Díli, 25 abr 2019 (Lusa) -- Uma
organização timorense divulgou hoje um depoimento de uma jovem que diz ter sido
uma de várias crianças vítimas de abuso sexual por um ex-padre norte-americano
no enclave de Oecusse, em Timor-Leste.
O depoimento, divulgado pela
organização Fokupers -- que entre outras atividades apoia vítimas de abuso
sexual -- confirma a existência de várias vítimas de Richard Daschbach, que foi
demitido do sacerdócio pelo Vaticano, mas continua livre e a viver na mesma
comunidade.
"Eu não sabia nada. E não
perguntei nada. Fui com as outras. Naquela vez estávamos três meninas no
quarto. E foi quando as coisas más aconteceram. E fiquei surpreendida que as
meninas ficavam caladas. O pai nem precisava de nos ameaçar. Ficávamos caladas. Ninguém falava de nada", contou a jovem no depoimento divulgado hoje pela
organização.
A jovem explica que o então padre
-- a quem chama 'pai' - nunca dizia por palavras o que queria, mas sim por
gestos, incluindo masturbação, sexo oral e toques, agarrando as meninas para
mostrar o que queria que fizessem.
"E tínhamos que fazer várias
vezes. Pegava nas nossas mãos e punha-os no corpo e queria que o
agarrássemos" nas suas partes privadas, disse a jovem.
"Enquanto criança eu pensava
que as partes privadas do pai não deviam estar na minha boca", disse.
A vítima, que não é identificada
"para sua proteção", explica que ela e outras crianças do orfanato
Top Honis, em Oecusse -- gerido por Daschbach em nome da congregação Societas
Verbi Divini (SVD ou Sociedade da Palavra Divina), a quem o norte-americano
confessou os seus crimes.
O depoimento confirma que os
casos de abusos eram conhecidos na comunidade onde, apesar disso, o padre
"era muito respeitado".
A jovem explica que foi viver
para o orfanato/centro de acolhimento, localizado em Kutete, porque "via
as crianças bem vestidas e com comida", tendo a sua família aceitado
porque assim "sobrava mais arroz" para o resto dos seus membros.
"Quando lá cheguei estava
contente. Passei lá bons momentos da minha vida. Tenho lá amigas, pude brincar.
E há pessoas boas lá a trabalhar. Eu todos os dias acordava pronta para ir para
a escola, e ajudava no jardim", contou a jovem.
"E sabia que não precisa de
andar sempre a pensar na comida, porque havia lá", disse.
Depois, porém, "tudo começou
a mudar com as pessoas a dizer que tinha que me deitar com o pai", conta,
explicando que a primeira vez que foi abusava foi "durante a sesta".
Um depoimento em que fala do
"medo e respeito" que tinham ao padre, mas em que, especialmente,
"pelo medo dele, faziam o que ele queria", com muitas crianças a
serem levadas para os quartos diariamente.
"Todas as meninas. Todos os
dias, as mesmas coisas", explicou.
"Acho que nunca estava
sozinho no quarto", contou, referindo que quando as meninas cresciam o
abuso parava, mas que "todas as meninas pequenas tinham que se deitar com
o padre".
A jovem diz que tinha oito anos
na altura dos abusos, explica que nunca falou por medo e que era difícil falar
do caso porque Daschbackh era "considerado o pai", o diretor do
orfanato que "dava comida, roupa e escola".
"Quando o abuso começou
sentia que era porque era nosso dever fazer o que ele queria. Ele tinha poder e
eu tinha medo", contou a vítima.
"Eu sei que é difícil para
as pessoas acreditarem que ele não fazia bem às crianças porque o viam como herói,
mas as pessoas devem saber que ele não fazia bem. Ele é mau, é o diabo",
disse.
A vítima diz que há pressão
dentro da comunidade e até entre algumas pessoas do centro para que as outras
vítimas não falem, com "ameaças".
Mostra-se satisfeita que o
Vaticano o tenha afastado do sacerdócio, mas quer justiça.
Daschbach, 82 anos, natural de
Pittsburg, nos Estados Unidos, vive em Timor-Leste desde 1966 e, em 1992,
estabeleceu duas casas de abrigo de crianças, a TopuHonis, em dois espaços no
enclave de Oecusse.
O caso chegou a conhecimento de
responsáveis timorenses há quase um ano, mas só foi tornado público, pelo
jornal Tempo Timor, em fevereiro.
Apesar de Daschbach ter admitido
perante várias pessoas a autoria dos crimes continua a viver em liberdade em
Oecusse, não tendo sido ainda formalmente acusado pelo sistema judicial
timorense.
ASP // JPS
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