Hercus Pereira dos Santos * | opinião
A Constituição da República
Democrática de Timor-Leste dá um reconhecimento especial sobre a existência das
normas e costumes locais. Diz o artigo 2 número 4 “O Estado reconhece e
valoriza as normas e usos costumeiros de Timor-Leste que não contrariem a Constituição
e a legislação que trate especialmente do direito costumeiro”.
Pela interpretação da constituição, vimos que
é uma obrigação do estado timorense criar um mecanismo da integração do direito
costumeiro no ordenamento jurídico estadual, porque por um lado, sem um
mecanismo concreto do estado na aplicação desse artigo, o estado timorense está
cair na violação da constituição e por outro num estado de direito como
Timor-Leste deve salvaguardar a garantia da certeza jurídica dentro da
população mesmo que a garantia da certeza jurídica num estado de direito cabe
apenas aos tribunais estaduais.
É porque a constituição timorense
reconhece e valoriza o direito costumeiro então o estado timorense deve criar
uma legislação para que regulariza ou define a clara actuação entre o direito
costumeiro e o direito formal-estadual dentro da sociedade. Partilhamos a ideia
de Laura Grenfell enquanto diz que “ East Timor’s government needs to
enact legislation clarifying the relationship between the two systems of law
and setting out some judicial guidelines so as to remedy the present confusion
in East Timor’s courts as to wheter and when local law can be used”.
Por parte do governo timorense há
essa preocupação para recolher dados sobre o direito costumeiro de Timor-Leste.
A Patrícia Jerónimo defende no seu artigo, intitulado Estado de Direito e
Justiça Tradicional Ensaios para um equilíbrio em Timor-Leste, essa tentativa
do governo timorense em 2009 para fazer um levantamento sobre Direito
Costumeiro e pretende com isto para ver como o direito costumeiro possa
resolver os problemas de âmbito menor.
Essa levantamento é muito
importante vimos que há múltiplos mecanismos de fazer justiça dentro da
comunidade. Pelo menos com isto o governo timorense possa controlar os
mecanismos de aplicação de justiça tradicional que não vão contrariar com os
princípios gerais de direitos humanos ou qualquer princípio fundamental do Estado
de Direito Democrático de Timor-Leste.
Vimos que o reconhecimento do
governo timorense limite-se apenas aos problemas menores. Aliás, essa ideia
também podemos verificar na resolução dos conflictos não de crimes graves,
durante o mandato da CAVR, na comunidade pela sua comissão distrital.
Essa decisão é de louvor porque
ajudou facilitar a integração na comunidade os antigos pro-autonomistas e
estabelecer de novo uma boa harmonia e paz na comunidade. Além disso, também
ajudou a diminuir o peso do estado que depois só tratou sobre a política que o
estado toma em relação com os crimes graves contra a humanidade sem preocupar
muito de tratar os assuntos menores que os líderes da comunidade possam tratar.
O sucesso da comissão distrital da CAVR ao utilizar os mecanismos tradicionais
de resolução dos conflictos pode servir como exemplo de quanto importante e
eficaz o uso do direito costumeiro na comunidade.
Timor-Leste, como um estado
post-conflicto e que veio de uma história de guerras há séculos e onde existe
muitos grupos étnicos-linguísticos que possam pôr em causa a estabilidade do
país, onde a população não tem muito acesso ao sistema estadual da justiça,
precisa de um mecanismo adequado para tratar questões de justiça e de resolução
dos conflictos dentro da comunidade grass-root. Como diz Daniel Schroeter
Simião que “existe uma baixa penetração dos mecanismos estatais de justiça
(polícia, ministério público, defensória pública e tribunais) junto à população
em todos os Distritos”.
O que defende claramente também
essa situação pela Patrícia no mesmo artigo dizendo “ Cedo se verificou, porém,
ser muito limitado o real impacto das reformas empreendidas por via legislativa
junto das populações, que continuaram a reger as suas vidas pelas normas
costumeiras (por vezes, em manifesta violação do Direito oficial) e a recorrer
às instancias tradicionais para a resolução dos conflitos surgidos no seio das
comunidades”. Por isso, não se admira muito que com esta dificuldade de difícil
acesso ao sistema estadual de justiça a população muitas vezes recorre a
justiça tradicional como meios mais rápidos e acessíveis para resolver os
conflictos existentes.
