Frei
Fernando Ventura é filho de um árbitro e é o homem certo para nos falar sobre
religião e futebol num fim de semana especial
Fernando
Ventura | Expresso Tribuna | opinião
A
propósito de um jogo, de uma peregrinação... ou talvez não...
De
repente apetece fazer um trocadilho por demais conhecido, nestes tempos que
vivemos de atenção pessoal e mediática a dois fenómenos que a bizarria do
calendário ou do destino colocou em concomitância, futebol e Fátima. Tentarei
não cair na tentação do jogo fácil das palavras, sobretudo num tempo em que as
palavras sobram e em que os jogos são tudo menos fáceis... precisamente por
causa das palavras.
Palavras
que sobram, jogos difíceis, fados por cumprir, tudo isto existe, tudo isto é
triste, tudo isto, se calhar é isso mesmo... é fado. Tudo isto está e vive na
peregrinação da história, desta nossa história feita de lugares e de cultos, de
lugares de culto e de lugares profanos; de lugares de culto profanados e de
lugares profanos endeusados, numa espécie de rendilhado de palavras e de
emoções que se cruzam no vozear das sensações, dos amores e dos ódios - alguns
de estimação mas pouco estimáveis - com que vamos fadando o nosso fado de ser
assim.
E
somos assim gente de fé, uma palavra que felizmente só tem singular, mas que
vive na singularidade plural que nos habita as emoções e as raivas os amores e
os ódios; uma fé às vezes cega que toca o fanatismo religioso e desportivo de
gente que vive a pior das condições de ser pessoa, a condição de ter uma
religião!...
É
verdade, isso mesmo. Parafraseando o grande Agostinho da Silva, “o pior que
pode acontecer a alguém é “ter” uma religião!” Que grande e urgente verdade a
ser de novo trazida ao nosso consciente colectivo...
Um
consciente às vezes, - se calhar demasiadas vezes -, vivido numa espécie de
inconsciência grupal, quer ao nível da “religião religiosa”, quer ao nível da
“religião desportiva”, que partilha santuários de encontro, altares de libações
aos deuses, paramentos que uniformizam o colectivo, cânticos rituais e gestos,
coreografias de espontaneidade ensaiada e orações sacrossantas gritadas a
plenos pulmões como se não houvesse amanhã.
É
aqui que a “religião religiosa” e a “religião desportiva” esbarram contra o sem
sentido do ser sem ser, quando desaparece o horizonte do porvir, quando se vive
o “estádio” como se não houvesse amanhã, quando se vive o lugar de culto, como
se a eternidade fosse agora, neste aqui e neste agora vilipendiado por árbitros
vendidos ao inimigo, que não viram o penálti nem se deram conta do fora de
jogo...
É
aqui neste limbo de não ser, que o acidente e os acidentes acontecem, os do
desporto e os da fé, quando a fé é para o “já”; quando o campeonato se decide
agora, como se não houvesse amanhã, como se o futuro fosse hoje, como se a
eternidade fosse aqui... como se o penálti fosse a última das ofensas, como se
os fora de jogo que realmente importam não fossem justamente os milhões de
seres humanos postos “fora de jogo”, “penaltizados” no seu direito de ser
gente, no seu direito de ser pessoa, dentro do campo da vida, com o direito a
viver em plenitude o campeonato da existência.
Este
é realmente outro “campeonato”... gente de religião alienada, gente alienada de
religião que tudo compra, porque tudo tem um preço, até a paternidade...
Nas
palavras do Prof. Agostinho da Silva que me atrevo a parafrasear, “o pior que
pode acontecer a alguém de fé é ter uma religião, do mesmo modo que o pior que
pode acontecer a alguém “do desporto” é ter um clube. Isso mesmo, assim na
brutalidade do aparentemente contraditório, mas desgraçadamente actual.
Quando
a fé - religiosa ou futebolística que seja - perde a sua singularidade de ser
singular e deixa de ir à procura de outras singularidades para construir
relações que se alarguem num horizonte de comunidade de diferentes, passa-se a
uma fé de “plural”, que cheira a isso mesmo, tal qual, e que tanta porcaria tem
espalhado por tantos “lugares de culto” transformados em lugares de morte.
Em
tempo de peregrinações e futebóis, pode ser útil parar para pensar, pensar a
vida e o desporto, pensar o desporto e a vida, a vida do desporto e o desporto
da vida, feita de caminho e de caminhos, de diferenças e de diferentes em
direcção à esperança a construir num todo relacionalmente unido composto por
gente que sabe que não é Deus, composto por gente que não endeusa ninguém, mas
que se busca buscando Deus, desportivamente na fé de quem sabe de certeza certa
que um dia o há-de encontrar, se calhar só no prolongamento, mas ainda e sempre
dentro do campeonato da existência da eternidade para o qual um dia fomos
convocados.
Para
todos, os meus votos de uma excelente peregrinação e de um campeonato pacífico
no estádio da vida. Insh’Allah!
Foto: Rui Miguel Pedrosa | Global Imagens
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