Eleito pelo voto, com a máscara
de antissistema, o presidente Rodrigo Duterte desencadeou um banho de sangue.
Que há em comum com Bolsonaro? Como enfrentar a ameaça?
Antonio Martins | Outras Palavras
Alguns dias antes das eleições,
Walden Bello, um sociólogo e ativista filipino que conhece o Brasil, e
participou ativamente dos Fóruns Sociais Mundiais, escreveu uma carta
aos brasileiros. Bello comparava a então provável eleição de Jair Bolsonaro
aos dois anos de mandato do atual presidente de seu país, Rodrigo Duterte. A
mensagem tinha claro sentido de alerta.
Bello descrevia a situação das
Filipinas em tintas fortes. Lá, dizia ele, Duterte inaugurou um fascismo
particular, que tem características distintas do fenômeno clássico. Ele é
menos ideológico, mais pragmático. No início de seu governo, por exemplo, o
presidente ofereceu três ministérios sociais aos comunistas. Este fascismo não
constituiu um movimento de massas. Ao contrário, apoia-se na busca, por largas
camadas da população, de um pai brutal, um homem que prometa colocar ordem – ainda
que por meio da violência – num ambiente que parece caótico, inseguro e
corrupto. Este fascismo, em certos aspectos, pode ser mais intenso que o
original.
Ao contrário de Hitler e
Mussolini, que restringiram gradualmente as liberdades políticas, para só mais
tarde praticar o terror de Estado em massa, nas Filipinas a limitação dos
direitos civis veio mais tarde. Mas os maiores massacres atingem os usuários e
comerciantes de drogas, e começaram antes mesmo de o presidente tomar posse.
São executados por uma polícia corrupta e por milícias dos chamados
“vigilantes”.
Em dois anos, pelo menos vinte
mil pessoas foram assassinadas, num país que tem a metade da população do
Brasil. Uma matéria no New York Times conta
o drama de mães da periferia de Manilla, a capital. Alguém incluiu o
nome dos filhos delas nas listas de futuras vítimas dos esquadrões da morte,
que circulam de boca em boca ou pelas redes sociais. Para escapar, os garotos
dormem a cada dia numa casa diferente. Alguns de seus colegas deixaram a
cidade, e passaram a residir, como nômades, em acampamentos na zona rural.
Há diversas semelhanças entre as
Filipinas e o Brasil. Elas começam na colonização de extrema violência, feita
por Estados coloniais (no caso deles, a Espanha) e pelos padres católicos a
partir do século XVI. As Filipinas não eram, até então, um país, mas uma
constelação de povos tribais – também chamados de “índios” sem Estado,
administração ou política institucionalizada. A colônia espanhola encarregou
cada ordem religiosa de governar um povo. A conversão foi
feita a ferro e fogo, deixando marcada na tradição cultural a naturalização
da violência. Há outra coincidência, mais recente, intrigante, merecedora de
investigação. Os grandes
parceiros de Duterte, no terreno da cooperação militar, são os Estados
Unidos de Trump e Israel de Benjamin Netanyahu – os dois governos que mais
demonstraram entusiasmo com a eleição de Bolsonaro, e se apressam a cooperar
com ele.
Mas as identidades mais marcantes
têm a ver com o ambiente político, social e cultural que permitiu a emergência
dos líderes fascistas. Há um enorme desgaste das instituições. A democracia
é vista
como uma farsa, uma fachada sob a qual prosperam os negócios escusos e se
tomam as decisões que realmente importam. A desigualdade é indecente. A elite
política, corrupta, é detestada. Valores defendidos hipocritamente por ela,
como os direitos humanos e a liberdade individual, sofrem desgaste idêntico.
A ascensão de Duterte, nesse
cenário de desmoralização, tem muitos paralelos com a de Bolsonaro. O
presidente filipino elegeu-se fazendo o papel do durão, de homem que zombava do
refinamento corrupto das elites (a quem chamava de “coños”, algo como
“bucetas”) e mesmo dos costumes americanizados cultivados por elas. Mas,
esperto, escolhe um grupo mais fraco como alvo. Nas Filipinas, os usuários de
drogas, que foram associados à criminalidade. No Brasil, os homessexuais, as
feministas, os índios e quilombolas, os nordestinos. Nenhum grande traficante
jamais foi preso ou incomodado por Duterte. Mas é como se os usuários, ou os
pequenos comerciantes, pudessem ser sacrificados como bodes expiatórios de um
modo de vida visto como ofensivo à “normalidade” a que as massas estão
submissas.
Durante quase dois anos, a
popularidade de Duterte manteve-se nas alturas, em torno dos 80%. Amparado por
ela, ele passou
a reprimirtambém o ativismo político – ou a terceirizar a perseguição a
este. No início de 2017, o Partido Comunista foi sacado do governo e remetido
diretamente a uma lista de organizações terroristas. A presidente ds Suprema
Corte foi afastada. Quase 95% dos membros do antigo partido liberal bandearam
para a base de apoio a Duterte. Há autocensura da imprensa e militarização do
governo. Segundo cálculos de um Tribunal
dos Povos contra Rodrigo Duterte, realizado no exterior 169 ativistas
fotam mortos e 509 estão presos ilegalmente.
