António
Sampaio, da Agência Lusa
Díli,
21 ago (Lusa) - O sacrifício de dois búfalos, cujas entranhas foram lidas como
oráculo, foi dos momentos mais dramáticos da cerimónia de três dias conduzida
em Díli pelos liurais e lia nain, chefes tradicionais timorenses, como bênção
ao monumento da "Chama Eterna".
Serigala,
uma cerimónia que se realiza, a nível nacional, muito poucas vezes em
Timor-Leste - a última foi em 2008, depois da crise e dos conflitos que
assolaram o país - é um ritual tradicional e animista que envolve os
"donos das coisas sagradas" de todos os municípios.
'Sacerdotes
gentilícios', como eram apelidados pelos portugueses, que integram o complexo
sistema legislativo e judicial tradicional timorense e que foram chamados para
uma homenagem aos heróis desconhecidos.
Ponto
final nas cerimónias do 40.º aniversário das Falintil, a serigala marcou a
colocação da primeira pedra no monumento em forma de estrela, a Chama Eterna,
que vai ser construído no jardim em frente ao Arquivo e Museu da Resistência
Timorense (ARMT), anfitrião deste encontro místico.
Eugénio
Sarmento, ele próprio lia nain "de Soibada, a Coimbra de Timor-Leste"
é o guia para uma cerimónia cheia de símbolos, de memória, de rituais
ancestrais que ligam o passado dos reinos timorenses ao passado mais recente da
resistência e "ao futuro do país".
O
objetivo central era "pedir licença" para fazer um monumento que
representará os heróis desaparecidos e anónimos, que sirva como "sítio de
reflexão" sobre os "atos heroicos" e para "manter viva a
chama de todos os que lutaram pela libertação da pátria, como explicou ?Hamar'
Antoninho Baptista Alves, diretor do ARMT.
A
cerimónia começou na noite de quarta-feira quando os chefes tradicionais dos 13
municípios timorenses presidiram ao sacrifício de uma galinha. A leitura das
entranhas revelou que o projeto "tem um pequeno problema".
Informação
confirmada na segunda fase da cerimónia, na noite de quinta-feira, a mais
dramática, em que primeiro se sacrificou um porco - as entranhas voltam a ser
consultadas e o seu sangue benze os instrumentos e objetos centrais à cerimónia
- e depois dois búfalos.
Um,
vermelho, para chamar até ao jardim, próximo do Parlamento Nacional e ao lado
do ARMT, "as almas dos heróis" e depois, um preto, para 'fechar' a
cerimónia, voltando a unificar as armas neste espaço.
Os
búfalos morrem junto a uma árvore onde depois são colocados os seus chifres. O
seu sangue trás ao centro da capital timorense, um ritual secular e que
pretende ser unificador.
Três
pedras, de maior dimensão, uma do mar, uma das montanhas e uma do rio,
representam os timorenses que morreram na luta pela libertação, 13 pedras mais
pequenas representam, uma por cada distrito, os mortos dessas zonas e depois
outras, de ainda menor dimensão, os de cada posto administrativo.
Os
búfalos morreram rápido - "o que é bom sinal", explica Eugénio
Sarmento, e os oráculos são positivos, ainda que se mantenha a informação
inicial, da galinha: há um pequeno problema com o projeto.
"O
problema não é com os mortos. É com os vivos", explica ?Hamar'. O ritual
parece confirmar a alguma oposição política que existe, em Díli, face a esta
iniciativa da "Chama Eterna".
As
pedras e os 13 belak distritais (os discos dourados representativos do sol e
usados pelos chefes tradicionais), são benzidos com o sangue dos animais sacrificados.
Com tais, os panos tradicionais e bandeiras das Falintil, Fretilin e de
Timor-Leste, passaram a noite no ARMT.
A
cerimónia só terminou hoje com vários veteranos da luta, interna e externa, a
juntaram-se ao ritual, ajudando a colocar os objetos benzidos, as pedras e os
belak, no buraco onde fica a primeira pedra.
José
Ramos-Horta, Mari Alkatiri, Rogério Lobato, os ex-guerrilheiros Ma Huno e Mau
Meta - este último de cadeira de rodas - juntam-se, tocam as pedras, os
objetos, fundindo a sua presença com as dos heróis aqui homenageados.
Ma
Huno, emocionado, não consegue controlar as lágrimas. Caminha com dificuldade e
mostra na cara a dor da memória que lhe evoca este encontro carregado de
misticismo.
"Nós,
os que sobrevivemos a luta pela resistência, temos o dever moral de contar e
transmitir a história e os que tombaram habitam, agora, na memória e no orgulho
de nós que vivemos", disse o diretor do ARMT.
Na
fusão cultural que é Timor-Leste, a cerimónia animista inclui uma bênção de um
padre católico que lança água benta por sobre as pedras e restantes objetos
marcados com o vermelho do sangue dos animais sacrificados.
E
termina com um minuto de silêncio.
ASP
// JCS
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