José
Manuel Pureza*
"Human
life is now confronted with a range of new conditions - wide famines,
ecological catastrophe and genocide - that constitute victims who have no
social relations capable of mobilizing their salvation, and who, as a result,
make na ethic of universal moral obligation among strangers a necessity for the
future of life on the planet." - Michael
Ignatieff, The Warrior’s Honnor, 1999
Todas
as lutas emancipatórias são, à partida, combates pelo impossível. A luta dos
timorenses pela sua autodeterminação foi claramente uma dessas lutas.
Em
texto datado de 1979, Noam Chomsky afirmava que "o povo de Timor Leste
está entre as vítimas da actual fase da ideologia e prática do Ocidente. (...)
Os cidadãos das democracias ocidentais podem dar preferência ao desvio do
olhar, permitindo aos seus governos contribuirem decisivamente para o massacre
que continuará enquanto a Indonésia tentar reduzir o que resta de Timor e do
seu povo à submissão. Mas também têm o poder de pôr fim a estes crimes
horrendos" (Kohen e Taylor, 1979: 11). O referendo organizado pelas Nações
Unidas em Agosto de 1999, pelo qual a esmagadora maioria dos timorenses votou
pela independência, foi uma prova manifesta de que, por vezes, o impossível
acontece.
Esta
inversão do que parecia ser um destino fatal desse povo insignificante coloca
questões fundamentais ao modo dominante de leitura da realidade internacional.
Acima de todas sobressaem duas perguntas: constitui o caso de Timor Leste uma
prova de uma mudança de tal maneira essencial no papel desempenhado pelo
internacionalismo solidário que a projecta como elemento fundamental de uma
globalização contra-hegemónica? Terá o triunfo desta luta
"impossível" pela autodeterminação constituído uma ruptura com
algumas heranças consolidadas, designadamente com um senso comum realista?
Para
responder a estas questões, analisarei em primeiro lugar o conteúdo dessas
heranças hegemónicas e das propostas contra-hegemónicas veiculadas por
discursos políticos e jurídicos alternativos. De seguida, e à luz deste quadro
teórico, analisarei algumas especificidades do caso de Timor Leste indagando
nele sinais de uma tal mudança de paradigmas.
1.
Vestefália e pós-Vestefália
Richard
Falk sublinhou que a actual fase da ordem internacional é de algum modo
simétrica da que ficou simbolizada pelos Tratados de Paz de Vestefália de 1648.
"No século XVII completou-se um longo processo de transição histórica de
uma dominação central não-territorial para uma descentralização territorial,
enquanto que o actual processo de transição parece levar-nos de volta a uma
dominação central não-territorial" (1989: 5). Para Falk, a crise
contemporânea do sistema político e institucional fragmentado e a emergência de
novas formas transnacionais de autoridade são testemunhos desta simetria.
Os
tratados de paz de Vestefália simbolizam, no plano jurídico, a transição de "uma
amálgama cosmopolita de lealdades e obediências sobrepostas, de
jurisdições geograficamente entrelaçadas e de enclaves políticos"
para "um sistema de estados soberanos territorialmente delimitados, cada
qual dotado de uma administração central e arrogando-se o monopólio do uso
legítimo da violência" (Camilleri & Falk, 1992: 12-14).
Nesse
sentido, Vestefália transportou um princípio de descentralização para a ordem
institucional internacional, com uma dimensão interna e uma dimensão externa.
Em primeiro lugar, Vestefália significou a definição de uma estrutura para cada
comunidade nacional. Uma tal dinâmica assentou na diferenciação entre esfera
pública e esfera privada e materializou-se na gradual monopolização do uso
legítimo da força pelo poder central. Esta inédita autonomização da autoridade
pública relativamente à esfera privada esteve no centro de um entendimento
territorialmente expansivo da soberania. A propriedade privada foi deixando de
estar sujeita aos vínculos e limites jurídicos medievais e veio a ser
conformada como o poder de excluir outros do uso de um recurso. O território,
base física da soberania, percebia-se como uma espécie de macro-propriedade:
"o Estado consolidou-se como objecto de um direito real do rei"
(Camilleri & Falk, 1992: 15), isto é, algo sobre o qual o soberano exercia
a sua jurisdição pessoal e territorial, e que poderia ser ampliado em virtude
de conquista e colonização.
O
lado externo da herança de Vestefália é o reverso desta comunidade nacional
imaginada. A soberania, conceptualizada por Bodin como summa in cives ac subditos
legibusque potestas, implicou um contraste radical entre interno e
externo: monopólio da força pelo Estado dentro do seu território, legitimação
do uso da força entre Estados; ordem e relações contratualizadas no interior do
Estado, anarquia e guerra de todos contra todos no exterior. Para a imaginação
de uma comunidade nacional, foi necessário que a comunidade internacional
fosse, por definição inimaginável (Pureza, 1998: 35). Neste contexto, a herança
essencial de Vestefália foi "a de uma forma específica de espaço político:
formações territoriais diferenciadas, desgarradas e mutuamente excluentes"
(Ruggie, 1998: 172).
Estamos
presentemente no centro de uma ruptura com o estatocentrismo vestefaliano. A
chamada era pós-vestefaliana é, no essencial, uma fortíssima dinâmica (de
retorno?) rumo a uma direcção política desterritorializada de carácter global.
Todavia, esta superação da identificação tradicional da política com as
fronteiras do Estado é atravessada por importantes contradições e apresenta-se,
portanto, diante duma bifurcação estratégica fundamental.
Por
um lado, está a tomar corpo uma nova combinação hegemónica entre os princípios
do estado e do mercado. A globalização neoliberal está a ser levada a cabo
através dos "Estados de serviço", cujo papel principal é garantir a
liberalização, a privatização, a desregulação económica, a compressão dos
serviços sociais, a redução das despesas públicas, o reforço da disciplina
fiscal, o favorecimento da liberdade de circulação de capitais, o controle estreito
sobre a força de trabalho organizada, as reduções da tributação e o
repatriamento ilimitado de dividendos da actividade económica (Falk, 1999:1). Por
isso, não é exacta a acusação de esvaziamento de capacidade regulatória desses
Estados, porque o que se verifica é antes uma reorientação das suas prioridades
e uma destruição institucional selectivamente conduzida.
Haverá
uma alternativa contra-hegemónica a esta leitura da ordem pós-vestefaliana? Em
meu entender, essa alternativa existe e arranca de uma nova combinação
estratégica entre uma ruptura radical com o estatocentrismo e uma reconstrução
do papel dos Estados-nação. A reinvenção do internacionalismo solidário tem que
ser guiada pelo ethos de uma democracia cosmopolita. A metáfora do cidadão-peregrino, empregue
por Richard Falk (1995: 95; 1999: 153) é porventura a melhor antecipação dessa
reinvenção. Ela vem reforçar a necessidade de recentrar a nossa noção de
cidadania, dando primazia ao alcance indiscriminado da responsabilidade
partilhada sobre a autonomia individual e da uma contextualizada ética de
cuidado sobre uma ética de princípios abstractos.
A
par do cidadão-peregrino, o Estado militante é a outra
metáfora de uma construção contra-hegemónica da era pós-Vestefália. Com ela, eu
pretendo ilustrar a transfiguração do conceito tradicional de soberania na
oferta do Estado como suporte de lutas emancipatórias fundamentais que têm
lugar na sociedade civil global e que são conduzidas por redes de ONG's
transnacionais. O Estado militante deve ser encarado como o rosto
pós-moderno do Estado solidário moderno: "Os Estados solidários
pós-modernos aliam-se a forças progressistas em diferentes cenários específicos
e recusam-se a avalizar a disciplina do capital global nos casos em que isso
determine danos sociais, ambientais e espirituais" (Falk, 1999: 6).
2.
Positivismo e pós-positivismo
A
imagem vestefaliana do mundo foi transformada em senso comum pelo discurso
realista das Relações Internacionais. O realismo é uma forma de positivismo,
pois que assenta numa dicotomia absoluta entre factos e valores, atribuindo uma
total primazia àqueles sobre estes — um "viés para uma explanação
objectiva", de acordo com Frost (1996: 12).
Dois
corolários fundamentais resultam desta identificação de princípio das
exigências normativas com as regularidades empíricas. O primeiro é a
compreensão da política internacional como pura política de poder. O realismo
reduziu todas as representações intelectuais da política internacional a
procedimentos pragmáticos, orientados para a solução de problemas, o que supõe
que se trata de um pensamento que aceita o mundo tal como é (e visa mantê-lo
assim), e que vê as relações sociais e de poder como condicionamentos prévios e
intocáveis. Para os realistas, o sistema internacional reduz-se a uma luta
entre diferentes "interesses nacionais": esta verdadeira obsessão
estatocêntrica do realismo condena o mundo a permanecer num eterno estado de
natureza em que cada Estado vive em permanente suspeição face aos demais e
desprovido de quaisquer formas institucionais de monopolização do uso da força
("ni législateur, ni juge ni gendarme").
