Nos
17 anos desde que Timor-Leste ganhou a independência, o governo australiano
apropriou-se de cerca de 5 mil milhões de dólares em petróleo e gás, dinheiro
que pertence ao seu pobre vizinho.
John
Pilger*
Documentos
secretos encontrados nos Arquivos Nacionais Australianos fornecem um relance
sobre como foi executado e encoberto um dos maiores crimes do séc. XX.
Ajuda-nos também a compreender como e a favor de quem o mundo funciona.
Os
documentos referem-se a Timor oriental, agora conhecido como Timor-Leste, e
foram escritos por diplomatas da embaixada da Austrália em Jakarta. A data é
novembro de 1976, menos de um ano após o ditador indonésio general Suharto
tomar a então colónia portuguesa na ilha de Timor.
O
terror que se seguiu tem poucos paralelos: nem mesmo Pol Pot conseguiu matar
proporcionalmente tantos cambodjanos como Suharto e os seus amigos generais
mataram em Timor oriental. De uma população de quase um milhão, um terço
desapareceu.
Foi
o segundo holocausto do qual Suharto foi responsável. Uma década antes, em
1965, Suharto tomou o poder na Indonésia com um banho de sangue que eliminou
mais de um milhão de vidas. A CIA referiu: «Em termos de número de mortos, os
massacres estão entre os piores assassínios em massa do séc. XX.»
Este
acontecimento foi saudado na imprensa ocidental como “um raio de luz na Ásia”
(Time). O correspondente da BBC no sueste asiático, Roland Challis, descreveu
mais tarde o encobrimento dos massacres como um triunfo da cumplicidade e
silêncio dos media, A “linha oficial” era que Suharto tinha “salvo” a Indonésia
de um assalto comunista.
«Evidentemente
que as minhas fontes britânicas sabiam qual o plano americano,” disse-me.
“Havia corpos retirados dos relvados do consulado britânico em Surabaya e
navios de guerra britânicos escoltaram um barco cheio de tropas indonésias para
tomarem parte neste holocausto terrível. Só muito mais tarde soubemos que a
embaixada americana estava a fornecer nomes [a Suharto] e a abatê-los na lista
à medida que eram eliminados. Houve um acordo. Do estabelecimento do regime de
Suharto fazia parte o envolvimento do Fundo Monetário Internacional e do Banco
Mundial [dominados pelos EUA]. Foi esse o acordo.»
Entrevistei
muitos dos sobreviventes de 1965, incluindo o aclamado escritor indonésio
Pramoedya Ananta Toer, que testemunhou um sofrimento épico «esquecido» no
ocidente só porque Suharto era «o nosso homem». Era quase inevitável um segundo
holocausto em Timor oriental, rico em recursos e colónia indefesa.
Em
1994, filmei clandestinamente em Timor oriental. Encontrei uma terra de cruzes
e inesquecível sofrimento. No meu filme, «Morte de um Povo», há uma sequência
filmada a bordo de um avião australiano voando sobre o mar de Timor. Decorre
uma reunião. Dois homens de fato fazem saúdes com champanhe. «É um momento
verdadeiramente histórico,» balbucia um deles, «verdadeira e unicamente
histórico.»
É
o ministro dos Estrangeiros da Austrália, Gareth Evans. O outro é Ali Alatas, o
principal porta-voz de Suharto. Estamos em 1989 e estão fazendo um voo
simbólico para celebrar um acordo de pirataria a que chamam «tratado». Foi isto
que permitiu à Austrália, à ditadura de Suharto e às companhias petrolíferas
internacionais dividirem os despojos dos recursos em petróleo e gás de Timor
Leste.
Graças
a Evans, ao então primeiro-ministro da Austrália, Paul Keating – que encarava
Suharto como uma figura paternal – e a um gang que conduzia a política externa
da Austrália, este país distinguiu-se como o único país ocidental a reconhecer
formalmente a conquista genocida de Suharto. O preço, disse Evans, foram
«montanhas» de dólares.
