sábado, 2 de dezembro de 2017

Timor-Leste: O RETORNO DA “DEMOCRACIA BELIGERANTE”?

Com o escalar da retórica, a “democracia consensual” que se havia anunciado volta a dar lugar a uma “democracia beligerante”.

Rui Graça Feijó* | Público | opinião

Em finais de 2014, vésperas do anúncio do VI Governo Constitucional que ficaria conhecido como “Governo de Inclusão Nacional”, o ministro Ágio Pereira, braço direito de Xanana Gusmão e homem sempre presente nos bastidores da política timorense, reflectiu publicamente sobre o que se anunciava e que já vinha a ganhar contornos desde as eleições legislativas de 2012, materializado na aprovação por unanimidade de sucessivos Orçamentos de Estado: Timor-Leste estaria a assistir à substituição de uma “democracia beligerante” por uma “democracia de consenso”. O novo governo foi liderado por Rui Maria de Araújo, um importante quadro da Fretilin, que aceitou esse encargo “enquanto cidadão” uma vez que não foi assinado nenhum pacto entre os quatro partidos com assento parlamentar que passaram a ter quadros seus no governo. Essa “democracia consensual” sobreviveu dois anos e meio, até à ronda eleitoral de 2017.

No início deste ano, pareciam estar criadas condições para que o entendimento entre os dois principais partidos timorenses — Fretilin e CNRT — tivesse continuidade. Uma sondagem encomendada pela Asia Foundation revelou que 58% dos timorenses entendiam que o país estava a caminhar na direcção certa, e outros tantos declaravam que o comportamento dos líderes políticos na luta de resistência era o principal motivo das suas escolhas. Apenas uma nuvem parecia pairar no horizonte: o Presidente da República de então, Taur Matan Ruak — que muitos acreditam ter tido um papel importante na pacificação das relações entre os partidos parlamentares e na formação do VI Governo —, passou a distanciar-se e mesmo a criticar ferozmente as orientações estratégicas do governo, formou um partido próprio (Partido da Libertação do Povo) e prescindiu de se recandidatar em nome da disputa das eleições legislativas.

Contrariamente ao que se verificara em 2007 e 2012 e é normal em eleições presidenciais a duas voltas que permitem aos partidos e aos cidadãos em geral apresentar uma grande variedade de candidatos para suscitar o “voto do coração” antes de se formarem coligações mais ou menos formais em torno dos dois mais votados para apelar ao “voto da razão”, em 2017 houve um entendimento prévio entre Fretilin e CNRT em torno da figura de Francisco Guterres Lu Olo, presidente do primeiro destes partidos. Sem surpresa, Lu Olo ganhou folgadamente as eleições de Março, passando a ser o primeiro Presidente timorense formalmente ligado a um partido político, uma vez que os três antecessores sempre tinham reivindicado para si o estatuto de “independentes” sem filiação partidária. Parecia que a continuidade da fórmula governativa de “inclusão nacional” dera um primeiro passo para se renovar.

Em Julho, as eleições legislativas produziram resultados que inicialmente apontavam no mesmo sentido: a Fretilin averbou uma curtíssima vitória (cerca de mil votos) sobre o seu parceiro CNTR, ambos ligeiramente abaixo dos 30%. O PD, parceiro de governo, garantiu cerca de 10%. E o principal partido opositor, o PLP, quedou-se pelos 12%. Havia ainda um misterioso novo partido, popular entre a juventude, o KHUNTO, com 6%. Só que havia novidades escondidas...

A Fretilin reivindicou de imediato para si a escolha do primeiro-ministro (esquecendo que a formula de “inclusão nacional” havia passado por grande flexibilidade de todos os envolvidos na escolha do chefe de governo). Sem surpresa, Taur Matan Ruak declarou que o PLP seria partido de oposição — e ele próprio não ocuparia o seu lugar de deputado. De seguida, Xanana tomou idêntica atitude: o CNRT passava à oposição e ele ficaria fora do parlamento.