O
segundo corolário é uma consequência do primeiro: toda a regulação é
auto-regulação (Starr, 1995) e não há lugar para um autêntico Direito
Internacional. Esta negação de carácter genuinamente jurídico às normas
internacionais resulta da crença positivista na unicidade da normatividade
jurídica. O positivismo só consegue ver normas jurídicas naquelas que emanam do
Estado, o qual, em última análise, se serve do seu jus imperium para
garantir a sua aplicação efectiva. O único tipo de discurso jurídico
reconhecível pelo realismo é aquilo a que Austin chamou "a ordem do
soberano", quer dizer, um sistema de proibições e sanções apoiado na
coerção do Estado.
Porque
não dispõe desta garantia, o Direito Internacional é confinado à função de base
meramente contratual entre os Estados - um bric-a-brac, segundo
Combacau (1986: 86) - cuja única utilidade é a legitimação da prática
inter-estatal. Neste sentido, Martti Koskenniemi (1989: 40) afirma a primazia
de um "padrão ascendente de justificação"na perspectiva
positivista-realista do Direito Internacional: com efeito, a ordem e a
obrigação no domínio internacional são vistas como sendo fundamentadas no
comportamento dos Estados e não na justiça, nos interesses comuns ou em outros
quaisquer valores".
Chegados
aqui, impõe-se uma pergunta: qual o impacte das transformações ocorridas na
ordem vestefaliana sobre esta dupla herança do realismo-positivismo? Acima de
tudo, a emergência de um horizonte pós-vestefaliano arrasta consigo a percepção
de um dualismo no Direito Internacional: a política de poder e a efectividade
empírica não são tudo. O Direito Internacional também se funda num "padrão
descendente de justificação", isto é, "sobre a justiça, os interesses
comuns, o progresso, a natureza da comunidade mundial ou outras ideias
semelhantes que se tomam por anteriores ou superiores ao comportamento, vontade
ou interesse dos Estados" (Koskenniemi, 1989: 40-41). Isto significa que a
transição para um Direito Internacional pós-vestefaliano se opera com base em
dois elementos fundamentais: um peso relativo maior das dimensões utópicas (ou
contra-hegemónicas) do discurso normativo internacional (visível
fundamentalmente em áreas como o património comum da humanidade ou os direitos
humanos e dos povos), e um corte radical com uma visão estreita da
efectividade, feito a partir dum reforço do valor da eficácia simbólica do
Direito Internacional. Para lá de um sistema tradicional de regras, proibições
e sanções, há um Direito Internacional pós-vestefaliano, cuja característica
fundamental é a centralidade da emancipação quer de indivíduos quer de grupos,
nações e da humanidade como um todo.
3.
Timor Leste: uma luta pós-positivista
O
caso de Timor Leste pode ser perspectivado, antes do mais, como uma mudança
operada nas formulações hegemónicas dadas a três tensões fundamentais: entre
efectividade e legitimidade, entre geopolítica e legalidade e entre eficiência
e multilateralismo. Um primeiro legado crucial da luta de Timor Leste pela
independência é que ela acrescentou algo aos elementos contra-hegemónicos
destas três tensões: à legitimidade contra a efectividade, à legalidade contra
a geopolítica, ao multilateralismo contra a eficiência.
3.1.
Efectividade versus legitimidade
Esta
primeira tensão foi vivida em dois contextos históricos diferentes.
O
primeiro foi o regime colonial português. Timor Leste tornou-se uma colónia
portuguesa desde princípios do século XVI. Tratados celebrados em 1859 e 1904
fixaram as fronteiras entre as partes oriental e ocidental da ilha, ficando
esta última sob soberania holandesa e, após a respectiva independência em 1949,
sob soberania indonésia. Tendo-se tornado membro da Organização das Nações
Unidas em 1955, Portugal foi confrontado com a questão da aplicação da Carta
aos seus territórios coloniais (Galvão Teles, 1997: 195). O regime colonialista
português reagiu então contra o estabelecimento de um novo princípio de
legitimidade internacional alicerçado na crescente dinâmica da ONU em favor da
autodeterminação dos povos colonizados (recorde-se que a Assembleia Geral tinha
adoptado resoluções fundamentais neste sentido desde, pelo menos, 1960). O
argumento aduzido pelo governo português foi o de supostos direitos históricos,
sobre os quais fundamentou a recusa de apresentar à comunidade internacional
relatórios periódicos sobre a evolução desses territórios para a
autodeterminação.
"O
argumento invocado em sua defesa pelo governo português (...) era o de que
Portugal era um Estado multi-continental ao qual não se aplicava logicamente o
capítulo XI da Carta das Nações Unidas, que reconhece o direito à
autodeterminação dos povos colonizados. Por outro lado, a Indonésia, com a sua
política de não alinhamento, tinha defendido sempre o direito à
autodeterminação do povo de Timor Leste e renunciado a qualquer reivindicação
sobre aquele território" (Escarameia, 1993: 47).
Vendo-se
numa luta contra a História, o governo português tentou usar a efectividade e o
tempo como seus aliados preferenciais.
A
revolução democrática ocorrida em Portugal em 1974 determinou uma mudança
radical nesta estratégia. Portugal não só adoptou a doutrina legal das Nações
Unidas como abraçou de modo claro a ideologia do serviço público internacional
como um elemento central da sua nova identidade no sistema internacional. A
importância crucial do anti-colonialismo na resistência ao fascismo em Portugal
ajuda a explicar a naturalidade com que esta viragem foi assumida como nuclear
do novo regime democrático. Concretamente em relação a Timor Leste, Portugal
adoptou legislação em Julho de 1975 (a Lei 7/75) que consagrava um programa de
descolonização para aquele território, a exercer através de consulta popular e
deixando em aberto, como determina a legalidade onusiana, as três hipóteses:
independênca, integração ou associação livre a um terceiro Estado. Deste modo,
a partir de então Portugal reivindicou para si uma legitimidade genuína e
fresca para exigir o cumprimento do princípio da autodeterminação onde quer que
fosse objecto de violação e, por maioria de razão, no que respeita às suas
ex-colónias.
O
segundo contexto histórico em que esta tensão entre efectividade e legitimidade
foi experimentada pelos timorenses foi o da Guerra Fria. A confrontação bipolar
foi responsável pela aceitação da invasão e ocupação indonésia do território e
do genocídio do povo timorense. De facto, a ilegitimidade do comportamento
indonésio em Timor Leste foi aceite como um preço razoável a pagar pela
protecção dos interesses ocidentais na região: a luta contra o comunismo no
Sudeste Asiático, o trânsito de submarinos nucleares entre o Pacífico e o Índico,
as reservas petrolíferas do Mar de Timor, a defesa da minoria católica no maior
país muçulmano do mundo, etc. (Barbedo de Magalhães, 1992: 23; Kohen e Taylor,
1979: 95). Em grande medida, oadormecimento da questão de Timor Leste na agenda
do Conselho de Segurança desde 1976 - ou seja, a sua ausência da agenda activa
do Conselho desde a aprovação da Resolução 389/76, em Abril desse ano - é uma
expressão caba desta aceitação. De facto, esta "arte de não decidir"
(Monteiro, 2001: 7) do Conselho, durante 23 anos, foi o resultado de um
consenso claro entre as cinco grandes potências, membros permanentes do
Conselho de Segurança, acerca do interesse estratégico de uma potência regional
como a Indonésia. Os Estados Unidos sinalizaram formalmente essa prioridade atribuída
ao interesse estratégico logo em 1976, ao absterem-se na votação da referida
resolução ("um veto prático", assim o qualifica António Monteiro). A
percepção da importância geopolítica da Indonésia no combate à expansão do
comunismo na região - lembremos o relevo adquirido, justamente em meados dos
anos setenta, pela chamada "teoria do dominó" na interpretação das
dinâmicas dos blocos no teatro da Guerra Fria - conferiu-lhe o apoio claro dos
Estados Unidos, do Reino Unido e da França. A República Popular da China também
não concebia qualquer iniciativa de afrontamento de um tão importante aliado
asiático, sobretudo se isso significasse apoiar a pretensão do ex-colonizador
europeu. Por fim, a própria URSS, apesar de o regime de Shart ter resultado da queda
violenta do poder de Sukarno, apoiado no Partido Comunista, veio a pautar o seu
comportamento pelo pragmatismo da realpolitik: "A Indonésia era (é)
demasiadamente importante no mundo em desenvolvimento para poder eternizar-se
como ‘inimigo a abater’" (Ibidem: 8).
Este
esquecimento táctico da legitimidade pela comunidade internacional permitiu à
Indonésia sentir-se livre para usar a efectividade dos factos consumados como
seu principal argumento. Benedict Anderson (2000: 5) ilustra esta utilização da
efectividade pelo ocupante, narrando uma confidência que lhe foi feita por um
agente dos serviços secretos indonésios, seu amigo pessoal, em vésperas da
invasão: "Não te preocupes. Em poucas semanas tudo estará resolvido (...).
