António
Katchi aponta as responsabilidades pela mono indústria local tanto ao Governo
de Macau, como a Pequim, decorrendo daí, na sua opinião, a responsabilidade de
garantir à população o pleno emprego. Para o jurista, o novo elenco governativo
não é sinónimo de novidades nas orientações políticas, desenhadas para proteger
a “oligarquia local”, com o beneplácito do Governo Central. A educação
patriótica, por exemplo, é um “péssimo sinal” para o futuro.
Sandra
Lobo Pimentel – Ponto Final (Macau)
–
Temos um Governo que entrou em funções recentemente, com algumas novidades e
ideias para o futuro. O que pensa desse futuro?
António
Katchi – Antes de mais, não concordo com a observação de que temos um
Governo novo. Acho que temos um Governo velho e recauchutado. Ou seja, temos um
Chefe do Executivo, que é quem define as políticas sob a orientação de Pequim,
que é o mesmo. Temos o mesmo regime político que não dá espaço para um Governo
diferente com políticas significativamente diferentes e temos o mesmo regime
chinês com a mesma orientação política para Macau, que é de defesa dos
interesses da oligarquia local e também do capital estrangeiro, nomeadamente
americano, em detrimento da defesa dos interesses das massas populares.
Portanto, nesse aspecto, não há mudança nenhuma. O que há é novos secretários
que dão alguma imagem de novidade e parecem ter vontade de fazer alguma coisa,
mas não significa que têm vontade de fazer mudanças significativas em termos de
políticas governamentais e nem significa que possam vir a fazer aquilo a que se
propõem fazer.
–
Em relação aos discursos nas Linhas de Acção Governativa sente-se essa novidade
ou essa vontade, pelo menos das caras novas?
A.K.
– Como digo, novidade talvez em acelerar algumas coisas que andavam a ser
arrastadas, mas não propriamente vontade em fazer uma mudança significativa de
políticas. Vejamos o caso do novo hospital das Ilhas, que já estava previsto,
mas constantemente atrasado. Claro que isso é positivo. Se havia alguma coisa
que era importante e que tardava em ser executada e se agora for executada mais
depressa, claro que é positivo se for feito. Ainda em relação à pasta dos
Assuntos Sociais e Cultura não se vêem outras mudanças. A única novidade na
política educativa é assustadora, a chamada educação patriótica. De resto não
se vislumbra nada e há vários problemas na educação.
–
O discurso da educação patriótica parece-lhe forçado? Faz sentido?
A.K.
– Não faz sentido nenhum, do ponto de vista da generalidade das pessoas de
Macau que se interessam pela educação e pela liberdade de expressão e de
pensamento. Faz sentido do ponto de vista do Governo chinês, já que é um
Governo totalitário, que pretende à viva força doutrinar as pessoas e
condicionar o avanço do regime rumo a uma maior democratização – nunca total -,
e a evolução das próprias mentalidades.
–
Considera que é um mau sinal?
A.K.
– É um péssimo sinal, mas, ao mesmo tempo, as pessoas às vezes até podem
fingir que acreditam. Na China, que eu saiba, as pessoas não têm a menor
confiança no Partido Comunista. Até podem ter medo de falar, de criticar
publicamente ou desafiar. Felizmente, a China não é como a Coreia do Norte,
onde não sabemos sequer se as pessoas realmente acreditam ou se se sentem
obrigadas a fazer teatro. Na China sabemos, pelo contacto que temos com as
pessoas, que elas não acreditam em muito daquilo que a propaganda chinesa diz.
Se recordarmos o contexto em que a educação patriótica foi lançada em Macau
depois do “Verão Quente” do ano passado, de repente, parece que se tornou
extremamente importante. Primeiro, com a derrota da proposta de lei que vinha
dar privilégios aos políticos e com as manifestações, depois o referendo civil,
que sofreu aqueles ataques todos mas, ainda assim, conseguiu um número
considerável de participantes, para além do movimento Occupy em Hong Kong. Veio
então o representante do Governo Central, Li Gang, dizer que tinha um estudo
que revelava que só 30 por cento dos chineses de Macau se sentiam chineses. Não
acredito nestes dados. Em todos estes anos, nunca conheci nenhum chinês em
Macau que não se sentisse chinês, ao contrário dos de Hong Kong. Mas isto para
justificar depois a necessidade da educação patriótica. É óbvio que, do ponto
de vista da China, uma educação dessas será uma doutrinação, uma vez que é
confundido o “Amor à Pátria” com o respeito pelo regime político e pelo Partido
Comunista. E do ponto de vista dos governantes de Macau, não hão-de querer
desafiar o Governo Central, tentando, pelo menos aos olhos de Pequim, que essa
educação seja ideológica e doutrinária. Mas ao mesmo tempo, quiseram fazer com
que aos olhos da população de Macau, não seja assim. Por isso vieram dizer que
se pretende um ensino objectivo e científico. Mas aqui, que se saiba, já se
estuda a História da China nas escolas.