Lu Olo procurou ir além das suas competências que o obrigavam a “ouvir” todos os partidos com assento parlamentar (que normalmente se fizeram representar por figuras de segunda linha), e chamou ao palácio presidencial, para uma conversa cara a cara, Mari Alkatiri e Xanana Gusmão. A iniciativa presidencial não logrou demover Xanana, que não terá encontrado suficiente flexibilidade por parte de Alkatiri para reeditar um governo à imagem do anterior. O mais que Lu Olo conseguiu foi ouvir palavras de Xanana no sentido de ser “oposição construtiva” e de não “obstaculizar o regular funcionamento das instituições”.

Mesmo assim, Lu Olo pediu a Alkatiri que desenvolvesse esforços para a formação de um governo por si liderado. A Fretilin conseguiu negociar um acordo com o PD — mas estes partidos em conjunto controlam apenas 30 dos 65 assentos no Parlamento. Também o KHUNTO esteve envolvido nessa negociação, não tendo havido entendimento, aparentemente por discordância sobre a sua representatividade no governo — mas durante o tempo em que decorreu a negociação, o KHUNTO deu o seu voto para eleger um militante da Fretilin para a presidência do Parlamento. Esse era um lugar desejado pelo PLP como condição para uma posição de abertura na votação do programa do governo. Não o obteve.

Lu Olo, confiante que um governo minoritário tinha condições para sobreviver com o seu apoio político, deu posse ao VII Governo Constitucional. Alkatiri ainda tentou uma manobra: convidar para o seu governo personalidades independentes (como José Ramos-Horta) e ligadas aos partidos que preferiam o estatuto de oposicionistas (como Ágio Pereira ou o seu ministro das Finanças, aliado próximo de Taur). Mas perante a concentração de todos os cargos cimeiros do Estado (Presidência da República, presidência do Parlamento Nacional e chefia do governo) em membros destacados da Fretilin, que não chegara sequer aos 30% de votos nas legislativas, os três partidos oposicionistas entenderam-se para votar contra o programa do governo e propuseram-se formar um governo alternativo.

No momento em que escrevo, Alkatiri está a preparar um segundo programa a apresentar aos parlamentares. Nada garante que venha a ser aprovado, prolongando o período de incerteza que actualmente se vive — mas nada impede que quem acaba de demonstrar a sua força parlamentar e a capacidade de a qualquer momento derrubar o executivo possa deixar passar o governo minoritário numa posição de grande fragilidade, que arrasta consigo o Presidente da República com ele comprometido. O que parece mais certo é que, com o escalar da retórica (Alkatiri afirmou que “se uns querem dançar no Parlamento, nós dançaremos na rua”) e com o regresso de uma situação em que há claramente governo e oposição (mesmo que o Parlamento saia diminuído com a ausência de importantes lideres políticos, dando a entender que as instituições contam menos do que as lutas de personalidades), a “democracia consensual” que se havia anunciado volta a dar lugar a uma “democracia beligerante”. A temperatura vai alta pelas bandas de Díli — e lamentavelmente a substituição de Presidentes “independentes” por um Presidente comprometido com um dos lados da refrega em nada contribui para a fazer baixar.

O sistema político timorense foi, desde o início, concebido como um sistema de partilha de poderes. A Fretilin teve uma oportunidade de ouro para gerir esse sistema — e falhou com estrondo em 2006. Hoje tem nova oportunidade de mostrar que entendeu a lição do passado. Mas com a concentração nas suas mãos de todos os cargos chave do sistema, não parece estar a dar mostras de ter interiorizado o que Mari Alkatiri me referiu a propósito da sua primeira experiência como primeiro-ministro: “a exclusão política gera conflito”. Oxalá essas suas palavras ainda ecoem na liderança do seu partido.

*Investigador em Ciências Sociais; autor de “Dynamics of Democracy in Timor-Leste”

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