Almoço com Peter Rayner,
embaixador da Austrália em Portugal
O embaixador, fiel ao apelo
patriótico, escolheu o DownUnder, o único restaurante australiano em Lisboa, e
ainda bem. Tinha na cabeça repetir o canguru, que experimentei uma vez num
festival gastronómico, e provar talvez o crocodilo, outro dos animais exóticos
disponíveis na ementa. "Na verdade canguru é raro os australianos comerem,
sobretudo nas cidades. Algumas pessoas no campo comem, de vez em quando. E
crocodilo quase só por graça", esclarece-me logo Peter Rayner, em inglês,
língua que usará durante o almoço, por vezes também falando em português, que
aprendeu há quase três décadas, num curso em Lisboa.
Conhecemo-nos há um ano e já o
entrevistei para a Volta ao Mundo, a revista de viagens do grupo de media do
DN. Então, em vez da Grande Barreira de Coral ou de Sydney, preferiu falar do
cinema australiano como marca forte do país, e que é muito mais do que Nicole
Kidman ou os filmes do Crocodile Dundee. Na altura ficou apalavrada uma
conversa mais vasta sobre a Austrália, continente-ilha (e país) muito pouco
conhecido por cá, mesmo que talvez tenha sido descoberto pelos navegadores
portugueses de Quinhentos. "É possível que tenham sido os portugueses os
primeiros, e até há um livro que o afirma, mas as provas documentais apontam
para os holandeses em 1606 e a descoberta oficial foi pelos britânicos no
século XVIII", diz-me Rayner, já com as entradas na mesa, nomeadamente um
trio de presuntos em que uma das versões é de canguru, como que para satisfazer
a minha obsessão. "Gosto", digo, mesmo que tenha de admitir logo ali
que o tradicional presunto, o de porco, me pareça mais saboroso. E quando pego
na ementa, já desisti da ideia do crocodilo, apesar de o DownUnder propor o
réptil acompanhado por salada com gengibre e molho nam jim. Noto também que há
tártaro de canguru e outras opções, mas por hoje já basta de carne de
marsupial.
O chef Justin Jennings aparece
para cumprimentar o diplomata. Conhecem-se e fico a saber que sempre que o
embaixador organiza um jantar na residência oficial em Lisboa desafia o chef
australiano para cozinhar e assim oferecer aos convidados um vislumbre do que é
a gastronomia do tal país que fica lá mesmo em baixo de tudo, daí a ideia de
"DownUnder", expressão que terá sido inventada na América, explica-me
Peter Rayner, mas à qual os australianos acabaram por se habituar. Por piada,
acrescenta, "até há mapas à venda na Austrália que invertem os
hemisférios, pondo-nos a nós em cima".
Percorro a ementa do DownUnder,
que abriu portas em fevereiro do ano passado perto da Assembleia da República,
e peço um belo naco de vaca australiana que Peter Rayner garante ser excelente
(e com razão, descobrirei). O meu convidado opta pelo peito de pato, cozinhado
em estilo asiático, uma prova que tal como a Austrália está cada vez mais
multicultural, também a sua gastronomia recebe novas influências, que chefs
como Justin Jennings usam como inspiração para inovar.
O embaixador, que nasceu em 1960
em Sydney, relembra-se de que em criança se comia de forma um pouco insípida,
talvez vestígio da colonização pelos britânicos. "A quebra da rotina era a
comida chinesa ou a piza feita pelos imigrantes italianos", conta. Hoje em
sua casa - é casado com Loretta e tem uma filha e um filho, Emily de 13 anos e
Ethan de 12 - come-se de forma muito mais diversa e o embaixador, que se formou
em Língua e Cultura Indonésias e foi diplomata em Jacarta, não só garante
gostar de cozinhar como diz que se safa nos pratos indonésios, mesmo que uma
outra etapa profissional em Roma tenha reforçado o gosto da família pela comida
italiana, "sobretudo nos filhos".
Falemos um pouco sobre a ligação
a Portugal, que é antiga para Peter Rayner, com esta chegada em 2016 para chefe
de missão a representar o terceiro período de vida em Lisboa. "Depois do
meu primeiro posto como diplomata na Indonésia tive a oportunidade de ter um
posto no Brasil mas precisava de saber português, claro, e vim para cá três meses
para aprender. Passei três meses fantásticos em 1991. Foi uma grande
experiência porque Portugal era um país que não conhecia e apreciei muito, e
tive logo a ideia de que com um pouco de recuperação das casas a cidade iria
tornar-se uma das joias da Europa", conta o diplomata, fazendo pausa para
a escolha do vinho, australiano com certeza. Diz preferir branco, eu opto por
tinto. No final, cada um de nós bebeu um copo de cada, Kühl e Knee Deep.
"Bons vinhos, mas com pouca hipótese de se implantarem em Portugal, pois
os vossos vinhos são de qualidade", comenta, acrescentando que há
australianos a produzir vinho cá. Um dos nomes reconheço, pois o DN fez
reportagem com ele no Alentejo.