–
Macau está em posição de fazer valer as suas vontades perante Pequim?
A.K.
– Acho que os governantes de Macau, nem sei se tentam, mas uma vez que
dependem do Governo de Pequim para estarem nos seus lugares, podem tentar até
ao ponto em que isso não ponha em perigo a subsistência desse poder. As coisas
vão ser condicionadas pelo Governo chinês. Como aliás acho que é a política
económica em geral do Governo. Desde a decisão de abrir parte da concessão do
jogo a empresas americanas e deixar que o capital americano domine parte da
economia de Macau, até à forte concentração da política do Governo no sector do
jogo, parece-me que isso, de uma maneira ou de outra, é ditado por Pequim. Os
dirigentes chineses até podem vir cá com aquela lenga-lenga de que é preciso
diversificar a economia, mas a verdade é que o Governo Central nunca fez nada
para diversificar a economia. Será que agora pretendem que Macau diversifique a
sua economia afundando o sector do jogo?
–
O combate à corrupção tem a ver com o arrefecimento do sector do jogo em Macau?
A.K.
– É possível, uma vez que havia muita gente corrupta que vinha cá jogar.
Mas suponho que o Governo chinês, embora sabendo que essas acções podem ter
algum impacto no sector do jogo em Macau, deve estar, também, a controlar isso.
Ou seja, provavelmente está atento às flutuações das receitas e vê que, mesmo
que o volume dessas receitas desça, os interesses fundamentais da oligarquia de
Macau continuam garantidos. Para os trabalhadores e para as massas populares, o
Governo chinês está-se nas tintas, só não quer que haja grande instabilidade.
Claro que se houvesse agora desemprego massivo e revolta nas ruas com grandes
manifestações, isso assustaria o Governo Central que não há-de querer que se
chegue a esse ponto.
–
A redução das receitas do jogo e a possibilidade de isso afectar os
trabalhadores, por exemplo, através de despedimentos, torna preocupante o facto
de Macau não ter uma lei sindical?
A.K.
– É preocupante e desvantajosa, desde há muito tempo. A solução para
ultrapassar este problema não estaria numa lei sindical má que eventualmente
seria proposta pelo Governo e inspirada na lei sindical de Singapura ou de
outro regime autoritário. A solução residiria na adopção de uma lei
verdadeiramente protectora da liberdade sindical como têm sido sempre os
projectos do deputado José Pereira Coutinho, inspirados na lei portuguesa, um
regime democrático. Se for o Governo a tomar a iniciativa, não sei como alguém
pode imaginar, sinceramente, que um Governo como este iria apresentar uma
proposta semelhante à do Coutinho.
–
Mais vale não haver lei sindical do que haver uma lei má?
A.K.
– Claro. E, já agora, presumo que o Governo não iria procurar inspiração
na lei portuguesa. Seria, talvez – na melhor das hipóteses, que ainda assim
seria má -, na legislação britânica do tempo de Margaret Thatcher ou na de
Singapura ou da China Continental. Realmente, entre não haver – que é uma
situação má -, e haver uma lei fortemente restritiva da liberdade sindical, é
melhor não haver. Porque a liberdade sindical consagrada na Lei Básica e no
Pacto Internacional de Direitos Económicos, Sociais e Culturais e algumas
convenções da Organização Internacional do Trabalho, consta de normas que são
auto-exequíveis. O artigo 27º da Lei Básica é uma disposição que se aplica
directamente na esfera jurídica dos cidadãos. Mesmo que não haja uma lei
ordinária, pode ser aplicada e invocada directamente com respeito pelos
princípios gerais do sistema jurídico, como a proibição do abuso de direito.
Mas está também consagrada a liberdade de associação. Então, ao abrigo dessa
liberdade, podem ser criadas associações sindicais, independentemente de se
chamarem sindicatos.
–
Reconhece essas características em alguma associações locais?