Membros
deste gang voltaram a aparecer há dias em documentos encontrados nos Arquivos
Nacionais por dois investigadores da Universidade de Monash em Melbourne, Sara
Niner e Kim McGrath. Funcionários superiores do Departamento de Negócios
Estrangeiros relatam pela sua própria mão violações, tortura e execuções de
timorenses de leste por tropas indonésias. Em anotações rabiscadas num
apontamento que refere atrocidades num campo de concentração, um diplomata
escreveu: «parece divertido». Outro escreveu: «a população parece extasiada.»
Relativamente
a um relatório da resistência indonésia Fretilin que descreve a Indonésia como
um invasor «impotente», outro diplomata zombava: «Se o inimigo era ”impotente”,
conforme lá está dito, como é que conseguem violar todos os dias a população
capturada? Ou será que se deve a isto?»
Os
documentos, diz Sarah Niner, são «prova evidente da falta de empatia e de
preocupação pelos abusos de direitos humanos em Timor-Leste» no Departamento de
Negócios Estrangeiros. «Os arquivos mostram que esta cultura de encobrimento
está intimamente ligada à necessidade de o DNE reconhecer a soberania
indonésia, para iniciar as negociações sobre o petróleo no mar de Timor-Leste.»
Tratou-se
de uma conspiração para roubar o petróleo e o gás de Timor-Leste. Em telegramas
diplomáticos divulgados de agosto de 1975, o embaixador australiano em Jakarta,
Richard Woolcott, escreveu para Canberra: «Parece-me que o Departamento [de
Minerais e Energia] poderia ter interesse em resolver a atual diferença na
fronteira marítima acordada e isso poderia ser muito melhor negociado com a
Indonésia… do que com Portugal ou com o Timor português independente.» Wolcott
revelou que tinha sido informado sobre os planos secretos da Indonésia para uma
invasão. Telegrafou para Canberra que o governo devia “ajudar à aceitação
pública na Austrália” e contrariar «o criticismo contra a Indonésia».
Em
1993, entrevistei C. Philip Liechty, um antigo funcionário de operações senior
da CIA na embaixada de Jakarta durante a invasão de Timor-Leste. Disse-me ele:
«Foi dada luz verde a Suharto [pelos EUA] para fazer o que fez. Fornecemos-lhe
tudo o que precisava [desde] espingardas M16 [até] apoio logístico militar dos
EUA… talvez 200 mil pessoas morreram, a maior parte não-combatentes. Quando as
atrocidades começaram a surgir nos relatórios da CIA, a maneira que arranjaram
de tratar do assunto foi encobri-las o máximo tempo possível e quando já não
podiam mais ser encobertas foram apresentadas de forma atenuada e em termos
gerais, de modo que as nossas próprias fontes foram sabotadas.»
Perguntei
a Liechty o que teria acontecido se alguém tivesse denunciado. «A sua carreira
teria terminado,» respondeu. Disse-me que esta entrevista comigo era uma forma
de reparação pelo «mal que senti».
O
gang da embaixada australiana em Jakarta parece não sentir tal angústia. Um dos
escribas dos documentos, Cavan Hogue, declarou ao Sydney Morning Herald:
«Parece a minha caligrafia. Se fiz tal comentário, sendo eu o cínico
filho-da-mãe que sou, teria certamente sido com espírito de ironia e sarcasmo.
Isso referia-se ao comunicado de imprensa [da Fretilin] e não aos timorenses.»
Hogue declarou que houve «atrocidades de todos os lados».
Como
pessoa que relatou e filmou as provas do genocídio, acho esta última observação
especialmente profana. A «propaganda» da Fretilin que ele ridiculariza era
rigorosa. O relatório subsequente das Nações Unidas sobre Timor Leste descreve
milhares de casos de execução sumária e violência contra mulheres pelas forças
especiais Kopassus de Suharto, muitas delas treinadas na Austrália. «Violação,
escravatura sexual e violência sexual foram instrumentos usados como parte da
campanha programada para infligir uma profunda experiência de terror,
impotência e desespero nos apoiantes pró-independência,» diz a ONU.