Além disso, o tempo está do nosso lado." Para Anderson, "a
expectativa internacional era a de que, mais tarde ou mais cedo, a resistência
dos timorenses orientais seria destruída e o mundo aceitaria a absorção da
antiga colónia portuguesa pela Indonésia, como aceitara, duas décadas antes, a
integração de Goa na Índia de Nehru." Por isso, a pergunta essencial que a
questão de Timor Leste coloca a este autor é a seguinte: "quando e por que
razão o tempo se passou do lado indonésio para o dos timorenses?" (Ibidem:
6). Assim, e apesar da reiterada condenação da invasão e ocupação em distintas
resoluções da Assembleia Geral e do Conselho de Segurança das Nações Unidas, o
governo de Suharto recorreu sempre em última análise ao argumento da suposta
aquiescência da comunidade internacional para com a transformação de Timor
Leste em 27ª província indonésia.
Em
oposição a esta estratégia, a luta dos timorenses pela autodeterminação sempre
se fundou no papel central da legitimidade nas relações internacionais.
Princípios e valores como o da proibição do uso da força, do não reconhecimento
da ocupação como título legítimo de soberania, da ilegalidade da ocupação
colonial ou do direito à autodeterminação foram os eixos fundamentais da
resistência internacional e da mobilização dos aliados diplomáticos e não
governamentais.
Portugal,
as Nações Unidas e os movimentos de solidariedade internacional sempre
argumentaram que o território mantinha o estatuto jurídico de território não
autónomo, nos termos do Capítulo XI da Carta das Nações Unidas, continuando
Portugal vinculado às funções de potência administrante até que os timorenses
pudessem exercer um genuíno acto de autodeterminação. Esta posição de princípio
opunha-se a um (frágil) argumento indonésio, segundo o qual a ocupação
corresponder afinal a um pedido nesse sentido formulado por uma assembleia
popular, composta por dois delegados eleitos por cada um dos treze distritos de
Timor Leste (à excepção de Díli, com três delegados) e dez líderes nomeados
pelo governo provisório. Também na desmontagem deste cenário fantasioso a
invocação da legitimidade jurídica contra o fait accomplis teve
grande relevo. A grande maioria dos autores (Clark, 1980; Hannikainen, 1988;
Cassese, 1995) sempre denunciou quer o carácter não representativo dessa
assembleia quer o incumprimento flagrante do procedimento estabelecido pela
Declaração sobre a Concessão da Independência aos Povos e Países Coloniais
(Resolução 1514 (XV), de 1960), na parte em que esta impõe que a integração
seja "resultado da livre expressão dos desejos dos habitantes do
território, agindo com total conhecimento da mudança do seu estatuto, e sendo
os seus desejos expressos através de um processo consciente e democrático,
conduzido de modo imparcial e baseado no sufrágio universal." Deve, no
entanto, notar-se que, apesar desta orientação constante da literatura jurídica
internacional, a prática política e diplomática não se mostrou por ela
influenciada, antes se inclinando diante dos ditames da realpolitik. E, nesse
contexto, a insistência de Portugal na defesa da autodeterminação foi
frequentemente considerada como um factor de rigidez que obstava à obtenção de
uma solução política que aliviasse o sofrimento dos timorenses (Neves, 2000:
29). Estas teses encontraram apoios em destacados dirigentes políticos portugueses
e chegaram mesmo a nortear, de facto, a condução diplomática do processo ao
longo da década de oitenta, como se analisará adiante.
É
também este combate entre legitimidade e efectividade que explica o contraste
entre silêncio e mediatização como utensílios principais das estratégias
da Indonésia e da resistência, respectivamente: o silêncio foi considerado como
condição necessária da consolidação de um facto consumado, e motivou o
encerramento do território a jornalistas, ONG's e à assistência humanitária até
1988-89, como se se tratasse de um gigantesco campo de concentração; ao invés,
os media, enquanto instrumento de potenciação da consciencialização
pública acerca da situação em Timor Leste, foram adoptados como uma prioridade
absoluta quer pela resistência interna, quer pelos movimentos de solidariedade
internacional. De uma forma clara, ambos os lados procuraram traduzir
estrategicamente a noção de que o conhecimento é uma forma de (não) poder.
3.2.
Geopolítica versus legalidade
Timor
Leste deve ser considerado como um daqueles "hard cases", a estudar
como testes à validade de uma tese sobre a realidade internacional. Na verdade,
o caso de Timor veio pôr em causa o modo normalmente muito superficial como se
estabelece o contraste entre pragmatismo e idealismo nas relações
internacionais. E, nesse sentido, ele veio provar que o cinismo realista -
baseado na pura crueza da geopolítica, expressa quer por um padrão de
indiferença para com o sofrimento humano quer por um sobre-intervencionismo - e
o legalismo angélico - que sobrevaloriza o papel constitutivo das obrigações
formais - não são as únicas vias de interpretação do fluir da História (Falk,
1998: 81).
A realpolitik e
a política de poder são as categorias fundamentais para o senso comum realista,
como vimos. Num tal contexto, um "povo supérfluo" que habita metade
de uma ilha com cerca de 19.000 km2, em condições de extrema pobreza, não pode
aspirar a ser objecto de um "caso". No lado oposto, a leitura
puramente legalista da política internacional tende a vincar uma representação
formal da realidade (legal/ilegal) sem atender às dimensões factuais e às
realidades do poder. Para este outro entendimento, Timor Leste constituiria um
evidente caso "a preto-e-branco", de um manifesto incumprimento dos
princípios básicos do Direito Internacional.
Ora,
não há nenhum conflito insanável entre respeito pelo Direito Internacional e
interesses geopolíticos. Falk esclareceu-o do seguinte modo:
"Quando
o Direito Internacional confirma a vontade política dos Estados dominantes, ele
é invocado para conferir suporte a iniciativas políticas globais (...) Mas
quando uma interpretação razoável do Direito Internacional colide com as
políticas preferidas por esses Estados em matérias prioritárias, então o
Direito tenderá a ser marginalizado pelos seus violadores (...)" (1998:
58).
Timor
Leste veio introduzir alguma novidade neste entendimento tradicional: um uso
alternativo das normas internacionais e dos factores geopolíticos. O Direito
Internacional desempenhou um papel de primordial importância na emancipação do
povo timorense. Quer as regras fundamentais, como as já referidas, quer o
direito derivado (designadamente as resoluções das Nações Unidas aprovadas
entre 1975 e 1982) impuseram um congelamento das pretensões indonésias e
mantiveram viva a tese de que Portugal se mantinha como potência administrante
até que tivesse lugar um acto genuíno de autodeterminação. As normas
internacionais relativas à proibição da agressão, da anexação e da ocupação
militar, os direitos humanos fundamentais e a soberania permanente sobre os
recursos naturais tiveram uma influência decisiva na denúncia da situação
(IPJET, 1995). Quer a resistência quer os movimentos de solidariedade usaram
essas normas como instrumentos imprescindíveis para a convocação da comunidade
internacional a uma posição coerente com a sua retórica sobre princípios e
decência. Aliás, convirá sublinhar que a argumentação normativa não veio a ser
dispersa e ocasional mas a constituir um verdadeiro discurso global sobre Timor
Leste. Como foi demonstrado por Paula Escarameia (1993: 95), a procura de
legitimidade jurídica foi uma preocupação permanente da ONU na abordagem do
caso. As resoluções sobre a questão invocam, por isso, implícita ou mesmo
explicitamente, outros documentos (em especial declarações fundamentais ou
resoluções anteriores) hierarquicamente superiores, o que provocou o efeito de
cada decisão se associar a outra, considerada "mais fundamental" e
conferindo, deste modo, uma legitimidade acrescida a cada passo jurídico
andado.
Não
obstante esta importância da dimensão jurídica do caso, a verdade é que os
factores geopolíticos, num sentido amplo, foram essenciais não só para a
estratégia indonésia, como já foi referido, como também para a transformação da
fatalidade em liberdade para os timorenses. A adesão de Portugal à Comunidade
Europeia em 1986, o "efeito CNN" do massacre de Santa Cruz (1991) e a
atribuição do Prémio Nobel da Paz a Ramos Horta e ao Bispo Belo (1996), bem
como o efeito combinado da transição democrática na Indonésia com a profunda
crise económica dos dragões asiáticos desde 1997 constituíram oportunidades
históricas únicas, sem as quais nenhum progresso jurídico e político teria
ocorrido. Como sublinha António Monteiro,
"como
noutros casos similares, só a remoção do principal obstáculo a qualquer solução
diferente da mera consagração do status quo, isto é, a queda do ditador
Suharto, abriu perspectivas reais para uma solução daquele tipo. Mesmo assim, a
rapidez com que se chegou à possibilidade de um (embora disfarçado) referendo
sobre a independência não deixou de surpreender. Tal só foi possível devido à
súbita reviravolta do sucessor de Suharto nesse sentido." (2001: 5)
O
símbolo maior desse uso alternativo dos factores geopolíticos terá sido,
porventura, a pressão feita, em Agosto-Setembro de 1999, sobre as principais
potências e sobre as organizações financeiras internacionais (como o Fundo
Monetário Internacional ou o Banco Mundial) para que obtivessem - usando os
seus meios costumeiros, designadamente a condicionalidade aos empréstimos - o
fim da destruição e da matança generalizada pelos militares e milicianos
pró-indonésios após o anúncio público dos resultados do referendo. Nas palavras
sintéticas de John Taylor,
"foi
o conjunto de jogadas para suspender as vendas de armas, associado à ameaça de
sanções económicas específicas, dirigidas à reestruturação bancária e às
dívidas dos grandes grupos que em última análise parece ter persuadido Habibie,
o seu gabinete e a maioria das suas principais personalidades militares a
aceitarem a entrada da força de manutenção de paz." (1999: 222)
3.3.