Pobre Brasil: estaremos
condenados a viver todas as agruras de que padecem as Filipinas? Claro que não,
pois a política é o campo da disputa, do indeterminado, não das certezas. Os
riscos são grandes, mas há, para começar, diferenças grandes entre os dois países.
No terreno econômico, Bolsonaro enfrentará um cenário muito mais difícil, e seu
viés ultra-liberal será um permanente fator de desgaste, junto às maiorias. Já
Duterte beneficia-se
do crescimento geral da Ásia, da demanda chinesa por componentes
eletrônicos (as Filipinas têm uma pauta de exportações muito menos primária que
a do Brasil .. ), de uma taxa de desemprego próxima a zero. Ainda assim,
turbulências recentes (em especial o aumento dos gêneros de primeira
necessidade) fizeram seu apoio
popular despencar.
No Brasil há, além disso, a
memória dos primeiros avanços contra a desigualdade, que teria elegido Lula,
fossem as eleições livres. mas Filipinas, o crescimento econômico foi sempre
acompanhado de mais desigualdade e pobreza.
Mas os desacertos políticos dos
últimos anos foram tantos, e tão graves, que não custa prestar atenção
aos três
conselhos que Walden Bello oferece a seus amigos brasileiros.
Primeiro: não se refugiam na ilusão da suposta volta à normalidade institucional,
a política dos velhos tempos. Ela é associada pelas maiorias ao domínio
oligárquico. Busquem o novo, baseados inclusive na experiência brasileira
anterior: políticas de renda cidadã muito mais ousadas, construção de serviços
públicos de excelência, formas novas de democracia intensamente participativa.
O resgate da democracia depende, muito provavelmente, de sua reinvenção,
Segundo: dirijam-se aos de baixo,
a estes que, em muitos casos, desiludiram-se com a esquerda, por se sentirem
abandonados por ela. Parte deles aderiu a Bolsonaro, mas é o que Gramsci
chamava de um consenso apenas passivo, que pode ser rompido. Terceiro: não
desprezem o anseio popular por segurança. Ele é legítimo, em especial nas
periferias; e cria monstros, mas só quando não apenas a direita oferece
respostas efetivas (ainda que ilusórias e brutais).
Os tempos muito duros que virão
podem ser, também, uma oportunidade para nos reconstruirmos. O processo será
duríssimo, penoso, muitas vezes terrível. Que seja, ao menos, também uma
oportunidade para refletirmos, desapegarmos do que fomos, nos reconstruirmos.
–
Referências:
> A carta de Walden Bello aos
brasileiros
https://fpif.org/a-letter-to-brazil-from-a-friend-living-under-duterte/
https://fpif.org/a-letter-to-brazil-from-a-friend-living-under-duterte/
> Duterte diz que seu único
pecado são as execuções extrajuciais (Other News)
http://www.other-news.info/2018/09/philippines-president-duterte-my-only-sin-is-the-extrajudicial-killings/
http://www.other-news.info/2018/09/philippines-president-duterte-my-only-sin-is-the-extrajudicial-killings/
> Amy Goodman entrevista,
no Democracy Now, o fotógrafo Raffy Lerna, que acompanha as execuções
nas Filipinas
https://www.democracynow.org/2017/11/10/will_trump_challenge_philippines_president_dutertes
https://www.democracynow.org/2017/11/10/will_trump_challenge_philippines_president_dutertes
> Um fascista original, por
Walden Bello, no Transnational Institute
https://www.cetri.be/Rodrigo-Duterte-A-Fascist-Original?lang=fr
https://www.cetri.be/Rodrigo-Duterte-A-Fascist-Original?lang=fr
> Walden Bello relata
como a perseguição de Duterte voltou-se contra a esquerda
https://therealnews.com/stories/philippines-duterte-uses-war-on-terror-tactics-to-crack-down-on-leftists
https://therealnews.com/stories/philippines-duterte-uses-war-on-terror-tactics-to-crack-down-on-leftists
> O apoio de Trump e Netanyahu
às políticas de Duterte
> Uma história de violência,
desde a colonização pela Espanha católica
https://asialyst.com/fr/2017/01/27/philippines-trajectoire-violence/
https://asialyst.com/fr/2017/01/27/philippines-trajectoire-violence/
> Matéria do New York
Times sobre a vida dos jovens perseguidos por Duterte
https://www.nytimes.com/2017/06/04/world/asia/rodrigo-duterte-philippines-drug-crackdown.html?emc=edit_th_20170605&nl=todaysheadlines&nlid=61704064
https://www.nytimes.com/2017/06/04/world/asia/rodrigo-duterte-philippines-drug-crackdown.html?emc=edit_th_20170605&nl=todaysheadlines&nlid=61704064
> Os primeiros sinais da queda
de popularidade de Duterte
https://www.theguardian.com/world/2018/oct/23/philippines-rodrigo-duterte-dip-popularity-ratings
https://www.theguardian.com/world/2018/oct/23/philippines-rodrigo-duterte-dip-popularity-ratings
> As denúncias do Tribunal
contra Rodrigo Duterte sobre os atentados aos direitos humanos
http://inthesetimes.com/article/21500/peoples-tribunal-philippines-rodrigo-duterte-drug-war-executions-repression/
http://inthesetimes.com/article/21500/peoples-tribunal-philippines-rodrigo-duterte-drug-war-executions-repression/
> O cenário econômico nas
Filipinas
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