segunda-feira, 9 de maio de 2016

LÍNGUA DE CAMÕES EM TIMOR-LESTE: QUO VADIS?


M. Azancot de Menezes,  Díli - opinião

Um investigador brasileiro da Universidade de Campinas, Alan Carneiro, escreveu um artigo “problematizador” sobre as políticas linguísticas em Timor-Leste, abordando também as tensões no campo da formação docente. O autor, logo na introdução do seu estudo, referia, e passo a citar, «Ao chegar ao aeroporto de Díli, Timor-Leste, as placas de propaganda indicam uma complexa situação linguística: o anúncio de uma instituição financeira indonésia, o banco Mandiri, está em língua indonésia; curiosamente a propaganda do banco Australian and New Zealand (ANZ) está em português, a língua oficial; o de uma organização não governamental (ONG) norteamericana, Buy Local que actua no país, está em inglês, com a tradução para a língua oficial, o tétum». 

No segundo parágrafo, Carneiro, desenvolvendo o seu pensamento em jeito de prosa, afirma: «ao percorrer a cidade, a diversidade de línguas utilizadas não só nas placas e sinalizações, mas também nos diversos contextos de interacção surpreende ainda mais: pessoas falando em tétum nas ruas, nas feiras e nas casas; professores portugueses e brasileiros ensinando e interagindo em língua portuguesa nas universidades e em cursos de formação de professores; trabalhadores internacionais dos mais diversos países conversando em inglês nos restaurantes, nas agências internacionais e nas sedes de ONG´s; comerciantes de diferentes nacionalidades, mas principalmente indonésios e chineses, utilizando a língua indonésia e o inglês, dentre estes últimos ainda se vê alguns que utilizam o hakka ou o yue, línguas vindas do sul da China que estão presentes no país desde tempos remotos».
   
Às citações mencionadas na introdução desta reflexão, independentemente de continuarem no seu todo a representar a realidade actual ou não, poderemos acrescentar outras, algumas caricatas. A carta de condução e o bilhete de identidade são entregues aos cidadãos em língua portuguesa e inglesa. O cartão de eleitor, tal como deviam estar todos os documentos, está em português e tétum, as duas línguas oficiais. No entanto, vários formulários das universidades e outras instituições estão escritos em língua indonésia. Nos hospitais os médicos cubanos falam em espanhol. Outros profissionais de saúde comunicam em língua indonésia, tétum e alguns em português.  

No espaço da classe política, caso do Parlamento Nacional, apesar dos documentos que por lá circulam estarem escritos em língua portuguesa e em tétum, os deputados discutem e abordam os diversos temas na língua tétum e alguns até em língua indonésia mas, raramente em português, devido à incapacidade de muitos deputados dominarem a língua portuguesa. Nas reuniões governamentais repete-se o mesmo, pois, de forma rotineira, discute-se em tétum, e quando é necessário elaborar um discurso com a introdução de vocabulário inexistente em tétum, utiliza-se a língua indonésia ou a língua portuguesa, esta última quase sempre com qualidade questionável. 

Todas estas constatações que servem de mote para esta reflexão sobre a “língua de Camões em Timor-Leste” são algo provocatórias, mas não deixam por isso de ser uma realidade actual, complexa, dirão alguns, mas os problemas desta natureza, mesmo difíceis, podem ter soluções adequadas, desde que haja vontade política e o envolvimento de protagonistas tecnicamente competentes.

Em jeito de preâmbulo, referi-me a um cenário geral vivido em Díli, mas para melhor discutirmos a “língua de Camões em Timor-Leste”, é um imperativo abordarmos com algum detalhe o «campo da educação», muito maltratado, apesar de ser um campo específico e estratégico para o desenvolvimento sustentável do País.
  