Cavan
Hogue, o brincalhão e «cínico filho-da-mãe» foi promovido a embaixador senior e
mais tarde reformado com generosa pensão. Richard Woolcott foi promovido a
chefe do Departamento dos Negócios Estrangeiros em Canberra e, na reforma,
ensinou como um «respeitado intelectual diplomata».
Foram
despejados jornalistas na embaixada australiana em Jakarta, especialmente
empregados de Rupert Murdoch, que controla quase 70% da imprensa da capital. O
correspondente de Murdoch na Indonésia era Patrick Walters, que noticiou como
«impressionantes» os «êxitos económicos» de Jakarta em Timor-Leste e «generoso»
o desenvolvimento daquele território empapado de sangue. Quanto à resistência
timorense oriental, estava «sem líder» e derrotada. De qualquer modo, «ninguém
é agora preso sem os procedimentos legais apropriados».
Em
dezembro de 1993, um dos empregados mais antigos de Murdoch, Paul Kelly, na
altura editor-chefe do The Australian, foi nomeado pelo ministro dos
Estrangeiros Evans para o Instituto Austrália-Indonésia, uma instituição
fundada pelo governo australiano para a promoção dos «interesses comuns» de
Canberra e da ditadura de Suharto. Kelly levou um grupo de editores de imprensa
a Jakarta para uma audiência com o assassino de massas. Há uma fotografia de um
deles que se está curvando.
Timor-Leste
ganhou a independência em 1999 com o sangue e a coragem da sua gente vulgar. A
pequena e frágil democracia foi imediatamente sujeita a uma implacável campanha
de assédio pelo governo australiano, que procurou manobrar para lhe retirar o
direito legal de propriedade sobre a exploração das reservas submarinas de
petróleo e gás. Para o atingir, a Austrália recusou reconhecer a jurisdição do
Tribunal Internacional de Justiça e a Lei do Mar e alterou unilateralmente a
fronteira marítima a seu favor.
Em
2006, foi finalmente assinado um acordo do tipo mafioso, em grande parte
segundo os termos da Austrália. Pouco depois, o primeiro-ministro Mari
Alkitiri, um nacionalista que tinha feito frente a Canberra, foi efetivamente
deposto naquilo que ele chamou uma «tentativa de golpe» por «estrangeiros». Os
militares australianos, que tinham tropas de «manutenção de paz» em Timor
Leste, tinham treinado os oposicionistas.
Nos
17 anos desde que Timor-Leste ganhou a independência, o governo australiano
apropriou-se de cerca de 5 mil milhões de dólares em petróleo e gás, dinheiro
que pertence ao seu pobre vizinho.
A
Austrália tem sido chamada o «vice-xerife» da América no Pacífico Sul. Um dos
homens com crachá é Gareth Evans, o ministro dos Estrangeiros filmado a erguer
a taça de champanhe para saudar o roubo dos recursos naturais de Timor-Leste.
Hoje, Evans é um frequentador de púlpitos fanático que promove uma marca
belicista conhecida por «RTP» ou «Responsabilidade para Proteger». Como
co-presidente de um tal «Global Centre» sediado em Nova Iorque, dirige um grupo
de influência apoiado pelos EUA que pressiona a «comunidade internacional» para
atacar países onde «o Conselho de Segurança rejeita ou não aceita propostas de
solução em tempo razoável». O homem indicado, conforme os timorenses podem
confirmar.
*Jornalista
australiano
Este
texto foi publicado em: http://johnpilger.com/articles/the-rape-of-east-timor-sounds-like-fun-
Tradução:
Jorge Vasconcelos
Fonte: O Diário – em Diário
Liberdade, 12 Março 2016
Sem comentários:
Enviar um comentário