Eficiência versus multilateralismo
O
legado do caso de Timor Leste engloba também uma crítica das recentes
tendências para o desinvestimento institucional transnacional em favor de um
alegado primado da eficiência, tendência particularmente visível no domínio de
um novo intervencionismo internacional.
As
mais recentes transformações geopolíticas, os novos desafios à segurança e a
força impetuosa da globalização neoliberal parecem ter hipotecado por inteiro
as expectativas de consolidação multilateral das aberturas políticas e
conceptuais condensadas na Agenda para a Paz de Boutros-Ghali. Aquilo
que prometia ser uma devolução à ONU do papel de protagonista na prevenção,
gestão e solução dos conflitos internacionais acabou per se revelar uma
desacreditação política, financeira e operacional da organização universal, que
se converte, cada vez mais, num afastamento do monopólio onusiano do uso
legítimo da força em favor de uma lógica - e de uma prática - de pendor
assumidamente unilateral (Debiel, 2000). O debate em torno do pretenso direito
de intervenção humanitária é uma prova clara desta tendência (Lyons &
Mastanduno, 1995). As posições favoráveis a um tal direito invocam a falência
do princípio clássico da não ingerência e a sua gradual substituição por um
direito, tipicamente pós-vestefaliano, de forçar o cumprimento dos direitos
humanos básicos onde quer que ocorram violações grosseiras e em larga escala, recorrendo
à força se necessário. Há realmente algo de verdadeiramente novo nesta
sugestão? Richard Falk (1998: 87) exprimiu essa dúvida perguntando: "não
será que estamos face a uma mudança eminentemente discursiva, de tal forma que
foi a linguagem o que fundamentalmente terá mudado e não o comportamento,
retendo os principais Estados, ao nível do comportamento concreto, uma opção
discricionária ao uso da força?" Esta suspeição faz todo o sentido ante a
dinâmica objectiva criada após o fim da Guerra Fria: em vez de uma consagração
da acção colectiva e institucionalizada, os anos 90 evidenciaram "que a
ONU será usada (...) apenas quando geopoliticamente útil, fundamentalmente para
prestar um serviço de branqueamento, isto é, para fornecer um mandato que legitime
aquilo que é, afinal, no essencial, um uso unilateral da força ou, na melhor
das hipóteses, por uma coligação de Estados" (Ibidem: 66).
Ora,
deve recordar-se que esta selectividade foi frequentes vezes confirmada durante
a ocupação indonésia de Timor Leste. E deve igualmente sublinhar-se que, apenas
alguns meses antes da destruição e do massacre dramáticos que se seguiram aos
resultados do referendo de Setembro de 1999, tinha sido dado um passo de
crucial importância no sentido unilateralista: a intervenção da NATO na
ex-Jugoslávia, sem qualquer tipo de mandato do Conselho de Segurança.
Neste
preciso contexto , o procedimento específico adoptado para a criação de uma
força internacional de imposição da paz (INTERFET) (Resolução 1264 do Conselho
de Segurança, aprovada em 15 de Setembro de 1999) devolveu a primazia efectiva
às estruturas de decisão multilaterais, desviando-se assim da tendência
dominante neste tempo.
O
preço político desta opção (ou terá sido imposição?) pelos cânones
multilaterais institucionalizados foi indiscutivelmente muito elevado - embora
se tenha sempre que acrescentar, como lembra Fernando Neves (2000: 38) que
"o custo da ocupação indonésia foi, e continuaria a ser, muito mais
insuportável: a aniquilação de todo um povo". Na linha da solução dúbia
plasmada nos Acordos de Nova Iorque, de responsabilização exclusiva da potência
invasora pela garantia de condições de segurança antes e depois do referendo, o
Conselho de Segurança não quis reagir com a firmeza mínima exigível à chacina
pessoal e material perpetrada pelos militares indonésios e pelos para-militares
em todo o território de Timor Leste na sequência do anúncio dos resultados da
consulta popular. Pelo contrário, o Conselho de Segurança não só enveredou por
procedimentos formais pouco transparentes - privilegiando as consultas
informais aos debates públicos (Monteiro, 2001: 19) - como insistiu sempre em
não pôr em causa a autoridade de Jacarta, optando sempre por tentativas,
bilaterais ou mais colectivas, de convencer as autoridades indonésias a agir,
evitando até ao último momento a adopção das medidas fortes de intervenção que
se impunham perante a contínua degradação da situação no terreno, e que vinham
sendo preconizadas não só por Portugal mas também pela Austrália e mesmo pelo
próprio Secretário-Geral das Nações Unidas, Kofi Annan. Prova-o a declaração de
um porta-voz da ONU, citado pelo Times de 2 de Setembro de 1999:
"Esta é uma operação em solo indonésio, onde a Indonésia é totalmente
responsável pela segurança. Não há qualquer intenção neste momento de exigir
uma mudança dessa situação. Pelo contrário, o que estamos a fazer é pressionar
a Indonésia para se esforçar mais por garantir a segurança do território."
Na
apaixonante narrativa dos "dias de brasa" da questão timorense nas
Nações Unidas, António Monteiro revela, não surpreendentemente, que esta
obstinada persistência de uma atitude de tolerância em relação a Jacarta lhe
havia sido antecipada por um alto funcionário da Missão Permanente dos Estados
Unidos junto a ONU quando questionado sobre o que fariam Washington e o
Conselho de Segurança caso se viesse a concretizar um banho de sangue em Timor
Leste: "Nothing, I’m afraid." (2001: 27). Esta confidência veio a
revelar-se tragicamente premonitória do que sucedeu em 1999. Parece hoje
incontestável que, ao mesmo tempo que a chefia do Estado indonésio subscrevia
os Acordos de Nova Iorque, facções do exército começavam a aplicar - através de
grupos de milícias como a Besi Merah Putih ("Ferro Vermelho e
Branco"), a Aitarak ("Espinho"), ou a Darah Merah ("Sangue
Vermelho"), coordenadas por uma estrutura de comando chefiada por João
Tavares - o plano secreto Operasi Sapu Jagad ("Operação Limpeza
Global"), cujos objectivos "eram os de descrever Timor Leste como um
território devastado pela guerra civil e, desta forma, incapaz de autogestão,
sabotar o referendo e eliminar os membros locais do movimento a favor da independência."
(Taylor, 1999: 204). É igualmente incontestável que a política de destruição e
matança sistemáticas postas em marcha por ocasião do referendo do Agosto de
1999 foi facilitada, quer pelo regime de segurança estabelecido nos Acordos de
Nova Iorque, quer pela fragilidade da UNAMET (241 membros do pessoal
internacional das Nações Unidas, 420 voluntários (funcionários eleitorais), 280
polícias civis e 50 militares oficiais de ligação).
A
afluência de 98.5 por cento dos recenseados à consulta popular de 30 de Agosto
e o resultado absolutamente inequívoco (78.5 por cento a favor da
independência) desencadearam, como é bem conhecido, a eliminação de
independentistas e de sectores intermédios e superiores da sociedade timorense,
ataques a elementos e instalações da Igreja católica, destruição de arquivos e
documentação, deportação forçada de milhares de timorenses, pilhagens e
destruições em larga escala de propriedades, concretizando assim a ameaça do
sub-chefe das milícias pró-integração, Eurico Guterres: a registar-se uma
vitória da independência, Timor Leste tornar-se-ia "um mar de fogo."
Face
a um cenário como este, em nada diferente de quadros de limpeza étnica como os
do Kosovo ou do Ruanda, a opção por uma intervenção fora do contexto
institucional multilateral, designadamente através de uma força multinacional
regional exterior às Nações Unidas, teria seguido os precedentes
unilateralistas verificados ao longo da década de noventa. Por isso, a herança
do caso de Timor Leste pode ser vista como encorajadora de "uma abordagem
mais constitucional das actividades do Conselho de Segurança, abrandando assim
a tendência actual para ver o seu desempenho como uma espécie de carimbo
geopolítico" (Falk, 1998: 68). Deve, aliás, sublinhar-se que, para lá da
dimensão formal ou procedimental, a aprovação da constituição da INTERFET é
igualmente relevante no plano substantivo, pois que ela veio a consubstanciar
não uma operação de manutenção da paz de tipo tradicional (peace keeping), nem
uma força de imposição de paz de figurino igualmente clássico (peace enforcing),
antes se assumindo como um marco precursor de novas tarefas de nation
building a assumir pela comunidade internacional organizada em situações
de reconstrução social pós-bélica.
4.