Estou a utilizar de forma premeditada a expressão «campo» e a lembrar-me do grande sociólogo Pierre Bourdieu (1939-2002), uma referência fundamental para abordagens sociais, e que tem sido importante para transmitirmos aos socialistas timorenses e aos simpatizantes do Partido a ideia de que nenhum poder político pode escamotear o facto do nosso sucesso educativo depender muito das condições sociais, económicas e culturais dos jovens e das suas famílias, que vivem na miséria.

Na perspectiva deste grande autor francês, cada «campo» possui regras do jogo e desafios específicos, sendo um «microcosmo incluído no macrocosmo constituído pelo espaço nacional global» (Lahire, 2002, citado por Catani, 2011). Partindo deste pressuposto que se aplica a Timor-Leste e a qualquer outro País, facilmente somos a concluir que os interesses sociais são sempre específicos de cada «campo» e não se reduzem aos interesses estritamente económicos. Como já defendia Lahire (2002), «um campo possui uma autonomia relativa», porque as lutas que nele ocorrem têm uma lógica interna, mas o seu resultado nas lutas (económicas, sociais, políticas…) externas ao campo pesa fortemente sobre a questão das relações de força internas.

No campo da educação, constata-se que a maior parte dos professores que temos no País não dominam a língua portuguesa porque foram formados no período da ocupação indonésia, principalmente nos anos 80, altura em que a Indonésia teve uma política mais agressiva no processo de aniquilamento do português e da imposição da língua utilizada pelo país invasor, nomeadamente através da utilização de professores indonésios provenientes de várias ilhas indonésias.
  
Por outro lado, a partir da década de 90, muitos timorenses ingressaram em universidades indonésias, e na única universidade existente em Timor-Leste no tempo da ocupação, o ensino era ministrado integralmente em língua indonésia, para além de que a segunda língua ensinada nas escolas era o inglês, com excepção do Externato de São José onde os padres Leão da Costa, Domingos Morato da Cunha, Martins, Felgueiras e o Enfermeiro António Maria (falecido), ministravam o ensino em língua portuguesa, sem nenhum apoio de Portugal.

Perante este panorama, tendo em consideração que depois da ocupação indonésia o português foi interditado e o tétum era considerado pelo invasor como língua sem valor social, servia apenas para comunicação, a partir de 2000, com a opção pela adopção das duas línguas oficiais, tétum e português, o Estado timorense deparou-se com resmas de problemas e desafios que exigiam respostas com capacidade e competência para a implementação de políticas educativas e culturais correctas, e que respondessem com eficácia às necessidades do país, recorrendo, sem pejo e preconceitos, ao aproveitamento de sinergias locais e internacionais, (bem) seleccionadas, para fugir ao lobby anglófono que de forma muito subtil vai penetrando nas super-estruturas do País através dos assessores internacionais de países de língua inglesa e portuguesa.

A ausência de recursos humanos capazes no domínio da educação, assim como o não aproveitamento dos quadros existentes, na maior partes das vezes por razões subjectivas e medíocres, demonstrou a total incapacidade do País em resolver questões estratégicas no campo da educação. Muitos dos políticos que assumiram cargos de relevo na área da educação, temos que assumir com modéstia estas verdades, em alguns casos por incompetência, em outros por cedência aos interesses de países não interessados na implantação da língua portuguesa em Timor-Leste, não foram capazes de traçar linhas mestras estratégicas de actuação suficientemente robustas para responder com eficácia às necessidades reais do País. 

Esta incapacidade estrutural e conjuntural foi e (ainda) é visível na ausência de políticas educacionais capazes. Sabendo nós que o ensino superior qualificado cumpre um papel de importância estratégica para o desenvolvimento de qualquer País, num quadro em que se assiste à proliferação do ensino superior em Timor-Leste, importa pois questionar qual é a qualidade do ensino superior timorense, e discutir o que se faz, o que não se faz e o que se devia fazer no domínio da formação de professores de língua portuguesa.  

