domingo, 19 de fevereiro de 2017

Regime de aquisição de bens e serviços públicos de Macau "muito permissivo" -- antigo juiz

Macau, China, 19 fev (Lusa) -- O antigo juiz João Valente Torrão defende a atualização do regime de aquisição de bens e serviços públicos da Região Administrativa, que considerou "muito permissivo".

"A lei é muito permissiva", defendeu o antigo juiz, que foi membro do Supremo Tribunal Administrativo de Portugal e exerceu em Macau na década de 1990.

João Valente Torrão apresentou na quinta-feira a obra "Regime Jurídico da Contratação Pública na RAEM -- Procedimentos Pré-Contratuais, Breves Notas", um livro bilingue (português e chinês) com a chancela do Centro de Reflexão, Estudo e Difusão do Direito de Macau, da Fundação Rui Cunha.

Para o magistrado, a questão reside em saber, uma vez que a lei permite exceções ao concurso público, se se justifica o ajuste direto, que exige por sua vez a consulta a três entidades, a qual também pode ser dispensada, isto porque há uma perceção de um abuso do mesmo por parte dos serviços públicos.
"Poderá haver um abuso, mas penso que é consente desde que esteja clara e justificada a dispensa do concurso. Se não for justificada é que é ilegal", observou.

Em entrevista à agência Lusa, João Valente Torrão considerou que a legislação carece de ser adaptada, por "uma necessidade de ordem internacional", recordando que os diplomas respeitantes à aquisição de bens e serviços e às empreitadas públicas datam de finais das décadas de 1980 e 1990.

O antigo juiz, que exerceu de 1994 a 1999 em Macau, onde também formou magistrados e regressou após se ter reformado em Portugal, dá o exemplo da própria China que, aquando da adesão à Organização Mundial do Comércio, não adotou de imediato as recomendações, mas que hoje tem "regras muito importantes", "muito semelhantes" às que a OMC propõe.

João Valente Torrão considera que "as coisas vão funcionando, melhor ou pior", embora reconheça que, "de vez em quando surgem suspeitas de corrupção", derivadas de "certas atitudes que se tomam que são talvez pouco rigorosas, mas legais".

A seu ver, tal sucede porque não há muita tendência de litigância: "As pessoas e as empresas não são muito litigiosas, não recorrem muito aos tribunais, mesmo que a sua proposta seja indeferida não são aguerridas", ao contrário do que sucede em Portugal, por exemplo. "Apenas encontrei nove ou dez decisões dos tribunais de Macau", realçou.

A urgência de atualização do regime de aquisição de bens e serviços públicos tem sido destacada em relatórios dos Comissariados Contra a Corrupção (CCAC) e de Auditoria.

Um desses relatórios, publicado em novembro, alertava que "a falta de observação rigorosa da lei, o desvio intencional das normas ou procedimentos legais, a frouxidão na supervisão interna ou a supervisão meramente formal não são raras nos serviços públicos".

Apesar de a maior parte das questões não configurarem ilegalidades, o CCAC advertia que "poderão transformar-se numa porta aberta à corrupção".

O tema também tem estado na ordem do dia devido ao caso do antigo procurador de Macau, Ho Chio Meng - que está a ser julgado, desde 09 de dezembro, por mais de 1.500 crimes, incluindo burla, abuso de poder, branqueamento de capitais e promoção ou fundação de associação criminosa - que envolve milhares de adjudicações diretas de contratos de obras, serviços e bens do Ministério Público.

Segundo consta de um parecer recente de uma comissão da Assembleia Legislativa, o Governo, que reconhece que o regime se encontra "desatualizado a vários níveis", planeia concluir uma proposta de revisão este ano.

João Valente Torrão, que na sua obra deixa uma série de sugestões, defende, por exemplo, que seja consagrada a audição prévia dos concorrentes que é, aliás, um dos princípios em nome da transparência e imparcialidade, e que "em Macau não está nesta lei, mas está previsto no Código de Procedimento Administrativo".

Além disso, também não existe atualmente "nenhum regime sancionatório para nenhuma das partes", sustenta o antigo juiz, defendendo também a tramitação eletrónica.

"Em Macau usa-se a Internet, mas só para publicitação dos concursos e pouco mais -- não para permitir a interação entre concorrentes e serviços. Isso é muito importante não só porque facilita -- a União Europeia reconhece-o e até encurtou os prazos -- e permite também, segundo um relatório da OCDE, reduzir o risco de corrupção", argumentou.

João Valente Torrão considera ainda que o novo regime deveria prever outros aspetos, como compras com responsabilidade social e ecológicas, bem como "centrais" de compras, mecanismo que permitiria a vários serviços juntarem-se para poderem adquirir produtos de uma forma mais competitiva".

DM // FPA

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