Timor Leste: uma luta pós-vestefaliana
A
luta dos timorenses pela autodeterminação deve ser percebida como um precedente
importante de um combate pós-vestefaliano. Por duas razões principais: em
primeiro lugar, Timor Leste permaneceu na agenda internacional graças à
mobilização dos movimentos de solidariedade, muito mais do que devido às
iniciativas diplomáticas dos Estados e das organizações intergovernamentais —
neste sentido, Timor LoroSae é um produto da cidadania peregrina; em segundo
lugar, o papel desempenhado por Portugal, a antiga potência colonizadora, como
aliado do povo timorense e dos movimentos de solidariedade, e, bem assim, a
articulação entre a diplomacia portuguesa e esses actores não governamentais em
áreas cruciais (diplomacia dos direitos humanos, organizações multilaterais
regionais, Comité de Descolonização das Nações Unidas) suscitam a questão da
aplicabilidade da metáfora do Estado militante a Portugal neste caso concreto.
4.1.
O papel da cidadania peregrina
Não
há nada de inédito no uso de instrumentos não governamentais ou no
estabelecimento de alianças tácticas com entidades não governamentais para
suporte dos interesses dos Estados. Portugal teve, aliás, experiências
anteriores neste domínio: por exemplo, o uso do lobby atlantista contra a
administração Kennedy acerca da política colonial portuguesa. Além disso, a
estrutura do movimento de solidariedade no caso de Timor Leste fez-se eco de
referências internacionalistas anteriores, como o movimento anti-apartheid ou
mesmo experiências frentistas de movimentos de solidariedade anti-fascista ou
de assistência humanitária, e do modo como estes movimentos investiram na
influência crescente dos media.
Mas,
acima destas continuidades, destaca-se uma diferença fundamental: no caso de
Timor Leste, os movimentos de solidariedade não exerceram uma função meramente
defensiva. Ao invés, tornaram-se o mais importante dos aliados da Resistência,
controlando, em conjugação com os líderes timorenses, o fluxo e os conteúdos da
informação passada para a agenda dos meios de comunicação internacionais e para
as redes informação mundiais.
A
trajectória do movimento de solidariedade com Timor Leste apresenta fases
distintas.
Ao
longo da primeira dessas fases, até fins da década de 80, o movimento de
solidariedade não governamental caracterizou-se pela sua fragilidade,
confrontado que estava com a indiferença dos governos e dos políticos e
reduzido a alguns comités locais ou mesmo a iniciativas individuais. Na
Austrália, por exemplo, a militância individual — como a de James Dunn, Robert
Wesley-Smith ou David Scott - foi absolutamente decisiva durante esse período
para manter a questão viva na sociedade e no Estado australianos. Além da
Austrália, também o movimento de solidariedade português se revelou de
importância crucial durante essa década, sobretudo em virtude da sua função de
intermediação entre a resistência no território e o exterior, o que, desde
logo, impediu o governo português de aceitar qualquer tipo de acordo com as
autoridades indonésias e de se demitir das suas responsabilidades enquanto
potência administrante (cfr. secção 4.2 adiante). Na primeira linha desses
movimentos em Portugal, após a formação de diversos comités de solidariedade
com a RTDL (República Democrática de Timor Leste, proclamada unilateralmente pela
Fretilin em Novembro de 1975), emergiu a CDPM (Comissão para os Direitos do
Povo Maubere). A sua formação teve um objectivo operacional concreto: organizar
uma sessão do Tribunal Permanente dos Povos, que teve lugar em Lisboa em Junho
de 1980. A sua dirigente histórica, Luísa Teotónio Pereira, pertencia aos
quadros do CIDAC (Centro de Informação e Documentação Anti-Colonial). Durante
os anos 80, a CDPM serviu de plataforma de informação privilegiada (ou mesmo
frequentemente exclusiva), levando o conhecimento dos factos ocorridos no
território, entretanto silenciado pelo isolamento imposto pelo invasor,
aos forainternacionais mais importantes, como as Nações Unidas e as suas
agências especializadas e as organizações de defesa dos direitos humanos. Uma
pequena ilustração dos efeitos deste papel: numa das rondas negociais entre
Portugal e a Indonésia realizada sob os auspícios do Secretário-Geral das
Nações Unidas, o governo português, usando informação proporcionada pela CDPM,
apresentou uma lista detalhada de presos políticos timorenses, causando vivo
embaraço nos representantes da Indonésia, cuja documentação era muito menos
pormenorizada do que a portuguesa...
Um
segundo grupo de apoiantes iniciais da causa timorense foi o das igrejas
cristãs, com especial destaque para a Igreja Católica. A Igreja Católica
assumiu-se como pólo de uma multiplicidade de estruturas de ajuda material e
humanitária aos timorenses. Tendo permanecido como a única instituição oficial
local que defendia a especificidade cultural dos timorenses e como pilar da
resistência quotidiana à ocupação, a Igreja tornou-se em verdadeira e assumida
estrutura organizativa da resistência política. "A Igreja, os padres e os
religiosos são os três factores que ameaçam a integração de Timor Leste na Indonésia",
afirmava peremptoriamente o major Prabowo, genro de Suharto e um dos
comandantes militares da ocupação (cit. in Taylor, 1993: 300) . Na verdade,
apesar da repetida ambiguidade do Vaticano - que, embora tenha mantido a
administração apostólica de Díli fora da jurisdição da conferência episcopal
indonésia, sempre evidenciou um claro juízo de prioridade conferido à protecção
da comunidade católica indonésia, se necessário em detrimento dos católicos
timorenses - a Igreja timorense manteve-se sempre na primeira linha da denúncia
da violação dos direitos humanos, da exigência de um referendo de
autodeterminação e de preservação da identidade do povo. Assim, o movimento de
solidariedade internacional teve uma dimensão católica (ou cristã), fundada na solidariedade
cristã e no compromisso de grupos católicos progressistas no combate pelos
direitos humanos. Essa componente de matriz religiosa incluiu pequenos grupos
ad hoc (como "A Paz é Possível em Timor Leste", de Lisboa),
instituições católicas nacionais (como o Instituto Católico de Relações
Internacionais, do Reino Unido) e movimentos católicos internacionais
institucionalizados (como o Pax Christi, o Catholic Relief Service ou as
Comissões Justiça e Paz, por exemplo).
Finalmente,
uma terceira componente do movimento de solidariedade nesta primeira fase foi a
dos movimentos de luta contra a ditadura na Indonésia. Tendo a denúncia pública
das violações maciças dos direitos humanos como uma das suas prioridades, estes
grupos viram na situação vivida em Timor Leste uma expressão concreta da
natureza militarista e ditatorial do Estado indonésio. No topo deste último
grupo encontramos a TAPOL, um movimento de campanha permanente pela libertação
dos presos políticos indonésios (tapol é uma contracção de tahanan
politik, preso político). A TAPOL esteve na origem de movimentos de
solidariedade especializados que emergiram na segunda fase (de 1991 em diante),
como os "Parlamentares por Timor Leste", criados por Lord Eric
Avebury e Ann Clwyd, apoiantes da TAPOL. Mais recentemente, também a Solidamor
adquiriu grande relevo neste terceiro grupo.
A
segunda fase de evolução do movimento de solidariedade começou em fins da
década de oitenta. O ponto de partida foi o massacre de Santa Cruz, cuja
cobertura noticiosa pelos meios de comunicação internacional pode ser
considerada como um ponto de viragem na internacionalização do caso. Esta
segunda fase teve três características fundamentais. A primeira foi uma maior
importância atribuída à relação entre a luta dos timorenses pela independência
e a luta dos indonésios pela democracia. Este factor projectou o movimento de
solidariedade para a Ásia, nomeadamente para países como as Filipinas ou o
Japão. A segunda característica foi o alargamento do movimento, com especial
incidência nos Estados Unidos, na Austrália e no Japão. Quer os grupos
generalistas quer os grupos de solidariedade especializada optaram
estrategicamente pela alargamento das suas redes a membros de todo o mundo. Um
exemplo: a Plataforma Internacional de Juristas por Timor Leste, fundada em
Lisboa em Novembro de 1991, era dirigida por um conselho executivo
internacional com membros da Holanda, Portugal, Estados Unidos, Austrália,
Índia, Moçambique e Brasil. A terceira característica foi a dinâmica de
coordenação entre os grupos de solidariedade. Deste modo surgiram diferentes
federações de ONG's centradas sobre o processo de descolonização de Timor
Leste, a defesa dos direitos humanos e outros aspectos da vida do povo
timorense no território e na diáspora. Dois importantes exemplos desta
tendência são a Federação Internacional por Timor Leste (IFET) e a Coligação
Ásia-Pacífico por Timor Leste (APCET), ela própria membro da IFET. Em 1999, a
IFET tinha 36 grupos membros de 21 países diferentes como a Austrália, o Canadá,
Fiji, Suécia, Portugal e os Estados Unidos. A APCET tinha 23 membros de 15
diferentes países daquela região. Este esforço de coordenação desenvolveu-se em
simultâneo com o aprofundamento da aposta na criação e alargamento de redes de
solidariedade, quer de alcance internacional quer no interior de certos Estados
(por exemplo, a East Timor Action Network / US) e cujo alcance global se
consolidou pelo uso crescente do correio electrónico e da internet. Deve
sublinhar-se que esta rápida evolução do movimento de solidariedade a partir de
1991, foi de algum modo antecipada por uma mudança política fundamental na
resistência timorense, operada entre 1983 e 1987. Tal mudança consistiu na
substituição progressiva de um entendimento conflitual das relações entre as
diferentes facções e partidos timorenses (como a Fretilin e a UDT) pela
formação de uma frente nacionalista unitária (a Convergência Nacionalista, mais
tarde CNRT, Conselho Nacional de Resistência Timorense), o fim da Fretilin como
partido marxista-leninista e a emergência de Xanana Gusmão como líder
consensual. Esta mudança possibilitou um apoio acrescido em todo o mundo, quer
nos canais diplomáticos ou de Estados quer nas instituições multilaterais.
