domingo, 25 de novembro de 2018

Relato de uma experiência médica única em Timor-Leste

Na missão em Railaco (10 e 11 de setembro), com um dos “consultórios” atrás. Nesta manhã foram vistas mais de 50 pessoas, numa aldeia remota, onde só chegam cuidados médicos e fármacos uma vez por semana.
Os avanços tecnológicos e científicos aplicados à medicina são uma faca de dois gumes, porque nos permitem tratar hoje o que ontem era impossível, porém trazem consigo aquilo que tanto hoje se discute: o processo de desumanização. 

Neste contexto, ponderamos se seria o conhecimento científico superior ao conhecimento humanístico, numa especialidade como a nossa, em que tanto se procura uma medicina (re)humanizada. Na nossa sociedade, que apresenta cada vez mais doença emocionais, mais carente de estabelecer relações interpessoais, a resposta pareceu-nos clara. 

Assim, surgiu então a ideia de fazermos um estágio de Cuidados de Saúde Primários em Dili, a mais de  14 mil kms de distância das nossas áreas de conforto. Porquê Timor-Leste? Após o processo de descolonização portuguesa vieram 30 anos de ocupação pela Indonésia e Timor-Leste só se tornou o primeiro novo estado em 2002. 

Nessa época, os timorenses experimentaram um dos piores padrões de saúde na região Ásia-Pacífico. Desde então, tem havido uma melhoria mas ainda existem lacunas significativas, portanto esta seria a oportunidade perfeita para pôr um pouco de lado a “Era Técnica” – para exercitar o raciocínio clínico, observar um leque de patologias diferentes e poder ajudar populações com cuidados de saúde deficitários.

Contactamos a Ordem de Malta, uma agência de ajuda mundial que actua através de numerosos hospitais, centros médicos e fundações especializadas – que é dedicada à preservação da dignidade humana e ao cuidado de todos os necessitados, independentemente da sua raça, interesses políticos ou religião. O nosso estágio foi aceite pela clínica e o processo decorreu nas conformidades, sem quaisquer dificuldades.  

Estivemos em Timor-Leste durante Setembro e, um mês de partilha com toda a equipa da Clínica da Ordem de Malta soube a pouco. Para além do serviço prestado na clínica (saúde adulto, saúde infantil, saúde materna), visitamos o hospital e centro de saúde de Dili – com os quais colaboramos em várias iniciativas - participamos em missões nas comunidades mais remotas sem acesso regular a cuidados de saúde (na área da imunização, rastreios, clínica geral e informação de saúde através de sessões de esclarecimento). 

Estivemos diariamente em contacto com problemas sociais, com limitações nos recursos e na comunicação e dificuldades económicas, tivemos de improvisar  perante a limitação de fármacos. Ao ver crianças ter de caminhar quilómetros sobre o sol para ir à escola e o fazerem-no a sorrir, quando o consultório é a “cabana” de uma idosa que vive com a filha, o neto e meia dúzia de pintainhos, aprendemos a acordar cedo com um sorriso, a dar mais de nós a quem precisa e a relativizar os problemas.  

Hoje não esquecemos as aulas de Tétum, o pôr-do–sol, os sorrisos e as lágrimas da despedida. Deixamos lá um pouco de nós e trouxemos definitivamente um pouco de Timor connosco, porque nos sentimos bem-vindas, sentimos que fizemos a diferença e parte da nossa missão é agora partilhar o que foi para nós este estágio.

Há um mundo lá fora a precisar da nossa ajuda e outro dentro de vocês próprios para ser descoberto. Como disse uma Professora minha da FMUC, “quem só sabe de Medicina, nem de Medicina sabe”… 

Ana Carina Sá e Eduarda Pinheiro - Médicas internas de Medicina Geral e Familiar na USF Remos (ACES Alentejo Central) e USF Plátano (ACES São Mamede)

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Artigo publicado na edição de novembro do Jornal Médico dos cuidados de saúde primários. De periodicidade mensal, Jornal Médico dos CSP é distribuído em todas as unidades de saúde familiar do país, sendo uma ferramenta única na partilha e promoção de boas práticas e projetos inovadores implementados nos cuidados primários.

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