A segunda estada de Peter Rayner
em Portugal foi num momento político muito importante, pois a Indonésia tinha
aceitado um referendo organizado pela ONU sobre o futuro de Timor-Leste e os
governos de Lisboa e de Camberra cooperavam por fim. "Em 1999 tive
oportunidade para voltar para cá como o único diplomata australiano. O meu
ministro falara com o então ministro dos Negócios Estrangeiros português Jaime
Gama sobre Timor-Leste e ambos pensaram que havia oportunidade para um novo
futuro para aquele país e então o nosso governo decidiu que queria um oficial
em Lisboa para falar com as autoridades aqui sobre o que estava a acontecer em
Timor. Fiquei até ao meio de 2000, foram uns 15 meses." Dessa época terá
ficado o gosto pelo pastel de nata, doce que é popular na Austrália mas nem
sempre de boa qualidade lá, tirando um sítio em Camberra que Peter Rayner diz
que os fazia "quase iguais".
Chega o bife da vazia australiano
com compota de cebola e acompanhados de batata rosti e legumes. Também o peito
de pato com doce de figo, bok choy e puré de batata-doce. Depois das garfadas
iniciais, aproveito para voltar ao tema Timor-Leste, país independente em 2002
e no qual Peter Rayner foi diplomata, fazendo valer os seus conhecimentos tanto
de português como de bahasa indonésio (antiga língua franca das ilhas das
especiarias que conta com dezenas de palavras portuguesas). "Fiquei muito
feliz por os timorenses poderem decidir o seu futuro. Durante décadas foi uma
situação muito complicada. Portugal e a Austrália tinham pontos de vista
diferentes e a Indonésia é vizinha da Austrália enquanto Portugal é muito
longe. Tínhamos por isso de trabalhar com a Indonésia. Não gostávamos da
maneira como a Indonésia incorporou Timor em 1975 mas depois de pouco tempo o
governo decidiu que se queríamos ajudar os timorenses então precisávamos de
trabalhar com os indonésios e foi essa a nossa política", explica o
embaixador, enquadrando também que era a época da Guerra Fria e na Ásia
Oriental tinha muito peso a teoria do dominó, que dava por certo o triunfo
generalizado do comunismo se este triunfasse em algum país. E a Fretilin na
altura era vista como um movimento comunista, que aproveitara o vazio de poder
deixado pelos portugueses depois da Revolução de 1974.
"Tínhamos um programa de
ajuda. Íamos ao território para fazer relatório das condições lá. Cheguei a encontrar
o então governador, Mário Carrascalão, que tentava proteger os timorenses
dentro da Indonésia. Essa foi a história durante anos. E fiquei muito
satisfeito em voltar para cá em 1999 para trabalhar em conjunto com Portugal
para ajudar os timorenses. Tivemos uma cooperação excelente durante esse
período, que não foi muito bem divulgada nos media. Foi muito bom trabalhar com
o então primeiro-ministro António Guterres e o ministro Jaime Gama. Finalmente
houve oportunidade de mudança e John Howard, nosso primeiro-ministro, escreveu
uma carta ao presidente B.J. Habibie, sucessor de Suharto, a pedir ao governo
da Indonésia que protegesse os timorenses dando-lhes mais liberdade e
finalmente Habibie respondeu que se os timorenses não queriam ser indonésios teriam
de fazer uma escolha."
A relação entre a Austrália e
Timor-Leste independente tem tido altos e baixos, com progressos recentes na
negociação sobre a exploração petrolífera nos fundos marinhos entre os dois
países, mas a antiga colónia portuguesa já por duas vezes precisou da
intervenção do vizinho de língua inglesa para evitar a violência, fosse das
milícias pró-indonésias em 1999 fosse dos confrontos intertimorenses de 2006.
Em simultâneo, uma comunidade timorense continua a existir na Austrália, assim
como uma portuguesa também, contribuindo para a diversidade cultural que não
para de aumentar, como sublinha o embaixador, com orgulho: "Até perto de
1970 a maior parte dos imigrantes vinha da Europa, mas depois houve uma mudança
de política para deixar entrar imigrantes de todos os países, sem importar a
raça ou a religião. Já havia uma comunidade chinesa, descendente dos que vieram
para a corrida ao ouro no século XIX, mas o governo passou a deixar entrar de
outros países da Ásia, do Médio Oriente e de África e então hoje um em cada
quatro australianos nasceu fora da Austrália. E um terço fala uma língua
diferente do inglês em casa. Assim, a Austrália é uma mistura de muitos povos,
muitas línguas e muitas culturas. Não encorajamos os imigrantes para deixar a
sua cultura ou língua. Queremos a par do inglês preservar todas as línguas e
isso faz a nação mais rica." São 25 milhões de habitantes num país 15
vezes maior do que a Espanha.