4.2.
Portugal: um Estado militante?
Pode
um Estado comprometer-se com uma luta não governamental de emancipação? Pode um
governo ser agente de solidariedade internacional com uma causa que não esteja
minimamente relacionada com o interesse geopolítico estratégico, quer dizer,
motivado unicamente por uma solidariedade genuína? Têm os pequenos Estados
"vantagens comparativas" nestes domínios quando comparados com as
grandes potências?
O
papel desempenhado por Portugal no movimento de solidariedade internacional com
Timor Leste foi fundamental. Para o melhor e para o pior, Portugal foi o
veículo diplomático da vontade dos timorenses em se autodeterminarem, como,
aliás, lhe competia enquanto potência administrante. Desde o momento da invasão
em 1975 até ao referendo de 1999, Portugal envolveu-se nos esforços diplomáticos
para ser encontrada uma solução justa e juridicamente válida do caso,
denunciando a ocupação, as violações grosseiras e em larga escala dos direitos
humanos fundamentais, e a invalidade da apropriação dos recursos naturais de
Timor Leste. Em bom rigor, porém, o efectivo envolvimento do Estado Português
foi extremamente apagado até 1982, ziguezagueante nos anos imediatamente
seguintes, acentuando-se, enfim, progressivamente a partir de 1986. Um dos mais
reputados estudiosos do caso timorense, John Taylor, sentencia com
frontalidade:
"globalmente,
a política externa portuguesa ofereceu muito pouco, muito tarde. As acções
internacionais levadas a cabo pelo governo para dar publicidade à situação de
Timor Leste foram, geralmente, ou declarações de princípio, ou pequenos
espinhos no flanco da diplomacia indonésia. (...) Nos anos que se seguiram
imediatamente à invasão, o governo português tentou abdicar da responsabilidade
em nome da conveniência política ao tentar enterrar o caso de Timor Leste.
Quando isto falhou, tentou procurar uma ‘solução honrosa’. Na tentativa de o
conseguir, no entanto, as suas acções passadas, a sua contraditória aproximação
e a sua ‘flexibilidade’ nas áreas-chave como a autodeterminação e as eleições,
colocaram-lhe severos limites à eficácia da sua política de defender a ‘honra’
nacional." (1993: 329)
Os
principais responsáveis por essa evolução foram tanto a resistência dos
timorenses no território como o movimento de solidariedade internacional. Esta
evolução pode ser faseada em quatro etapas sucessivas.
A
primeira decorreu entre 1975 e 1982. Podemos designá-la por fase do "multilateralismo
como único caminho". A posição oficial adoptada por Portugal nesses
anos foi a de que o caso de Timor Leste não opunha Portugal à Indonésia, mas
sim a Indonésia à comunidade internacional; sendo assim, a ONU devia ser
confrontada com as suas responsabilidades no caso. A verdade é que os
verdadeiros protagonistas da causa timorense no terreno diplomático vieram a
ser os países africanos de língua portuguesa (com especial destaque para
Moçambique), que tomaram a seu cargo a manutenção da questão na agenda de
diferentes organizações intergovernamentais. José Ramos-Horta (1994: 180) é bem
explícito a esse propósito: "Os cinco países africanos de expressão
oficial portuguesa (PALOPS) foram a partir de 1975 a retaguarda diplomática da
nossa luta. Apesar das suas próprias deficiências e limitações de ordem
material, nunca sonegaram apoio à FRETILIN (...). Se não fosse esse apoio, a
questão de Timor Leste teria sido riscada da agenda da ONU poucos anos após a
invasão." E chega mesmo a sublinhar que "entre 1976 e 1982, a Missão
Portuguesa junto da ONU não tinha qualquer input a elaboração dos projectos de
resolução sobre Timor Leste (...). A delegação portuguesa era uma observadora
desinteressada, neutra. Pelo menos, assim parecia dado o seu alheamento da
nossa luta nos corredores da ONU." (218). O único "sobressalto"
nesta passividade portuguesa terá sido protagonizado por Maria de Lourdes
Pintasilgo na sua intervenção como Primeira-Ministra na Assembleia Geral e,
mais tarde, como assessora especial do Presidente da República para a questão
de Timor Leste.
De
1975 a 1981, as resoluções aprovadas pela Assembleia Geral das Nações Unidas
sobre Timor Leste evidenciaram uma crescente falta de apoio político
internacional. Aliás, logo a votação da resolução de 1975 suscitou fortes
razões para pessimismo: tendo sido requerida a votação separada do parágrafo
operativo que "deplora energicamente a intervenção das forças armadas
indonésias no Timor português", o resultado foi de 59 votos a favor, 11
votos contra e 55 abstenções, estas últimas provenientes do bloco árabe e dos
países ocidentais, o que, na opinião de Ramos-Horta (1994: 184), foi
interpretado em Jacarta "como uma ‘carte blanche’ para prosseguir o
processo de anexação de Timor Leste." Tudo isso significa que a
multilateralização foi meramente passiva, dado que Portugal nunca demonstrou
capacidades reais para influenciar a evolução das decisões nas Nações Unidas.
Participante
activo na frente onusiana desta luta, António Monteiro retrata esta fase do
seguinte modo:
"os
interesses estavam do lado da Indonésia, que tinha os membros mais influentes
da comunidade internacional prontos a preservar uma política utilitarista de
salvaguarda de proventos políticos e económicos; os princípios, esses estavam
do lado de Portugal (e de Timor Leste) (...). Tratava-se de um ‘equilíbrio
estável’ que não punha nenhum ónus à comunidade internacional. Como acontece
frequentemente em questões deste género, o primeiro que tomasse a iniciativa de
romper esse equilíbrio podia ser ‘punido’. Só isso, aliás, justificava a
táctica de Jacarta: ir-se defendendo no voto de uma resolução anual, procurando
entretanto aliciar novos aliados que permitissem, a prazo, fazer cair a questão
no esquecimento." (2001: 10)
Neste
contexto de perda e de consequente inviabilidade de ressuscitar a questão na
agenda do Conselho de Segurança - e afastada a hipótese de pedido de um parecer
consultivo ao Tribunal Internacional de Justiça sobre a legalidade da
Declaração de Balibó como suposto acto de autodeterminação, alegadamente em
virtude de uma tal iniciativa contradizer o pressuposto de partida de Portugal
para continuar a afirmar-se como potência administrante sem margem para
qualquer dúvida (Horta, 1994: 227) - a fixação de um mandato de mediação ao
Secretário-Geral das Nações Unidas pela Resolução 37/30, de 1982 - que se ficou
a dever à iniciativa diplomática do então Representante Permanente de Portugal junto
da ONU, Vasco Futscher Pereira, animado pela recente eleição do seu amigo
pessoal Javier Perez de Cuellar para Secretário-Geral (Monteiro, 2001: 9) -
pode ser considerada um marco crucial na batalha jurídica e política
internacional (Neves, 2000: 32).
A
segunda fase, entre 1982 e 1986, poderia ter como lema "vamos
conversar", tendo como característica principal a convicção
portuguesa de que toda a prioridade deveria ser dada à salvaguarda de um núcleo
minimalista de interesses: respeito pelos direitos fundamentais dos indivíduos
em Timor Leste, presença da cultura portuguesa no território e identidade
religiosa dos timorenses. Passado um momento fugaz de intensa mobilização
diplomática, traduzida na circulação de mais de 40 embaixadores e enviados especiais
por vários países (Horta, 1994: 219), em vista da aprovação, conseguida no
limite, da Resolução 37/30, o discurso oficial de Portugal durante esse período
foi o de que, estando a decorrer conversações humanitárias entre Portugal e a
Indonésia, nenhuma iniciativa externa deveria perturbar a sua realização. Por
isso, um acordo com a Indonésia e o Secretário-Geral determinou que, a partir
de 1983, a questão de Timor Leste tivesse deixado de ser agendada para debate
na IVª Comissão da Assembleia Geral das Nações Unidas. A consequência desta
atitude foi uma efectiva tendência para legitimar o status quo criado
pela Indonésia no território.
