segunda-feira, 31 de agosto de 2015

Macau: A VERDADE ESTÁ À SOLTA, COLHENDO O QUE SE SEMEIA


PAUL CHAN WAI CHI  - Hoje Macau, opinião

Durante a Dinastia Song do Sul da China, o imperador Gaozong e o seu chanceler Qin Hui conspiraram juntos para remover Yue Fei, o principal general militar na altura. Qin chegou mesmo a discutir os detalhes do plano em casa com a sua mulher. Fruto dessas discussões, o casal chegou a um consenso que “libertar o tigre para que este regressasse às montanhas viria a trazer uma série interminável de problemas no futuro”. Assim, a única alternativa viável era a morte de Yue Fei. Alegasse que, depois do falecimento de Qin Hui, este visitou a mulher durante um sonho para a informar que o seu complot havia sido exposto, o que a assustou de tal modo que chegou mesmo a causar a sua morte.

A verdade vem sempre ao de cima, mais tarde ou mais cedo. Mesmo quando todos se preocupam apenas com os seus próprios assuntos, não se pode assumir que a sociedade se encontra em paz. Se nós não nos interessarmos pelo local em que vivemos, este sítio acaba inevitavelmente por nos partir o coração. A quarta legislatura do Governo da RAEM encontra-se em funções há menos de um ano, mas mesmo assim os problemas sociais têm-se multiplicado, e com uma ferocidade tal que mais se assemelham a uma erupção vulcânica. O recente incidente envolvendo a troca de terrenos destinados à Fábrica de Panchões Iec Long, que se encontra agora sob a investigação do Comissariado Contra a Corrupção, é um dos muitos casos que preocupam as gentes de Macau.

A troca de lotes verificada neste incidente foi realizada de acordo com todos os requerimentos legais durante o mandato de Ao Man Long como Secretário para as Obras Públicas e Transportes. A maior incongruência foi a troca de um lote pequeno por um bem maior, situação considerada fora do normal e isenta de qualquer razão ou lógica. Não nos podemos porém esquecer de uma situação semelhante que envolveu o empresário da construção civil Lam Wai. Na altura, ninguém levantou nenhuma objecção acerca do caso de Lam e todo o processo decorreu dentro da legalidade. Mas, quando Ao Man Long foi processado por aceitar subornos, a opinião pública, e em especialmente a deputada Kwan Tsui Hang, exigiram que o sucessor de Ao nas Obras Públicas investigasse as concessões de terras realizadas durante a era de Ao como Secretário para as Obras Públicas e Transportes, de forma a garantir que nenhum problema tivesse ficado por resolver. Mas, no final de contas, o sucessor de Ao pouco ou nada fez a este respeito, e o caso da Fábrica de Panchões Iec Long nem sequer fazia parte da lista de transacções sob investigação.

Lembro-me que, na altura, alguns deputados insistiram frequentemente para que o Governo divulgasse quanta permuta de terrenos havia sido autorizada, e que fornecesse esclarecimentos sobre o rumor de que parte dos cinco aterros do Plano Urbanístico teria de ser usada como compensação pelas permutas anteriores. Mas, como já é habitual, a resposta do Governo foi pouco esclarecedora. Apenas quando Raimundo do Rosário assumiu a pasta de Secretário para as Obras Públicas e Transportes é que as autoridades se dignaram a fornecer respostas mais detalhadas às perguntas colocadas pelos deputados em questão. Veio-se então a saber que, em relação à troca de terrenos relativa à Fábrica de Panchões Iec Long, esta permuta só podia ter ocorrido de acordo com os respectivos procedimentos legais. Mas, apenas por estar de acordo com a lei não significa necessariamente que a troca tenha sido justificada. Mas temos também que reconhecer que esta prática se encontra tão enraizada que acabou mesmo por se tornar numa característica distinta de negócios “à Macau”. Também no caso do terreno “Tou Fa Kón”, localizado perto do Mercado Vermelho, assim como no do projecto La Scala, situado em frente ao Aeroporto Internacional de Macau, os respectivos terrenos foram concedidos de uma forma legal. Mas isso não tira importância ou influência às várias partes interessadas que se movimentaram nos bastidores de todo este processo.