A Justiça tradicional não tem
como objectivo apenas resolver os conflictos dos interessados mas mais do que
resolver os conflictos visto também como um mecanismo para garantir a
existência da harmonia da comunidade e muitas vezes o que a população procura
na justiça tradicional é isso mesmo a restauração da harmonia dentro da
comunidade; a restauração da perturbação da ordem social da comunidade. Tanja
Hohe e Rod Nixon dizem que “local law is mainly about the replacement of
values, to re-establish their correct exchange and thus reinforce the
socio-cosmic order”. Os dois sublinham concretamente que o direito local ou tradicional
é para “ [harmony in the cosmos and for community members is insured again]”.
Enquanto o direito estadual de Timor-Leste, hoje em dia, como fonte de origem
ocidental, na qual concentra na protecção e na valorização dos direitos humanos
de cada individuo, o indivíduo como valor em si mesmo numa perspectiva de Kant,
visto numa perspectiva ocidental de individualidade, o direito costumeiro de
Timor-Leste procura acentuar no interesse comum da comunidade. O interesse da
comunidade é maior de todos os interesses individuais isolados. É por isso que
qualquer decisão do tribunal do estado pôr em primeiro lugar o interesse da
vítima como individua e centro de atenção. Enquanto a decisão do “tribunal” da
justiça tradicional procura em primeiro lugar a harmonização da comunidade
porque qualquer problema é visto como uma ruptura da harmonia da comunidade. O
problema é do interesse de todos por uma questão da harmonia da comunidade. O
problema não é isolado, não apenas a vítima e o acusado mas é do interesse da
comunidade em nome da harmonia da comunidade e além disso, a participação da
comunidade na resolução dos conflictos é activa.
Mesmo que o direito costumeiro
tem um papel muito importante na vida dos timorenses na comunidade rural, o
reconhecimento do direito costumeiro é confuso dentro do estado de Timor-Leste.
Por um lado, a Constituição da República reconhece e valoriza o direito
costumeiro e por outro lado o parlamento nacional fez uma lei número 10/2003,
de 10 de Dezembro para impedir a sua valorização. O que nos parece que essa lei
não está em harmonia com a Constituição, a lei principal de Timor-Leste.
Essa realidade, para nós, mostra
que o estado de Timor-Leste está com dúvida em relação com a importância do
direito costumeiro no processo do desenvolvimento do país (State Building).
Mais do que a preocupação explícita, que consta na lei, podemos pensar também
(apenas como uma possibilidade) que uma das razões podem ser a preocupação da
existência no direito costumeiro as práticas que podem pôr em causa a falta do
respeito pela dignidade da pessoa humana, liberdade e a igualdade de género que
as vezes acontecem com a aplicação do direito costumeiro na sociedade
timorense.
Pensamos que, para evitar essa
tal preocupação da arbitrariedade de certos direitos costumeiros, devemos fazer
uma convergência do Direito Costumeiro para o ordenamento jurídico formal
estadual em harmonia sempre com a Constituição de Timor-Leste. Todo o acto de
Direito Costumeiro que contraria a Constituição deve ser proibido. Porque a
Constituição já prevê o respeito pela dignidade da pessoa humana (artigo 1
número 1), a garantia e a promoção dos direitos e liberdades fundamentais dos
cidadãos e o respeito pelos princípios do Estado de direito democrático (artigo
6 alínea b) outros princípios para a defesa dos direitos fundamentais como por
exemplo em relação com direitos, liberdades e garantias (artigos 29 e
seguintes) e direitos económicos, socias e culturais (artigos 50 e seguintes) e
além disso a Constituição também faz respeitar e dá supremacia do Direito
Internacional perante quaisquer leis ordinárias do Estado. Porque segundo o
artigo 9 número 3 da Constituição, toda a lei formal estadual será inválida
caso contrariar com as convenções, tratados e acordos internacionais recebidos
na ordem jurídica interna.
