Há alguns personagens que
aparecem nos escritos sobre a história de Timor-Leste que merecem lá estar. Uma
dessas figuras emblemáticas é Dom Boaventura Costa, líder da grande Revolta de
Manufahi.
M. Azancot de
Menezes | Jornal Tornado
O Município de Manufahi, cuja
capital é Same, está situado na costa sul de Timor-Leste e inclui uma vasta
planície litoral, possuindo muitas lagoas com crocodilos, sem dúvida, um
atractivo turístico encantador. Contudo, tal como em todos os países e regiões
do mundo se registam acontecimentos históricos e personalidades que emergem e
se tornam referências obrigatórias, há um outro aspecto emblemático desta área
geográfica nacional que merece ser particularizado e enaltecido. Quando nos
reportamos a esta região, Manufahi, obrigatoriamente, temos que destacar a
grande Revolta de Manufahi liderada por Dom Boaventura da Costa Sottomayor,
filho mais velho de Dom Duarte da Costa Sottomayor.
O pai de Dom Boaventura da Costa
Sottomayor, Dom Duarte da Costa Sottomayor, era rei de Manufahi e prestava
vassalagem a El-Rei de Portugal, D. Luiz I. A obediência a El-Rei foi visível
no momento em que prestou juramento perante o testemunho do Governador João
Maria Pereira no sentido de cumprir as ordens dos governadores de Timor-Leste.
“Juramento prestado por Dom Duarte da Costa Sottomayor no dia 15 de Dezembro de 1884
Eu, Duarte da Costa Souto Maior, representante do reino de Manufahi, juro aos Santos Evangelhos vassalagem a El-Rei de Portugal, o Senhor D. Luiz I, e por preito e homenagem me obrigo a cumprir todas as ordens dos senhores governadores de Timor e a manter e fazer respeitar no meu reino a religião catholica e bem assim a pagar finta que me for ordenada e dar auxiliares para a guerra e serviçaes para serviço público quando me forem requisitados.
Boletim da Província de Macau e
Timor, vol. XXI, nº 7 (1885), citado por Dom Ximenes Belo (2013)
Uma década mais tarde, apesar do
juramento diante do Governador João Maria Pereira, e de novo juramento na
presença do Governador José Celestino da Silva, Dom Duarte deixou de pagar
impostos e não prestou outros serviços, em total “desobediência”, tendo-se
incompatibilizado com o Governador de Timor-Leste. Após esta situação de
“incumprimento” generalizado ocorreram os primeiros confrontos militares,
violentos, sendo considerado por vários historiadores como a primeira guerra de
Manufahi. Dom Duarte, desgastado da guerra e aprisionado, com o surgimento da
varíola, acabou por falecer.
Em 1911, o Reino de Manufahi, já
liderado por Dom Boaventura, vinculado à bandeira monárquica, não aceitou de
bom agrado a implantação da República Portuguesa a 5 de Outubro de 1910, e
muito menos a mudança da bandeira, considerada como algo de muito valioso e
sagrado. Por razões de âmbito político, e outras, Dom Boaventura já não via com
bom olhos a colonização portuguesa, tal como o pai, recusava pagar impostos
obrigatórios e não aceitava a proibição do abate das árvores de sândalo
(madeira preciosa) nem de ter que pagar o abate de animais para os rituais
tradicionais e sagrados, um conjunto de factores que se tornaram as principais
causas do início da segunda Revolta de Manufahi.
O assassinato do Tenente Luiz
Álvares da Silva foi o início da segunda Revolta de Manufahi
Na véspera de Natal, na manhã de
24 de Dezembro de 1911, um grupo de homens fiéis a Dom Boaventura realizou as
primeiras acções de operacionalização da segunda Revolta de Manufahi e que
iriam marcar a desvinculação total com a administração portuguesa em
Timor-Leste.
Como descreve Dom Carlos Filipe
Ximenes Belo (2011):
“Na manhã do dia 24 de Dezembro de 1911, véspera de Natal, o Tenente Luís estava na sua residência e acabava de tomar banho. Apareceram no comando uns homens mandados por Dom Boaventura da Costa. Um ia amarrado e outros seguiam-no. Davam a entender que iam apresentar uma queixa ao comandante. O Tenente ao ver aquilo saiu para ouvir a queixa do que ia amarrado. Mas, de repente caíram golpes de catanadas sobre o comandante. Este tentou reagir correndo para dentro em busca da uma arma. Mas, tudo foi inútil. Os homens perseguem-no e cortam-lhe cabeça. A esposa do Tenente Silva estava dentro da casa com o filho ainda bebe. Os homens arrastam-na para fora e colocam no regaço a cabeça do marido. No interior da residência os timorenses reúnem os móveis sobre os quais colocam o cadáver do Tenente Luís Silva. Entretanto mais três portugueses são mortos: dois soldados e um civil.”
Dom Carlos Filipe Ximenes Belo
(2011)
O assassinato ocorrido na casa do
Tenente Luiz Álvares da Silva e de outros portugueses depressa circulou e deu
lugar à reacção massiva dos militares portugueses, com uma guerra que iria
durar largos meses. Segundo Dom Ximenes Belo (2011), “a notícia do assalto ao
Comando de Same e a morte dos seis portugueses espalha-se pelas aldeias de
Same. E de Maubisse, os ecos dos trágicos acontecimentos chegam a Díli. Em
resposta aos actos de rebelião, o governador Filomeno da Câmara mobilizou
soldados, moradores e auxiliares que atacaram os redutos dos revoltosos desde
Janeiro de 1912 até Outubro do mesmo ano. O resultado dessa campanha foi a
prisão de Dom Boaventura e a sua consequente destituição no dia 26 de Outubro de
1912” .
Os relatórios da administração
colonial portuguesa referem que terão sido mortos cerca de 3500 timorenses e
aprisionados quase 13 mil, mortos 289 militares portugueses e feridos 600, mas,
algumas fontes referem que mortos timorenses poderão ter sido mais de 15 mil.
Independentemente das estatísticas, a proeza de Dom Boaventura fez dele um
herói nacional e hoje é reconhecido pelo Estado de Timor-Leste como o primeiro
líder timorense que se revoltou contra a colonização portuguesa.
O reconhecimento público de Dom
Boaventura
A moeda oficial de Timor-Leste, como
se sabe, é o dólar (USD). A partir de Novembro de 2003 começaram a circular no
país moedas metálicas (centavos) cunhadas para uso nacional. A moeda de 100
centavos apresenta a figura de Dom Boaventura, um reconhecimento público por
parte do Estado a esta figura histórica. Em Same, capital de Manufahi, há uma
grande estátua em homenagem a Dom Boaventura. Os livros de história mencionam
os feitos de Dom Boaventura. E a medalha mais importante de Timor-Leste inclui
também a figura do grande herói, Dom Boaventura da Costa Sottomayor.
Professor universitário
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