Entretanto,
havia ocorrido uma significativa vitória do movimento de solidariedade não
governamental: a criação em Portugal, em 1981, da Comissão Parlamentar para
Acompanhamento da Situação em Timor Leste. Uma visita dos membros dessa
Comissão à Austrália e às Nações Unidas ajudou a tornar pública a falta de
cumprimento, por Portugal, de algumas das suas obrigações fundamentais enquanto
potência administrante de Timor Leste, incluindo quaisquer iniciativas de apoio
à causa da autodeterminação e até a simples elaboração de relatórios periódicos
sobre a situação no território para os órgãos competentes das Nações Unidas. O ano
de 1986 foi decisivo no que toca àquele progressivo escorregar da posição
portuguesa para a aceitação da soberania de facto da Indonésia sobre
Timor Leste. Em Março, o Secretário-Geral adjunto Reffendin Ahmed apresentou um
plano segundo o qual Portugal retiraria Timor Leste da lista de territórios
não-autónomos em troca de um conjunto de garantias indonésias relativamente aos
pontos relevantes acima referidos. Em Julho este plano foi discutido e
rejeitado pelo Conselho de Estado português, não sem que se tenham manifestado
posições divergentes a esse respeito. Aliás, não foi este o primeiro momento em
que, ao mais alto nível do Estado português, se preparou uma solução de
abandono da questão. Já antes, em 1983, circulara no âmbito do Governo um
memorando que recomendava o envio a Timor Leste de uma missão parlamentar que,
invocando posteriormente o visível desenvolvimento económico realizado pelo
ocupante, recomendaria a normalização de relações diplomáticas com a Indonésia
e a aceitação da anexação de Timor Leste (Horta, 1994: 277). Com a viragem
ocorrida na política portuguesa sobre Timor a partir de 1986, a hipótese de
realização de uma visita parlamentar passou a guiar-se por objectivos bem
diferentes até se vir a gorar em 1991.
A
terceira fase (1986-1997) teve como referência principal o desdobramento
funcional de Portugal. O país tinha-se tornado membro da Comunidade
Europeia em 1986 e, sob pressão do movimento de solidariedade não
governamental, essa nova condição foi usada para a internacionalização
sustentada do problema de Timor. Benedict Anderson (2000: 6) afirma a este
respeito que "o tempo começou a mudar de lado [dos indonésios para os
timorenses] quando Portugal foi admitido na Comunidade Europeia." De
facto, até então só a cortesia, segundo este autor, tinha determinado que as
potências europeias se coibissem de reconhecer de jure a soberania
indonésia sobre Timor Leste. A fragilidade dessa motivação permitiu, aliás, que
esses mesmos países europeus, com o Reino Unido à cabeça, tenham mantido
importantíssimos fluxos de exportação de armamento sofisticado para a Indonésia
e canalizado para esse país assinaláveis investimentos. Por isso,
"tratava-se de saber por quanto tempo continuariam a ter essa
cortesia." Ora, a entrada para a Comunidade Europeia deu a Portugal a
possibilidade jurídica de vetar permanentemente qualquer iniciativa de
reconhecimento europeu da anexação. Virtualidade formal muito importante,
sobretudo se perspectivada no contexto de "impaciência e incompreensão"
dos restantes Estados membros ou mesmo de "hostilidade activa" da
Comissão Europeia às posições portuguesas (Neves, 2000: 32). Uma significativa
expressão disso foi a Posição Comum assumida pela União Europeia em 1996,
reconhecendo que qualquer solução deveria respeitar "os interesses e as
aspirações legítimas do povo timorense." Esta posição comum, importante em
si mesma por agregar os países europeus numa visão oficial ‘única do problema
timorense, constituiu igualmente a base de actuação política e negocial da
União, enquanto tal, em fora internacionais como as Nações Unidas
(Neves, 2000: 34).
A
diplomacia portuguesa - entretanto objecto de assinalável renovação, com a
nomeação de Rui Quartin-Santos para a coordenação de todo o dossier de Timor,
de Fernando Reino para Representante Permanente em Nova Iorque, assessorado por
Ana Gomes, Francisco Ribeiro Teles e José Júlio Pereira Gomes, a manutenção em
Genebra de Costa Lobo e a coordenação dos negócios políticos por António
Monteiro - foi compelida por alguns factos muito importantes a investir
crescentemente nessa estratégia de internacionalização: a visita do Papa ao
território (1989), o massacre de Santa Cruz (1991), a ocupação das instalações
da Embaixada dos Estados Unidos em Jacarta por estudantes timorenses das
universidades de Java e de Bali por ocasião da chegada do Presidente Clinton
para a cimeira anual da APEC (1995) e a atribuição do Prémio Nobel da Paz ao
Bispo Belo e a Ramos Horta (1996) foram encarados como desafios a uma aliança
estratégica reforçada com as ONG's. Os resultados concretos dessa percepção da
diplomacia portuguesa traduziram-se num apoio material e logístico a algumas
iniciativas das ONG's e da actividade diplomática da Resistência e numa melhor
articulação entre diplomacia e movimento de solidariedade (por exemplo nas
sessões da Comissão de Direitos Humanos da ONU em Genebra).
Este
necessário reforço do carácter militante da diplomacia portuguesa não
correspondeu apenas à crescente afirmação internacional da causa independentista
propiciada pela Resistência e pela solidariedade internacional. Ele teve
igualmente como contra-parte uma intensificação do controle e da repressão no
território pelas forças indonésias. A captura e posterior julgamento-fantoche
de Xanana Gusmão, em 1992, constituiu um primeiro passo numa operação -
ulteriormente apelidada de Operasi Tuntas ("Acabem com
Eles") - de identificação e "limpeza" dos independentistas,
conduzidas por grupos de "ninjas" e pelas forças especiais do
exército indonésio (Kopassus) (Taylor, 1999: 197). Os anos que se seguiram ao
massacre de Santa Cruz foram, pois, de radicalização de posições e é nesse
quadro que deve ser entendida a intensificação do trabalho diplomático por
Portugal.
Por
fim, a última etapa é a do "fim do dragão". A gravíssima
crise financeira com que se confrontou a Indonésia desde 1997 e as contradições
inerentes ao início de um processo de transição para a democracia foram
aproveitadas pela diplomacia portuguesa como oportunidades históricas únicas
para se conseguir amarrar o Estado indonésio a um compromisso jurídico, sob os
auspícios das Nações Unidas, quer dizer, com o aval e a supervisão da
comunidade internacional. Tal como escreveu Barbedo de Magalhães, "Timor
Leste tornou-se na encruzilhada fundamental da transição indonésia" (1999:
174).
Esta
importância estratégica de Timor Leste no processo de mudança política na
Indonésia ganhou visibilidade quer em iniciativas das autoridades cimeiras
daquele país quer na condução do dossier no interior das Nações Unidas. A
chefia indonésia, ciente dessa importância, viu-se compelida a dar o
"passo impossível": em Janeiro de 1999, o Presidente Habibie,
confrontado com a rejeição internacional da sua proposta de um regime de
autonomia especial para Timor no seio da nação indonésia, anunciou a
disponibilidade dos invasores para retirar. "Provarei ao mundo que posso
dar uma importante contribuição para a paz mundial (...). Rolará como uma bola
de neve e ninguém a poderá parar." Mais clara foi ainda a conselheira
presidencial para a política externa, Dewi Fortuna Anwar: "Porque é que
temos de manter Timor Leste se isso nos está a prejudicar e os timorenses estão
infelizes com a situação?" (Taylor, 1999: 201). Por sua vez, as
conversações entre Portugal e a Indonésia sob os auspícios do Secretário-Geral
das Nações Unidas, que haviam estado confinadas, desde 1983, a pontuais medidas
de restauração da confiança entre as partes (designadamente a realização de
operações humanitárias pelo Comité Internacional da Cruz Vermelha, o repatriamento
de alguns portugueses, antigos funcionários da administração colonial, que
ainda permaneciam em Timor, e o reagrupamento familiar dos que já haviam saído
do território), conheceram um claro impulso a partir de 1997, com a eleição de
Kofi Annan para Secretário-Geral da ONU. Tendo anunciado, desde a primeira
hora, a sua disposição de assumir uma posição pró-activa na questão, Annan
materializou-a rapidamente com a nomeação de um representante pessoal do
Secretário-Geral para a questão de Timor Leste (Jasheed Marker, do Paquistão).
A abertura de secções de interesses de Portugal e Indonésia em representações
diplomáticas de países terceiros e a dinâmica negocial preparatória do que
viriam a ser os Acordos de Nova Iorque deram mais expressão a esta sensível
mutação do cenário. E foi já no horizonte de uma rápida transição para a
independência que, no início de 1999, o Secretário-Geral Kofi Annan criou um
grupo de contacto para supervisionar o processo de mediação, constituído pelos
Estados Unidos, Japão, Austrália, Nova Zelândia, Reino Unido e Canadá.