Na maior parte das onze instituições de ensino superior do País, esta é a verdade, ensina-se só em língua indonésia pois os docentes não sabem falar nem escrever português. Em algumas instituições ensina-se em tétum e em língua indonésia. Os estabelecimentos que vendem livros de língua portuguesa, apesar de ter havido ligeira melhoria, são escassos, e os livros têm preços proibitivos, um luxo para o bolso da maioria dos estudantes filhos de agricultores pobres e dos professores dispersos pelo País que auferem um salário de miséria, obviamente insuficiente para sustentar as suas numerosas famílias, sendo certo que, por esta e por outras razões, não há nem pode haver hábitos de leitura. As bibliotecas são escassas e as que existem nas universidades, praticamente, só têm livros em língua indonésia, alguns em inglês e raros em português.

E depois há aqueles que querem trabalhar com qualidade e interesse nacional mas são sistematicamente sabotados por razões mesquinhas, a maior parte das vezes por altos responsáveis que não sabem decidir em matéria de políticas de educação e no que respeita à regulação do funcionamento das instituições de ensino superior. Um caso paradigmático é ilustrado pela Universidade de Díli (UNDIL). Preparou-se para abrir este ano um curso de formação inicial de professores de língua portuguesa, elaborou o projecto em conformidade com as exigências da agência de avaliação e acreditação nacional, seleccionou docentes de alto nível científico-pedagógico com bom conhecimento da complexidade da situação linguística e sociolinguística nacional, abriu inscrições, constituiu uma turma, mas, após ter solicitado ao Ministério da Educação um amparo financeiro insignificante, nem resposta escrita lhe foi apresentada, tendo-se verbalmente alegado não haver orçamento, note-se, para auxiliar a abertura de um curso de licenciatura de ensino de língua portuguesa (!). 

O episódio que relatei, mas outros poderiam ser historiados, espelha a incongruência, as nossas fragilidades, a falta de visão estratégica, e o incumprimento superior da Constituição da RDTL e da Lei de Bases da Educação, porque é o próprio Estado, o mesmo que escolheu como línguas oficiais o tétum e o português, através do Ministério da Educação, a criar resistência à abertura de um curso de formação inicial de professores de língua portuguesa.  

Enquanto isso, há vários docentes portugueses sem o devido aproveitamento na Universidade Nacional de Timor Loro´sae (UNTL), enviados pelo Instituto Camões,  uma instituição que deixa muito a desejar em matéria de cooperação com Timor-Leste e que parece não entender o excelente trabalho que está a ser realizado pela Embaixada de Portugal em Timor-Leste, pela Escola Portuguesa Ruy Cinatti, bem como pela Fundação Oriente representada no País. 

O lamentável estado de coisas que se verifica em Díli só pode significar que vários responsáveis políticos do País da área da educação, e do Instituto Camões, ainda não assimilaram que as políticas de educação superior só serão válidas se reflectirem uma linha orientadora que se baseie no estado actual do desenvolvimento da nossa educação superior e transporte consigo uma visão, uma missão, objectivos e metas que se enquadrem num projecto social globalizante. 

Este é o cenário sociolinguístico verificado em Díli, mas, se avançarmos para os Municípios, a complexidade é enorme. Segundo Cinatti (1987), Thomaz (2002) entre outros autores citados no Atlas de Timor-Leste (2002), existem mais de 35 línguas maternas, e que resultam da «diversidade geográfica da ilha, às guerras internas e à consequente integração de subgrupos em outros grupos étnico-linguísticos». Tudo isto terá contribuído para a diversidade cultural e linguística do país, pois, é preciso ter em devida atenção que «a ilha de Timor foi, primeiramente, povoada pelos povos Papua, cerca de 7000 a.C., e pelos povos austronésios, aproximadamente 2000 a,C., tendo sido posteriormente abordada por outros povos em migração entre a Ásia e a Austrália e o arquipélago do Pacífico». 

