M. Azancot de Menezes, Díli - opinião
Um
investigador brasileiro da Universidade de Campinas, Alan Carneiro, escreveu um
artigo “problematizador” sobre as políticas linguísticas em Timor-Leste,
abordando também as tensões no campo da formação docente. O autor, logo na
introdução do seu estudo, referia, e passo a citar, «Ao chegar ao aeroporto de
Díli, Timor-Leste, as placas de propaganda indicam uma complexa situação
linguística: o anúncio de uma instituição financeira indonésia, o banco
Mandiri, está em língua indonésia; curiosamente a propaganda do banco
Australian and New Zealand (ANZ) está em português, a língua oficial; o de uma
organização não governamental (ONG) norteamericana, Buy Local que actua no
país, está em inglês, com a tradução para a língua oficial, o tétum».
No
segundo parágrafo, Carneiro, desenvolvendo o seu pensamento em jeito de prosa,
afirma: «ao percorrer a cidade, a diversidade de línguas utilizadas não só nas
placas e sinalizações, mas também nos diversos contextos de interacção
surpreende ainda mais: pessoas falando em tétum nas ruas, nas feiras e nas
casas; professores portugueses e brasileiros ensinando e interagindo em língua
portuguesa nas universidades e em cursos de formação de professores;
trabalhadores internacionais dos mais diversos países conversando em inglês nos
restaurantes, nas agências internacionais e nas sedes de ONG´s; comerciantes de
diferentes nacionalidades, mas principalmente indonésios e chineses, utilizando
a língua indonésia e o inglês, dentre estes últimos ainda se vê alguns que
utilizam o hakka ou o yue, línguas vindas do sul da China que estão presentes
no país desde tempos remotos».
Às
citações mencionadas na introdução desta reflexão, independentemente de
continuarem no seu todo a representar a realidade actual ou não, poderemos
acrescentar outras, algumas caricatas. A carta de condução e o bilhete de
identidade são entregues aos cidadãos em língua portuguesa e inglesa. O cartão
de eleitor, tal como deviam estar todos os documentos, está em português e
tétum, as duas línguas oficiais. No entanto, vários formulários das
universidades e outras instituições estão escritos em língua indonésia. Nos
hospitais os médicos cubanos falam em espanhol. Outros profissionais de saúde
comunicam em língua indonésia, tétum e alguns em português.
No
espaço da classe política, caso do Parlamento Nacional, apesar dos documentos
que por lá circulam estarem escritos em língua portuguesa e em tétum, os
deputados discutem e abordam os diversos temas na língua tétum e alguns até em
língua indonésia mas, raramente em português, devido à incapacidade de muitos
deputados dominarem a língua portuguesa. Nas reuniões governamentais repete-se
o mesmo, pois, de forma rotineira, discute-se em tétum, e quando é necessário
elaborar um discurso com a introdução de vocabulário inexistente em tétum,
utiliza-se a língua indonésia ou a língua portuguesa, esta última quase sempre
com qualidade questionável.
Todas
estas constatações que servem de mote para esta reflexão sobre a “língua de
Camões em Timor-Leste” são algo provocatórias, mas não deixam por isso de ser
uma realidade actual, complexa, dirão alguns, mas os problemas desta natureza,
mesmo difíceis, podem ter soluções adequadas, desde que haja vontade política e
o envolvimento de protagonistas tecnicamente competentes.
Em
jeito de preâmbulo, referi-me a um cenário geral vivido em Díli, mas para
melhor discutirmos a “língua de Camões em Timor-Leste”, é um imperativo
abordarmos com algum detalhe o «campo da educação», muito maltratado, apesar de
ser um campo específico e estratégico para o desenvolvimento sustentável do
País.
Estou
a utilizar de forma premeditada a expressão «campo» e a lembrar-me do grande
sociólogo Pierre Bourdieu (1939-2002), uma referência fundamental para
abordagens sociais, e que tem sido importante para transmitirmos aos
socialistas timorenses e aos simpatizantes do Partido a ideia de que nenhum
poder político pode escamotear o facto do nosso sucesso educativo depender
muito das condições sociais, económicas e culturais dos jovens e das suas
famílias, que vivem na miséria.