A.K.
– A ATFPM [Associação dos Trabalhadores da Função Pública de Macau] anda
lá próxima. Apesar de não ter aproveitado plenamente as possibilidades que tem
do ponto de vista jurídico. Se é uma associação que tem por objecto a defesa
dos interesses sócio-laborais dos trabalhadores da função pública e é possível
exercer a liberdade sindical e o direito à greve e de manifestação,
directamente com base no artigo 27º, em teoria, a ATFPM poderia convocar uma
greve.
–
Estamos em véspera do 1º de Maio. Como vê a dinâmica desta data em Macau?
A.K.
– A última vez que houve um número significativo de trabalhadores da
função pública a participar nessas manifestações, creio que foi em 2008 e iam
com máscaras. Aliás, foi a própria ATFPM que as distribuiu para depois os
participantes não sofrerem retaliações nos seus serviços. até porque a polícia
tem o costume de filmar de perto os manifestantes, portanto, facilmente tem uma
lista dos participantes. Por outro lado, as pessoas que trabalham na
Administração têm cada vez mais um vínculo precário, o que significa que têm
que fazer o possível para agradar aos chefes.
–
Houve há pouco tempo a convocação de manifestações por uma associação ligada
aos trabalhadores do jogo e uma ameaça de greve, tendo sido denunciadas
pressões. Macau está preparada para essa realidade sindical?
A.K.
– Vemos nessa associação um embrião de uma associação sindical. Está a
desenvolver-se e poderá vir a formar-se como tal e tem adoptado medidas dessa
natureza, nomeadamente, a convocação de uma greve. Depois veio a falhar, na
medida em que os trabalhadores em vez de invocarem formalmente o direito à
greve, pediram atestados médicos. Formalmente, não foi uma greve, ainda que
materialmente o tenha sido. Agora, houve pressões, segundo veio nas notícias,
do empregador e do Governo Central. Houve uma denúncia de um dirigente dessa
associação, segundo a qual, um residente influente de Macau, membro do
Conferência Política Consultiva do Povo Chinês, terá sido encarregado pelo
Governo Central de transmitir um recado para a associação moderar as suas
acções. Nunca se soube quem era essa pessoa, mas podemos imaginar. Seria Edmund
Ho? Não quero fazer acusações infundadas, mas não há assim tantas pessoas
influentes membros da Conferência Política Consultiva do Povo Chinês.
–
A secretária Sónia Chan tem em mãos o processo de simplificação administrativa.
Há quem fale no peso excessivo da Administração. Crê que poderá solucionar
alguns problemas?
A.K.
– Em primeiro lugar, não só não há excesso de trabalhadores na função
pública, como haverá falta, já que muitos estão sobrecarregados. Além de que,
tendo em conta que os governos local e central são responsáveis pela falta de
diversificação económica de Macau, e uma vez que têm obrigação de garantir
emprego às pessoas, têm que aumentar a oferta de emprego no sector público. Por
outro lado, não me parece que o problema seja os trabalhadores da função
pública não fazerem bem o seu trabalho. O trabalho acumulado pode ser uma das
causas explicativas do atraso de alguns procedimentos administrativos, mas
também a atitude dos chefes que, como se diz, podem ter alguma dificuldade em
decidir ou complicar os procedimentos.
–
Foi também anunciada a criação de órgãos municipais. Como vê essa iniciativa?
A.K.
– A criação do IACM [Instituto para os Assuntos Cívicos e Municipais] em
substituição dos municípios veio agravar o problema de sobreposição de
atribuições. Ao longo dos tempos tem havido algumas clarificações, mas criação
dos órgãos municipais será positiva, ou não, conforme o figurino que irão ter.
Se não forem órgãos eleitos, não vejo qual é a vantagem que traz. Fui contra a
extinção dos municípios e recordo que foi preparada mais ou menos em segredo. Na altura o
que se dizia era que os municípios tinham que ser extintos porque a Lei Básica
dizia que podiam existir, mas não poderiam ter poder político. Ou seja, os
órgãos tinham que deixar de ser eleitos, o que não faz sentido nenhum, porque
uma coisa não implica a outra. Uma coisa é a natureza dos poderes, outra é o
provimento desses poderes. Se a solução for ter órgãos municipais com membros
integralmente nomeados pelo Chefe do Executivo, então qual é a vantagem? Será
como desdobrar o IACM. Quase como criar sedes do IACM em diferentes partes de
Macau.
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