Macau,
China, 02 jun (Lusa) -- A 04 de junho de 1989, Yi Ling soube que tudo mudara: à
pacata Macau onde vivia chegavam as notícias de um massacre que nunca mais
abandonou a sua poesia. 27 anos depois de Tiananmen, ainda escreve versos sobre
aquele dia.
"Foi
muito chocante, na altura, ver aquelas imagens. Senti que tinha de escrever
sobre aquilo", recorda Yi Ling (pseudónimo de Cheang Mio San), em
entrevista à agência Lusa. Quase três décadas passaram desde o massacre de
Tiananmen, em Pequim, mas a poeta continua a não conseguir conter as lágrimas.
"Muitas
pessoas perguntaram porque é que os estudantes não fugiram da praça, daquele
destino. Mas quero frisar que não é culpa deles. Foi um crime das autoridades,
do Governo", insiste.
As
repressão violenta aconteceu na madrugada de 03 para 04 de junho, mas há meses
que os estudantes ocupavam a praça, num protesto pacífico por reformas e
democracia. Também em Macau, na altura sob administração portuguesa, os
universitários se mobilizavam.
"Sabíamos
qual era a nossa responsabilidade, sabíamos que tínhamos de nos fazer ouvir e
ajudar", recorda.
Na
universidade havia um comité de apoio aos jovens de Pequim. Quando estes
iniciaram uma greve de fome, os estudantes de Macau reuniram-se junto à sede da
agência de notícias chinesa Xinhua (a única representação oficial da China em
Macau, na altura) e ali dormiram.
"Estava
rodeada deste ambiente, era muito natural para mim participar nestas
atividades. Era uma forma de apoiar os estudantes", explica.
Seis
dias depois do massacre, escreveu o poema "Todos os rostos que
perdemos": "Nos sonhos/ Perdemos todos os rostos/ Numa só noite/ O
mundo não pode gritar a nossa verdade" (tradução livre do chinês).
Yi
Ling escrevia ensaios e poesia desde a adolescência, publicando-os nos jornais,
uma prática comum entre os diários de Macau que se mantém até hoje. Mas depois
de Tiananmen, houve uma mudança: "Antes do 04 de junho, não anotava
qualquer data nos meus escritos. Depois comecei a ganhar o hábito de apontar a
data em todos os textos relacionados com assuntos sociais ou políticos. Senti
que era minha responsabilidade relatar o que se passava e o que eu
sentia".
O
"incidente", como é referido frequentemente, teve um impacto
transversal: "Não só como escritora, mas em toda a minha vida. Tive
sentimentos muito contraditórios, senti um grande desejo de melhorar a
sociedade e ao mesmo tempo uma pressão para não o fazer".
Foram
tempos conturbados também em Macau, onde a comunidade chinesa gozava de
liberdades que depois se deterioraram. "Publicava-se no Ou Mun [jornal de
maior circulação, pró-Pequim], não havia censura, era um bouquet de liberdade
de expressão", diz Yi Ling.
"[Após
Tiananmen], muitos sentiram que depois da transferência [de administração de
Macau de Portugal para a China em 1999] não estariam seguros. Em Macau e Hong
Kong houve um grande movimento migratório. Os pais mandaram os filhos para o
estrangeiro. Mas eu senti que tinha de ficar. Um grupo de estudantes morreu
pela democracia em Pequim, eu não devia fugir disso", lembra.
Em
1990 publicou o primeiro livro, "Cidade flutuante" (tradução livre),
sobre Macau mas também com muitos textos sobre Tiananmen.
Depois
de terminado o curso em Estudos Políticos, trabalhou cerca de três anos na TDM,
emissora pública de televisão e rádio, e envolveu-se mais com o movimento
pró-democracia, chegando a integrar as listas da Associação Novo Macau para
eleições legislativas. Em 1993 casou-se com Au Kam San, hoje um dos dois
deputados pró-democracia eleitos através da associação.
Em
2005 lançou dois livros, um sobre Macau, outro sobre Hong Kong, onde critica,
em particular, a indústria do jogo, que equipara a alguém "beber veneno
quando tem sede". "Não resolve nada", diz, referindo-se à
questão económica e às seitas, outrora nas ruas, terem sido "levadas para
os casinos".
O
ambiente nos jornais de língua chinesa, em tempos descritos como montras livres
para o trabalho literário, também mudou: "Depois de 1999 continuámos a
poder publicar, mas mais recentemente, 2008 ou 2009, a situação ficou mais tensa
e deixei de conseguir. Sou quase uma escritora clandestina".
O
acumular de inéditos foi tal que, em 2010, percebeu que tinha material para um
novo livro. Mas a aprovação, em 2009, do "Artigo 23.º", sobre crimes
de traição à pátria, fê-la hesitar. "Não tenho medo de publicar, mas não
sei se um editor correria esse risco", comenta.
Após
quatro anos de pausa, Yi Ling voltou a pegar na caneta no dia 30 de maio:
"Fomos arrancados pela raiz naquela noite/ 'Small potatoes'/ Sinónimo de
'ninguém' para os estrangeiros (...) As batatas foram arrancadas dos campos e
mortas numa noite/ Novas batatas não podem crescer saudáveis no solo envenenado
(....) Infelizmente as pessoas há muito que esqueceram/ que o solo não pode ser
muito seco ou muito húmido/ que o solo sem pedras é a única forma de prevenir
batatas deformadas".
ISG//
MP
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