Na
perspectiva deste grande autor francês, cada «campo» possui regras do jogo e
desafios específicos, sendo um «microcosmo incluído no macrocosmo constituído
pelo espaço nacional global» (Lahire, 2002, citado por Catani, 2011). Partindo
deste pressuposto que se aplica a Timor-Leste e a qualquer outro País,
facilmente somos a concluir que os interesses sociais são sempre específicos de
cada «campo» e não se reduzem aos interesses estritamente económicos. Como já
defendia Lahire (2002), «um campo possui uma autonomia relativa», porque as lutas
que nele ocorrem têm uma lógica interna, mas o seu resultado nas lutas
(económicas, sociais, políticas…) externas ao campo pesa fortemente sobre a
questão das relações de força internas.
No
campo da educação, constata-se que a maior parte dos professores que temos no
País não dominam a língua portuguesa porque foram formados no período da
ocupação indonésia, principalmente nos anos 80, altura em que a Indonésia teve
uma política mais agressiva no processo de aniquilamento do português e da
imposição da língua utilizada pelo país invasor, nomeadamente através da
utilização de professores indonésios provenientes de várias ilhas indonésias.
Por
outro lado, a partir da década de 90, muitos timorenses ingressaram em
universidades indonésias, e na única universidade existente em Timor-Leste no
tempo da ocupação, o ensino era ministrado integralmente em língua indonésia,
para além de que a segunda língua ensinada nas escolas era o inglês, com
excepção do Externato de São José onde os padres Leão da Costa, Domingos Morato
da Cunha, Martins, Felgueiras e o Enfermeiro António Maria (falecido),
ministravam o ensino em língua portuguesa, sem nenhum apoio de Portugal.
Perante
este panorama, tendo em consideração que depois da ocupação indonésia o
português foi interditado e o tétum era considerado pelo invasor como língua
sem valor social, servia apenas para comunicação, a partir de 2000, com a opção
pela adopção das duas línguas oficiais, tétum e português, o Estado timorense
deparou-se com resmas de problemas e desafios que exigiam respostas com
capacidade e competência para a implementação de políticas educativas e
culturais correctas, e que respondessem com eficácia às necessidades do país,
recorrendo, sem pejo e preconceitos, ao aproveitamento de sinergias locais e
internacionais, (bem) seleccionadas, para fugir ao lobby anglófono que de forma
muito subtil vai penetrando nas super-estruturas do País através dos assessores
internacionais de países de língua inglesa e portuguesa.
A
ausência de recursos humanos capazes no domínio da educação, assim como o não
aproveitamento dos quadros existentes, na maior partes das vezes por razões
subjectivas e medíocres, demonstrou a total incapacidade do País em resolver
questões estratégicas no campo da educação. Muitos dos políticos que assumiram
cargos de relevo na área da educação, temos que assumir com modéstia estas
verdades, em alguns casos por incompetência, em outros por cedência aos
interesses de países não interessados na implantação da língua portuguesa em Timor-Leste,
não foram capazes de traçar linhas mestras estratégicas de actuação
suficientemente robustas para responder com eficácia às necessidades reais do
País.
Esta
incapacidade estrutural e conjuntural foi e (ainda) é visível na ausência de
políticas educacionais capazes. Sabendo nós que o ensino superior qualificado
cumpre um papel de importância estratégica para o desenvolvimento de qualquer
País, num quadro em que se assiste à proliferação do ensino superior em
Timor-Leste, importa pois questionar qual é a qualidade do ensino superior
timorense, e discutir o que se faz, o que não se faz e o que se devia fazer no
domínio da formação de professores de língua portuguesa.
