domingo, 13 de março de 2016

"Clepsidra", de Camilo Pessanha, é "um livro que não existe" - debate


Macau, China, 12 mar (Lusa) -- Especialistas em Camilo Pessanha debateram hoje, em Macau, as "muitas faces" do poeta, concluindo que os versos que hoje lemos não são os mesmos que Pessanha escreveu devido às sucessivas edições e emendas.

"'Clepsidra' é um livro que não existe, é uma tentativa de vários editores de fazer o que o autor não conseguiu", disse Paulo Franchetti, autor de vasto trabalho académico sobre Pessanha, poeta que passou parte da sua vida em Macau, onde morreu há 90 anos.

Os versos do simbolista captaram a sua atenção nos anos 1970, apesar de "não perceber nada do que lia", disse o académico brasileiro que participava no debate "As Muitas Faces de Camilo Pessanha", integrado no Festival Literário Rota das Letras, em Macau.

"Aqueles versos me encantavam, mas não conseguia dar sentido total àquilo", contou.

Anos passados, "aquele poeta estranho da juventude" continuava a "obcecá-lo", levando-o a enveredar por um doutoramento sobre Pessanha.

Ao início da sua investigação evidenciou-se que "no processo editorial de João de Castro Osório havia mudanças dos poemas, uma organização da poesia que desse uma visão quase católica do poeta".

"Clepsidra" foi editado por Ana de Castro Osório em 1920, sendo mais tarde lançada uma versão ampliada pelo seu filho, João.

Vários elementos levam o especialista a acreditar que a edição modificou a intenção original: "Quando Camilo Pessanha foi a Lisboa foi a casa de Ana de Castro Osório e fez uma lista dos poemas [para a 'Clepsidra']. A ordem que ele tinha projetado para este livro não tem nada a ver com o livro final."

O resultado do trabalho académico de Franchetti foi uma edição crítica publicada em 1996. "Não pretendi fazer nada a não ser registar todos os estágios de composição em cada poema. Anotei o que chamamos os 'gestos de escrita' de Camilo Pessanha, que ao longo da vida trabalhou com 50 poemas. Havia registo de amadurecimento desse processo", como rasuras e substituições.

"Reuni todos os documentos de Camilo Pessanha, anotei todos e mostrei como os poemas foram construídos ao longo do tempo", explicou.

Para este trabalho de reconstrução contínua da obra de Pessanha contribuiu também o jornalista de Macau Carlos Morais José, que encontrou na antiga Revista Centauro mais provas de que os poemas do simbolista foram alterados em fases de edição, com pontuação e mesmo títulos acrescentados.

"Noventa anos passaram da sua morte. Para o ano faz 150 anos do nascimento e ainda não há uma versão definitiva da sua obra", comentou.

A edição a Camilo Pessanha, ao longo dos anos, não foi apenas poética, mas também de personalidade, sublinhou Franchetti.

"Camilo Pessanha era um homem orgulhoso, intolerante, não seguia exatamente os preceitos sociais e criou aqui muitos inimigos. Criou-se uma imagem de um opiómano, andrajoso (...) Mostrei com uma biografia que essa imagem era totalmente fantasiosa, uma imagem maldosa e vingativa que fizeram dele principalmente em Macau mas também em Portugal", disse.

O macaense Pedro Barreiros, cuja família teve uma relação próxima com o poeta, salientou particularmente o impacto pessoal que Pessanha teve na sua formação.

"Camilo Pessanha foi parte da minha maneira de pensar em língua portuguesa. Penso que a minha mãe sabia a 'Clepsidra' de cor e desde pequeno que ouvia os seus poemas", contou.

Pessanha, que em Macau traduziu para português oito elegias chinesas, foi também responsável pela introdução de Barreiros à poesia chinesa.

"Desde então nunca mais deixei de ler traduções [de poesia chinesa]. É das coisas que mais agradeço a Camilo Pessanha, ter-me dado a chave para entrar na poesia chinesa", concluiu.

ISG // NS

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