Este reconhecimento mostra a
supremacia das convenções, tratados e acordos internacionais (recebidos na
ordem jurídica interna enquanto completando o processo exigido no artigo 9
número 2 da CRDTL) perante as leis ordinárias do estado. Devemos ter, então, em
atenção que qualquer direito costumeiro que converge no direito formal estadual
deve estar sempre em harmonia com as convenções, tratados e acordos
internacionais que o estado de Timor-Leste já ratificou.
Com toda a certeza e seguramente
podemos dizer que a Constituição de Timor-Leste está desempenhar um papel
importante para proibir todo o acto que viola quisquer direitos fundamentais do
cidadão.
Por isso, o Estado de Timor-Leste
tem um compromisso de, enquanto fazer legislação e ordenar sobre o Direito
Costumeiro, tirar de fora e proibir todo o acto que contradiz com a
Constituição. Por exemplo na resolução do crime na justiça tradicional devemos
ter em consideração o princípio da legalidade no âmbito jurídico-penal na sua
máxima amplitude, no plano substantivo e também no âmbito processual penal e
deve garantir o direito à paz jurídica por parte de arguido, objecto de
sentença com trânsito julgado como também o direito a indemnização por
condenação injusta na aplicação da lei criminal segundo artigo 31 da
Constituição. Devemos banir qualquer acto, na resolução do crime na justiça
tradicional, que possa pôr em causa este artigo.
Além disso, no direito costumeiro
existe pena da morte ou tratamento desumanos e degradantes aos culpados e isso
não pode ser aceite e proibida a luz da Convenção Contra Tortura das Nações
Unidas que Timor-Leste já ratificou. Ou mesmo em relação com as mulheres na
qual em sociedade timorense há falta de respeito ou existe a discriminação das
mulheres no direito costumeiro então essa discriminação é proibida também
segundo a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação
contra as Mulheres que já foi ratificada por Timor-Leste. Ou por exemplo no
costume timorense que dá mais prioridade aos filhos para a educação formal do
que as filhas então esse acto também devemos proibir a luz do artigo 4 da
Declaração Universal dos Direitos Humanos.
Todos estes actos acima
mencionados também violam a Declaraçao Universal dos Direitos Humanos em
relação com os artigos 1 (Todo o homem tem o direito de se tornar humano e de
ser tratado como tal) , 2 (Todo o ser humano tem direito à vida), 3 (todo o ser
humano tem direito independência) e 4 (Todo o ser humano tem direito a saber).
Qualquer acto do Direito Costumeiro que, pôr em causa os Direitos Humanos deve
ser banido também porque a Constituição de Timor-Leste prevê no seu artigo 23
que “Os direitos fundamentais consagrados na Constituição não excluem quaisquer
outros constantes da lei e devem ser interpretados em consonância com a
Declaração Universal dos Direitos Humanos”. A questão dos Direitos Humanos
segundo artigo 23 torna como um guia orientador na elaboração e na
interpretação das leis do Estado de Direito de Timor-Leste incluindo na futura
elaboração e interpretação das leis que regulam sobre o direito costumeiro
(artigo 2 número 4 segunda parte).
Vimos que há valorização por
parte da Comunidade Internacional em relação com o direito costumeiro.
Encontramos isso na Declaração dos princípios básicos de justiça relativos às
vítimas da criminalidade e de abuso de poder que foi adoptada em 1985 na qual a
Assembleia-Geral das Nações Unidas admitiu o uso do Direito Costumeiro ou
práticas autóctones da justiça sempre em favor a vítima. Incluindo também a
valorização por parte do Conselho Económico e Social das Nações Unidas com a
resolução 2002/12 de 24 de Julho de 2002 que fala sobre justiça restaurativa em
matéria criminal. O Comité de Direitos Humanos também valoriza a legitimidade
dos tribunais baseado no Direito Costumeiro para fazer sentenças obrigatórias
desde as matérias só em relação com matérias criminais e civis menores(que veio
coincidir com a intenção do governo timorense acima mencionada).