Na
maior parte das onze instituições de ensino superior do País, esta é a verdade,
ensina-se só em língua indonésia pois os docentes não sabem falar nem escrever
português. Em algumas instituições ensina-se em tétum e em língua indonésia. Os
estabelecimentos que vendem livros de língua portuguesa, apesar de ter havido
ligeira melhoria, são escassos, e os livros têm preços proibitivos, um luxo
para o bolso da maioria dos estudantes filhos de agricultores pobres e dos
professores dispersos pelo País que auferem um salário de miséria, obviamente
insuficiente para sustentar as suas numerosas famílias, sendo certo que, por
esta e por outras razões, não há nem pode haver hábitos de leitura. As
bibliotecas são escassas e as que existem nas universidades, praticamente, só
têm livros em língua indonésia, alguns em inglês e raros em português.
E
depois há aqueles que querem trabalhar com qualidade e interesse nacional mas
são sistematicamente sabotados por razões mesquinhas, a maior parte das vezes
por altos responsáveis que não sabem decidir em matéria de políticas de
educação e no que respeita à regulação do funcionamento das instituições de
ensino superior. Um caso paradigmático é ilustrado pela Universidade de Díli
(UNDIL). Preparou-se para abrir este ano um curso de formação inicial de
professores de língua portuguesa, elaborou o projecto em conformidade com as
exigências da agência de avaliação e acreditação nacional, seleccionou docentes
de alto nível científico-pedagógico com bom conhecimento da complexidade da
situação linguística e sociolinguística nacional, abriu inscrições, constituiu
uma turma, mas, após ter solicitado ao Ministério da Educação um amparo
financeiro insignificante, nem resposta escrita lhe foi apresentada, tendo-se
verbalmente alegado não haver orçamento, note-se, para auxiliar a abertura de
um curso de licenciatura de ensino de língua portuguesa (!).
O
episódio que relatei, mas outros poderiam ser historiados, espelha a
incongruência, as nossas fragilidades, a falta de visão estratégica, e o
incumprimento superior da Constituição da RDTL e da Lei de Bases da Educação,
porque é o próprio Estado, o mesmo que escolheu como línguas oficiais o tétum e
o português, através do Ministério da Educação, a criar resistência à abertura
de um curso de formação inicial de professores de língua portuguesa.
Enquanto
isso, há vários docentes portugueses sem o devido aproveitamento na
Universidade Nacional de Timor Loro´sae (UNTL), enviados pelo Instituto
Camões, uma instituição que deixa muito a desejar em matéria de
cooperação com Timor-Leste e que parece não entender o excelente trabalho que
está a ser realizado pela Embaixada de Portugal em Timor-Leste, pela Escola
Portuguesa Ruy Cinatti, bem como pela Fundação Oriente representada no País.
O
lamentável estado de coisas que se verifica em Díli só pode significar que
vários responsáveis políticos do País da área da educação, e do Instituto
Camões, ainda não assimilaram que as políticas de educação superior só serão
válidas se reflectirem uma linha orientadora que se baseie no estado actual do
desenvolvimento da nossa educação superior e transporte consigo uma visão, uma
missão, objectivos e metas que se enquadrem num projecto social globalizante.
Este
é o cenário sociolinguístico verificado em Díli, mas, se avançarmos para os
Municípios, a complexidade é enorme. Segundo Cinatti (1987), Thomaz (2002)
entre outros autores citados no Atlas de Timor-Leste (2002), existem mais de 35
línguas maternas, e que resultam da «diversidade geográfica da ilha, às guerras
internas e à consequente integração de subgrupos em outros grupos étnico-linguísticos».
Tudo isto terá contribuído para a diversidade cultural e linguística do país,
pois, é preciso ter em devida atenção que «a ilha de Timor foi, primeiramente,
povoada pelos povos Papua, cerca de 7000 a.C., e pelos povos austronésios, aproximadamente
2000 a,C., tendo sido posteriormente abordada por outros povos em migração
entre a Ásia e a Austrália e o arquipélago do Pacífico».