O Secretário Raimundo do Rosário chegou aliás a pedir ao Comissariado contra a Corrupção que abrisse um inquérito relativo à troca de terrenos da Fábrica de Panchões Iec Long, o que acabou por ser uma medida muito inteligente. Por um lado, este dirigente evitou desta forma vir a ser considerado responsável pelos casos melindrosos que constituem o legado da antiga Administração. E, daí para a frente, todas as futuras decisões relativas à Fábrica de Panchões Iec Long teriam de ser aprovadas pelo Comissariado contra a Corrupção. Por outro lado, esta decisão vem também evitar que Raimundo se torne no alvo de ataques por parte do público caso se venha a verificar qualquer outro problema no que toca a concessões de terrenos, especialmente aquelas envolvendo lotes de grandes dimensões. Caso os nossos leitores estejam a par dos desenvolvimentos do caso da Fábrica de Panchões Iec Long, sabem certamente que o proprietário do terreno em questão, assim como os seus parceiros, mantém uma relação muito íntima com os círculos empresariais e políticos do território. Tanto Chui Sai On como Raimundo do Rosário são responsáveis de resolver ou gerir qualquer problema que tenha sido deixado pela Administração anterior. Podemos então afirmar que ambos estão agora a colher aquilo que semearam no passado. Mas, neste momento, seria talvez vantajoso perguntar a nós próprios, o que levou Macau a se tornar naquilo que é hoje? 

Será que o conceito de “um país, dois sistemas” falhou? Ou será então que as gentes de Macau são incapazes de gerir o território por si próprias? Na verdade, o princípio “um país, dois sistemas” acabou por dar a Macau, como também a Hong Kong e a Taiwan, um alto nível de tolerância política. Se os tumultos de 4 de Junho não tivessem ocorrido na China, a onde de reformas políticas que decorria no país não teria nunca terminado, e as situação política teria despoletado em algo verdadeiramente agradável.

Em Macau, por sua vez, não há falta de talentos, apenas uma escassez de talentos políticos que estejam dispostos a se dedicar à cidade por completo. Existem sim muitos que proclamam ser patrióticos e ainda que amam a RAEM, mas na realidade estão dispostos a roubar para proveito próprio ou então de forma a enriquecer as associações ou organizações a que pertencem. Mas Macau nunca teve falta de indivíduos interessados em representar as massas, nem tão pouco de organizações destinadas a supervisionar o desempenho do Governo. Todavia, estas associações são incompetentes e colocam ênfase na manutenção do status quo, ou da harmonia social, ao invés de exigir a responsabillização dos funcionários públicos. Assim, e com uma administração que carece de supervisão apropriada, a porta encontra-se aberta a todo o tipo de conduta desordeira. Outro problema que temos de superar é a necessidade que os nossos campeões da democracia sentem em ser foco das atenções, assumindo este problema um carácter de veneração semi-religiosa. Na verdade, estes indivíduos encontram-se tão divorciados da realidade que se julgam transformados numa espécie de ídolo, que porém existe apenas em nome. Além disso, recusam-se a partilhar o poder com outros, devido ao medo que têm de perder o seu status social, e parecem ser ignorantes da necessidade que todos nós temos em gerir adequadamente o tempo. Tudo isto culmina numa espécie de ecologia política caracterizada por pessoas que se dedicam a enriquecer através da política. Ao mesmo tempo, deparamo-nos com uma sociedade cada vez mais populista, em que a maioria dos seus cidadãos denota uma nítida falta de visão estratégica, além de uma marcada incapacidade em assumir uma conduta altruísta. Se as coisas se mantiverem assim, o que pode ser feito? Esta questão merece sem dúvida a nossa atenção.

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