E uma das áreas que tem ganhado
com a diversidade é mesmo a gastronomia, nota Peter Rayner, "porque vai
buscar influência a muitos lados, como Ásia, África e Europa. Os chefs
experimentam os sabores todos disponíveis. Jantar na Austrália é hoje uma
grande experiência". Diga-se que almoçar no DownUnder também, mesmo que
não substitua uma viagem aos antípodas.
Por falar em antípodas, e agora
que está na hora de escolher a sobremesa, a Austrália disputa com a vizinha
Nova Zelândia a autoria da pavlova, um doce à base de merengue que foi buscar o
nome a uma bailarina russa que visitou aquela parte do mundo. Peter Rayner
recomenda e assegura que é australiana, mesmo admitindo que já chegou a haver
pequenos choques por causa do doce, como as duas embaixadas, num festival num
certo país, apresentarem ambas a pavlova. Por mim, australiana ou neozelandesa,
a verdade é que é saborosa a versão que comi com frutos tropicais.
Comento com o embaixador a
recente legalização do casamento homossexual no seu país e como assim se
confirma a fama progressista australiana, como se a tradição democrática
britânica tivesse ali sido herdada mas sem o peso da aristocracia (apesar de
Isabel II ser a chefe de Estado). "A comunidade na Austrália é muito
progressista, muito avançada e muito sofisticada também. Há pessoas com vários
pontos de vista, mesmo no governo, mas houve um referendo e o resultado foi
fortemente a favor do casamento homossexual, em defesa dos direitos humanos e
da igualdade. Estou muito satisfeito com a nova lei, mas pessoalmente acho que
isto aconteceu muito tarde para um país como a Austrália - somos o 26.º país a
permitir o casamento homossexual", desabafa o diplomata, que representa um
país que faz parte do G20, tem uma economia que cresce sem interrupção há um
quarto de século e que dispõe de um dos mais abastados fundos de investimento.
Ora, com tanto potencial
económico, porque é que as trocas comerciais entre a Austrália e Portugal são
mínimas, pergunto eu antes de pedirmos o café. Resposta: "Aquilo que eu
encontrei é que os portugueses não conhecem verdadeiramente a Austrália e os australianos
também não sabem da história de Portugal. O que queremos fazer na embaixada é
promover o contacto. Há felizmente muito mais australianos que vieram para cá
como turistas, com um aumento de 15% a 18%, crescimento superior aos dos outros
turistas aqui. Fizemos também um programa especial de vistos que permitem que
os jovens vão para Austrália trabalhar durante um ano mas também que tenham
tempo para visitar os vários lugares e conhecer o país. E o contrário também.
Acho que os australianos que hesitam em vir para cá acham que têm de falar
português mas já se sabe que há muitos sítios onde um jovem pode trabalhar e
falar em inglês. Neste ano em julho também vai haver uma visita do Conselho de
Comércio entre a Austrália e a Europa, que inclui alguns dos maiores
empresários e comerciantes. Um dos objetivos dessa visita é conhecer melhor
quais são as oportunidades aqui para investir, para vender e para comprar. É
preciso notar que a Austrália é muito forte em várias áreas: mineralogia,
produtos hortícolas e energia também. Não há muitas companhias australianas
aqui em Portugal agora mas algumas delas estão no setor da mineralogia porque
temos uma longa expertise nessa área. Portugal tem os recursos de lítio,
especificamente durante os próximos anos, para os carros elétricos mas também
há ouro aqui."
Então há australianos a procurar
ouro em Portugal?, disparo, a meio de um nespresso. "Sim, há uma companhia
que tem interesse no Sul do país em fazer isso. E no turismo também, há uma
sociedade australiana que está a trabalhar no Douro, mas possivelmente vai
haver outras especializadas em turismo e que podem ajudar aqui. Essa vai ser a
grande descoberta desta visita para os australianos que vêm cá porque Portugal
nessa área não é tão conhecido. E isso concorda também com os interesses de
Portugal. Na semana passada assisti a um seminário e o ministro dos Negócios
Estrangeiros defendeu que Portugal precisa de ser mais internacionalizado, não
só à Europa e aos Estados Unidos, que querem abrir mercados noutras partes do
mundo. Essa visita dos australianos esperamos que seja para ter os acordos
comerciais." E se vierem mais chefs australianos também teremos algo a
ganhar, com ou sem animais exóticos na ementa, por muito que tenha piada
caminhar por Lisboa e ver, como à porta do DownUnder, anunciado canguru
grelhado com puré de batata e couve.
DownUnder
1 água; 2 pães; 1 trio de
presuntos; 1 vazia australiana; 1 peito de pato; 2 copos de branco; 2 copos de
tinto; 1 pavlova; 1 crumble de maçã; 1 nespresso; 1 meia de leite | Total: 88,
40 euros
Leonídio Paulo Ferreira | Diário
de Notícias (hoje) | Cartoon de André Carrilho
Endereço: Rua
dos Industriais, 21, São Bento, 1200-685 Lisboa
Horário: Aberto
hoje · 12:00–15:00, 19:00–23:00
Menu: downunder.pt
Reservas: downunder.pt, thefork.pt
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