Os
Acordos de Nova Iorque, assinados em 5 de Maio de 1999, têm sido objecto de uma
avaliação que está longe de ser consensual. Acima de tudo, é sublinhada a
fragilidade (e ilegitimidade) da atribuição à Indonésia do exclusivo da
garantia da segurança durante e após a consulta popular. Apesar das óbvias
reservas que me suscita esta solução, acompanho Patrícia Galvão Teles na
opinião de que "talvez este compromisso tenha sido o único possível na
altura", sendo os acordos "a peça fundamental que permitiu aos
timorenses exercerem o seu direito à autodeterminação. Mesmo que o preço a
pagar tenha sido bastante elevado" (1999: 393). Neste mesmo sentido vai,
aliás, a posição de Ian Martin, Representante Especial do Secretário-Geral para
a Consulta Popular em Timor Leste e Chefe da Missão das Nações Unidas em Timor
Leste (UNAMET):
"Não
há dúvida de que o povo de Timor Leste teria sido poupado a mais um dos ciclos
de violência que marcaram a sua história, se a consulta popular tivesse tido
lugar com uma presença militar internacional mandatada para garantir a sua
segurança, e os acordos têm sido criticados por entregarem a responsabilidade
pela segurança à polícia indonésia. Mas também não há dúvidas de que qualquer tentativa
para insistir numa presença internacional de segurança significaria a não
realização do acordo. Uma posição mais forte, por parte de governos chave, na
questão de Timor Leste, talvez pudesse, com o tempo, mudar essa realidade, mas
os negociadores trabalharam com a realidade existente no princípio de 1999. O
que é notável não é que os acordos não incluíssem melhores garantias de
segurança, mas que pudessem ter sido concluídos: a outra realidade era que a
vontade do Presidente Habibie para aceitar a opção pela independência tinha
escasso apoio, dentro e fora do seu próprio governo, e ainda menos nas TNI
[forças armadas indonésias]" (2000: 28).
Uma
vez mais, Portugal assumiu esse acordo como o resultado possível, na confiança
de que, em qualquer caso, a comunidade internacional agiria para obrigar ao seu
cumprimento e para garantir a aplicação efectiva dos resultados do referendo.
Os massacres que se seguiram puseram em causa a boa fé deste entendimento. E,
mais do que nunca até então, a articulação entre os três pilares principais
deste combate — a Resistência timorense, a diplomacia portuguesa e o movimento
de solidariedade internacional — foi sujeita a um teste decisivo. O certo é que
a pujança inacreditável que essa aliança então atingiu foi projectada
globalmente pelos canais típicos da aldeia global: os media, as redes
de informação, a sociedade civil global, etc.. Talvez melhor do que qualquer
elaboração teórica possa um episódio autêntico e divertido desse Setembro de
1999 resumir metaforicamente que foi esse tríptico (Resistência, Portugal, ONG)
o que verdadeiramente salvou Timor. Na maior manifestação organizada diante da
Embaixada dos Estados Unidos em Lisboa, o embaixador norte-americano garantiu
aos representantes dos manifestantes que os Estados Unidos estavam prontos a
assumir as suas responsabilidades em favor do povo timorense. A razão era a
imensa mobilização da opinião pública um pouco por todo o mundo. Aquela
manifestação era, segundo ele, emblemática do que afirmava, pois que a tinha visto...
no noticiário da CNN (e não através das janelas da Embaixada naquele mesmo
momento e naquele mesmo local)...
Epílogo:
quem foi salvo, afinal?
Após
vinte e quatro anos de opressão e martírio, o povo de Timor Leste pôde, enfim,
exercer o seu direito à autodeterminação. Até à consumação formal da
independência, Timor mantém o estatuto de território não autónomo, tendo
Portugal (autoridade de jure) e a Indonésia (autoridade de facto)
transferido para a ONU - que, para o efeito, criou a Administração Transitória
das Nações Unidas em Timor Leste: UNTAET) - o poder de administrar o
território. A UNTAET abrange três áreas de competências: governo e
administração pública, reabilitação humanitária e de emergência e militar.
Estas áreas consubstanciam um mandato muito amplo, que inclui a manutenção da
segurança e da ordem pública, a criação de uma administração efectiva, o
fornecimento e a coordenação de ajuda humanitária, a promoção de capacidades de
autogoverno e a criação de condições para um desenvolvimento sustentado (Galvão
Teles, 1999: 420).
Juridicamente,
as Nações Unidas detêm apenas poderes não soberanos de administração, tal como
sucedeu no Irião Ocidental (UNTEA), no Camboja (UNTAC), na Eslavónia Oriental
(UNTAES) ou no Kosovo (UNMIK). Mas a peculiaridade do contributo de Timor Leste
para o património histórico da solidariedade internacional reside também nas
interrogações que a amplitude deste mandato das Nações Unidas tem suscitado,
designadamente no que se refere a saber se estaremos ou não perante um
precedente crucial no desempenho de novas funções pela ONU no mundo
contemporâneo.
Significativamente,
James Traub qualifica a operação atribuída à UNTAET como um exercício de colonialismo
benevolente (2000: 75). O que vem corroborar, neste caso concreto, a hipótese
lançada provocatoriamente por Edward Luttwak (2000: 67) de que, na grande
maioria dos casos, as intervenções multilaterais realizadas sob a égide da ONU
para pôr termo a práticas de violação sistemática e em larga escala de direitos
humanos fundamentais "não podem ser meros raids ou visitas-relâmpago à
la Somália", antes "têm de dar lugar ao estabelecimento de
protectorados das Nações Unidas com capacidade para erguer infra-estruturas,
educar as populações e desempenhar todas as funções próprias de um governo
civil. E, por uma questão de necessidade, a duração destes protectorados deverá
ser medida em décadas e não em anos."
Timor
pode ser assim perspectivado como um ensaio, em pequena escala, do exercício
destas novas funções da ONU que combinam singularmente motivações
pós-vestefalianas (a defesa universal dos direitos humanos) com horizontes
tipicamente vestefalianos (a construção de Estados-nação a partir de situações de
caos administrativo e civil).
O
que suscita, desde logo, dois tipos de reservas e inquietações. Em primeiro
lugar, por mais benevolente que se arrogue, a atitude colonial está nos
antípodas da prática emancipatória. Testemunhos entretanto conhecidos de responsáveis
da UNTAET confirmam esta reserva. Assim, Pedro Bacelar de Vasconcelos, que
integrou o Departamento de Assuntos Políticos, Constitucionais e Eleitorais da
UNTAET assinala que a "visão vagamente neocolonial que resulta do conúbio
entre o politicamente correcto académico americano e a atitude de Indiana Jones
em cenários exóticos redunda numa grande incapacidade para compreender os
timorenses, uma grande inaptidão para lidar com eles e compreender o que é
decisivo nesta última etapa de transição para a independência" (entrevista
ao "Público", 26.12.2000). E outro funcionário superior da UNTAET,
Jarat Chopra, denuncia que "a ONU, no terreno, funciona como se estivesse
em Nova Iorque. (...) impedi-los [aos timorenses] de entrar na administração
foi uma estratégia metódica, de funcionários que queriam concentrar o máximo de
oficiais da ONU nas suas equipas, para aumentar o seu pode dentro do sistema.
Porque pensam que, se falharem numa missão, isso vai prejudicar o seu
currículo. Quando isso se torna a única razão de actuar, começa a ditar a
história dos acontecimentos".
A
esta primeira sombra junta-se uma outra. O sensível aumento, e prolongamento no
tempo, das tarefas a desempenhar pelas Nações Unidas tornam-na ainda mas refém
dos financiamentos dos Estados e, portanto, da respectiva vontade política em
se comprometerem em gastos tendencialmente improdutivos e de longo prazo. Ora,
como é óbvio, estão assim criadas condições para que, uma vez formalizada a
independência, os principais Estados contribuintes para o orçamento da ONU - os
quais têm reiteradamente expresso a sua indisponibilidade para se
responsabilizarem pelo "negócio" de construir países - venham
reclamar que a actuação da organização passe a ser suportada por contribuições
voluntárias pagas por (outros) Estados-membros interessados (Austrália e
Portugal, em especial) e não mais pelo orçamento geral.
Sobre
este fundo desenha-se um quadro preocupante. "Há pouca capacidade
construída. Haverá um vácuo entre o que os timorenses vão precisar e o que a
Missão lhes deixa. (...) a ONU vai convocar as eleições sem ter criado
capacidade em Timor - e depois vai-se embora, deixando o desastre atrás de
si".
Quem
se salvou, afinal?
Com
as luzes e as sombras de todos os processos históricos, a luta dos timorenses
pela sua autodeterminação acrescentou elementos preciosos à História como
narrativa de emancipação. E, porque é de emancipação que se trata, esse
acrescento foi inicialmente entendido como impossível, depois como inviável,
até se tornar, enfim, realizado. Ou melhor, até começar a romper. Porque a
emancipação nunca é um momento mas sim um processo. Xanana Gusmão, líder da
Resistência timorense, é porta-voz dessa ambição sempre inacabada:
"O
povo de Timor Leste não desejava apenas a independência, não lutava apenas por
ter uma bandeira, um hino, um presidente e um governo próprio. O povo timorense
alimentava outros sonhos que sabia só poderem ser realizados com a conquista da
independência. Só a independência o tornaria sujeito activo do processo do seu
próprio desenvolvimento, tanto no plano colectivo como no das liberdades
individuais e dos direitos de cidadania" (2000: 39).
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Nota:
Este documento representa uma versão não editada do texto final. Para
referência ou citação recorra à publicação impressa
*Publicado
em http://www.ces.uc.pt/emancipa/research/pt/ft/timor.html
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