Podemos afirmar que a aplicação
do direito costumeiro deve ser a luz da Constituição. Logo, na aplicação do
Direito Costumeiro em Timor-Leste, segundo o artigo 2 da Constituição, segue um
princípio de praeter legem e não contra legem.
Vimos na realidade que tanto o
direito costumeiro como o direito formal estadual tem o mesmo objectivo que é
resolver os conflictos, assegurar a estabilidade ou restabelecer a harmonia e
regularizar a vida da população no processo do desenvolvimento do país. Estes
objectivos, podemos considerar como sistema de controlo social de Direito
segundo a perspectiva de Atienza. Ele diz que “a actividade do controlo parece
ter por objecto a conduta em geral dos membros da sociedade, enquanto que, num
sentido mais restrito, o controlo social se limite aos desvios de conduta”.
Partir dessa função do direito
como controlo social devemos procurar como fazer uma boa convergência entre o
direito costumeiro e o direito formal estadual para o bem da sociedade como uma
contribuição desse processo de desenvolvimento e de consolidação do Estado
Democrático de Direito. Porque o direito costumeiro já nasce com a população.
Desvalorizar o direito costumeiro significa também desvalorizar o património
cultural de um povo e que isso vai contrariar artigo 5 alínea g da CRDTL e a
Convenção sobre a protecção e a promoção da diversidade das expressões
culturais e que como já citamos em cima que qualquer elaboração e interpretação
do direito costumeiro deve ser a luz dos direitos humanos que veio confirmar
com artigo 2 número 1 dessa Convenção.
Se hoje ainda existe essa prática
de direito costumeiro na sociedade timorense significa que pelo menos, entre a
população rural, esse direito costumeiro tem sentido da sua importância e da
sua eficácia aplicação, acessível nos olhos da população local na regulação da
vida da comunidade. Agora, o que nós devemos ter em atenção na situação do
pluralismo jurídico como em Timor-Leste para que qualquer direito costumeiro
não contrariar com a lei formal estadual (incluindo o direito internacional
reconhecido na ordem jurídica interna do estado); assegurar a reparação dos
danos das vítimas; a recuperação da ordem social da comunidade de base como
parte do sistema de justiça retributiva tradicional da comunidade e ao mesmo
tempo devemos também atribuir uma “punição” adequada aos culpados para que não
voltarem praticar os crimes no futuro.
*Antigo aluno dos Direitos
Humanos da Escola de Direito da Universidade do Minho. Eu procuro sempre
escrever para os jornais locais (e online Timor Agora) como um sinal do meu
agradeçimento para o apoio do Estado de Timor-Leste - Gabinete da Bolsa de
Estudo de Timor-Leste. Nessa ocasiao eu queria aproveitar para agradecer todos
os funcionarios do Gabinete da Bolsa de Estudo e em representação da Dona Ana
Paula (quando falei com ela como se eu estivesse a falar com a minha mãe, uma
pessoa de bom coração), o meu agradecimento para a simpatia e apoio de todos os
professores portugueses em geral e em especial para os professores da Escola de
Direito da Unievrsidade do Minho, o meu agradecimento para o apoio dos Irmãos
de Sao João de Deus de Portugal e de Timor-Leste e o meu agradecimento para a
amizade para a Companhia de Jesus em Braga e para todos os timorenses e
portugeses de bom coração que ja me têm apoiado durante a minha estadia em Portugal.
Agradeco em toda a minha vida os vossos apoios e simpatia e Deus Vos pague e
retribua algo de bom que me têm prestado. Especialmente para os colegas
portugueses, queria dizer que a porta de Timor-Leste está sempre aberta para
gente boa como vocês. Este artigo também foi publicado em 14 de Junho de 2018
no Jornal Suara Timor Lorosa’e.
*Antigo estudante da Escola de
Direito da Universidade do Minho do Mestrado em Direitos Humanos. Bele kontaktu
iha otadian@gmail.com ou iha
númeru kontatu: 76094252
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