Há
estudos que mostram a evolução das principais línguas maternas de Timor-Leste e
que devem ser partilhados para a melhor compreensão desta temática. De acordo
com Cinatti (1987), Thomaz (2002) et al, citados no Atlas de Timor-Leste
(2002), em 2001 a língua mais falada era o tétum (22.5%), seguindo-se o mambae
(20%), o makasai (13%), o búnaq ou búnague (7%) e com menos de 5% o baiqueno, o
kêmak, o fatalúku, o tocodede, o uaimoa, o tétum-teric, o kairui, o midiki, o
idate, o makalero e o galóli. Entre 1961 e 1975, o mambae era falado por quase
30% da população (Atlas de TimorLeste, 2012). Mas há ainda a considerar outras
línguas maternas e a já mencionada língua indonésia, importada, falada
praticamente em todo o País.
Apesar
do artigo 13º da Constituição da RDTL defender que o tétum e o português são as
línguas oficiais, o panorama educativo está em situação muito frágil, quer no
domínio científico-pedagógico, quer no campo organizacional ou curricular, e
parece não haver interesse real em compreender e analisar com “lentes
pedagógicas e linguísticas” os programas de formação de professores de língua
portuguesa e tentar entender a problemática das políticas linguísticas.
Mas
as razões do insucesso também se prendem com o facto de (alguns) professores
portugueses que são enviados para o nosso País terem uma perspectiva demasiado
redutora da sua missão e cingirem-se à visão eurocêntrica da nossa realidade
linguística, pensando que ensinar a língua portuguesa em Timor-Leste é uma
repetição do que se faz em Portugal ou em outros países europeus, esquecendo-se
de que o sucesso das aprendizagens depende muito das competências de âmbito
alargado onde se inclui o conhecimento sobre as línguas nacionais e sobre as
diversidades sociolinguísticas e étnicas locais.
Uma
investigadora da Universidade Aberta (Lisboa), Hanna Batoréo, fez um estudo
muito interessante sobre a problemática do ensino de português em Timor-Leste.
Como não sou um especialista nesta matéria, sinto-me na obrigação de partilhar
no Jornal «A Voz Socialista» algumas ideias desta autora que consubstanciam
parte do que defendi nesta reflexão educacional. Para se ensinar português em
Timor-Leste de um modo sustentável, diz Batoréo (2007), «antes de mais exige
dos agentes de educação oficiais um bom conhecimento (pelo menos passivo) das
características linguísticas dos idiomas falados localmente, que pertencem às
famílias linguísticas muito distintas do ponto de vista tipológico do Português
e das outras línguas conhecidas, faladas e estudadas tradicionalmente na
Europa».
Para
que o trabalho do professor que vem ensinar português em Timor-Leste seja bem
sucedido e atraente para quem deseja aprender, há aspectos linguísticos
fundamentais a tomar em consideração, e que são descurados por alguns docentes
portugueses (e brasileiros) impreparados. Efectivamente, aspectos como a «ordem
das palavras, o emprego dos tempos verbais, a ausência dos artigos, a forma
disjuntiva de construir perguntas, a resposta a perguntas na negativa, as
conceptualizações diferentes no funcionamento do sistema quini-decimal, a
utilização de empréstimos lexicais de Indonésio no vocabulário técnico são
apenas alguns dos fenómenos linguísticos que o professor do Português tem que
ser preparado para enfrentar» (Batoréo, 2007).
Por
sermos um País católico-cristão, mas ainda agarrado aos credos e valores reais
e de origem, não podia deixar de terminar esta reflexão relembrando o que reza
o evangelho.
São
Pedro ao fugir de Roma com receio de ser torturado cruzou-se com Jesus
(ressuscitado) e, muito admirado, perguntou-lhe: «Quo vadis?» (Para onde
vais?). Jesus respondeu-lhe: «Roman vado iterum crucifigi» (Vou a Roma para ser
Crucificado de novo).
Díli,
07 de Maio de 2016.
*Azancot
de Menezes, Secretário-Geral do PST
Nota:
Artigo publicado na 3ª Edição de Abril de 2016 do Jornal «A Voz Socialista»
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