Há estudos que mostram a evolução das principais línguas maternas de Timor-Leste e que devem ser partilhados para a melhor compreensão desta temática. De acordo com Cinatti (1987), Thomaz (2002) et al, citados no Atlas de Timor-Leste (2002), em 2001 a língua mais falada era o tétum (22.5%), seguindo-se o mambae (20%), o makasai (13%), o búnaq ou búnague (7%) e com menos de 5% o baiqueno, o kêmak, o fatalúku, o tocodede, o uaimoa, o tétum-teric, o kairui, o midiki, o idate, o makalero e o galóli. Entre 1961 e 1975, o mambae era falado por quase 30% da população (Atlas de TimorLeste, 2012). Mas há ainda a considerar outras línguas maternas e a já mencionada língua indonésia, importada, falada praticamente em todo o País.
       
Apesar do artigo 13º da Constituição da RDTL defender que o tétum e o português são as línguas oficiais, o panorama educativo está em situação muito frágil, quer no domínio científico-pedagógico, quer no campo organizacional ou curricular, e parece não haver interesse real em compreender e analisar com “lentes pedagógicas e linguísticas” os programas de formação de professores de língua portuguesa e tentar entender a problemática das políticas linguísticas.

Mas as razões do insucesso também se prendem com o facto de (alguns) professores portugueses que são enviados para o nosso País terem uma perspectiva demasiado redutora da sua missão e cingirem-se à visão eurocêntrica da nossa realidade linguística, pensando que ensinar a língua portuguesa em Timor-Leste é uma repetição do que se faz em Portugal ou em outros países europeus, esquecendo-se de que o sucesso das aprendizagens depende muito das competências de âmbito alargado onde se inclui o conhecimento sobre as línguas nacionais e sobre as diversidades sociolinguísticas e étnicas locais.

Uma investigadora da Universidade Aberta (Lisboa), Hanna Batoréo, fez um estudo muito interessante sobre a problemática do ensino de português em Timor-Leste. Como não sou um especialista nesta matéria, sinto-me na obrigação de partilhar no Jornal «A Voz Socialista» algumas ideias desta autora que consubstanciam parte do que defendi nesta reflexão educacional. Para se ensinar português em Timor-Leste de um modo sustentável, diz Batoréo (2007), «antes de mais exige dos agentes de educação oficiais um bom conhecimento (pelo menos passivo) das características linguísticas dos idiomas falados localmente, que pertencem às famílias linguísticas muito distintas do ponto de vista tipológico do Português e das outras línguas conhecidas, faladas e estudadas tradicionalmente na Europa». 

Para que o trabalho do professor que vem ensinar português em Timor-Leste seja bem sucedido e atraente para quem deseja aprender, há aspectos linguísticos fundamentais a tomar em consideração, e que são descurados por alguns docentes portugueses (e brasileiros) impreparados. Efectivamente, aspectos como a «ordem das palavras, o emprego dos tempos verbais, a ausência dos artigos, a forma disjuntiva de construir perguntas, a resposta a perguntas na negativa, as conceptualizações diferentes no funcionamento do sistema quini-decimal, a utilização de empréstimos lexicais de Indonésio no vocabulário técnico são apenas alguns dos fenómenos linguísticos que o professor do Português tem que ser preparado para enfrentar» (Batoréo, 2007).
  
Por sermos um País católico-cristão, mas ainda agarrado aos credos e valores reais e de origem, não podia deixar de terminar esta reflexão relembrando o que reza o evangelho.
  
São Pedro ao fugir de Roma com receio de ser torturado cruzou-se com Jesus (ressuscitado) e, muito admirado, perguntou-lhe: «Quo vadis?» (Para onde vais?). Jesus respondeu-lhe: «Roman vado iterum crucifigi» (Vou a Roma para ser Crucificado de novo).  

Díli, 07 de Maio de 2016. 

*Azancot de Menezes, Secretário-Geral do PST 

Nota: Artigo publicado na 3ª Edição de Abril de 2016 do Jornal «A Voz Socialista»

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