.
Ingrid compromete-se a continuar a contribuir e a trabalhar para garantir que o
arquivo seja sustentável a longo prazo. Max deixou a memória de Santa
Cruz como uma herança aos seus filhos, contando-lhes a história e levando-os ao
cemitério todos os anos, antes de deixar Timor-Leste em 2020.
“Max Stahl destacou que o CAMSTL
defende a ideia de que as vidas das pessoas que vivem e crescem em Timor-Leste
são tão valiosas quanto as de quem cresce nos Estados Unidos ou na
Europa e merecem ser vistas e respeitadas da mesma forma”, afirmou Arnold S.
Kohen, ativista e escritor que apoiou a causa timorense a nível internacional,
numa homenagem a Max Stahl em novembro de 2021.
Arnold S. Kohen deixou um alerta:
“Todas as nações têm uma história e, se não a conhecem ou compreendem, estão
condenadas a repeti-la.”
- Imagem: Procissão de Motael para
o cemitério de Santa Cruz este ano, em homenagem aos jovens mortos no massacre
de 1991/Foto: DR