quinta-feira, 2 de junho de 2016

Nos poemas de Yi Ling continuam vivos os jovens de Tiananmen


Macau, China, 02 jun (Lusa) -- A 04 de junho de 1989, Yi Ling soube que tudo mudara: à pacata Macau onde vivia chegavam as notícias de um massacre que nunca mais abandonou a sua poesia. 27 anos depois de Tiananmen, ainda escreve versos sobre aquele dia.

"Foi muito chocante, na altura, ver aquelas imagens. Senti que tinha de escrever sobre aquilo", recorda Yi Ling (pseudónimo de Cheang Mio San), em entrevista à agência Lusa. Quase três décadas passaram desde o massacre de Tiananmen, em Pequim, mas a poeta continua a não conseguir conter as lágrimas.

"Muitas pessoas perguntaram porque é que os estudantes não fugiram da praça, daquele destino. Mas quero frisar que não é culpa deles. Foi um crime das autoridades, do Governo", insiste.

As repressão violenta aconteceu na madrugada de 03 para 04 de junho, mas há meses que os estudantes ocupavam a praça, num protesto pacífico por reformas e democracia. Também em Macau, na altura sob administração portuguesa, os universitários se mobilizavam.

"Sabíamos qual era a nossa responsabilidade, sabíamos que tínhamos de nos fazer ouvir e ajudar", recorda.

Na universidade havia um comité de apoio aos jovens de Pequim. Quando estes iniciaram uma greve de fome, os estudantes de Macau reuniram-se junto à sede da agência de notícias chinesa Xinhua (a única representação oficial da China em Macau, na altura) e ali dormiram.

"Estava rodeada deste ambiente, era muito natural para mim participar nestas atividades. Era uma forma de apoiar os estudantes", explica.

Seis dias depois do massacre, escreveu o poema "Todos os rostos que perdemos": "Nos sonhos/ Perdemos todos os rostos/ Numa só noite/ O mundo não pode gritar a nossa verdade" (tradução livre do chinês).

Yi Ling escrevia ensaios e poesia desde a adolescência, publicando-os nos jornais, uma prática comum entre os diários de Macau que se mantém até hoje. Mas depois de Tiananmen, houve uma mudança: "Antes do 04 de junho, não anotava qualquer data nos meus escritos. Depois comecei a ganhar o hábito de apontar a data em todos os textos relacionados com assuntos sociais ou políticos. Senti que era minha responsabilidade relatar o que se passava e o que eu sentia".

O "incidente", como é referido frequentemente, teve um impacto transversal: "Não só como escritora, mas em toda a minha vida. Tive sentimentos muito contraditórios, senti um grande desejo de melhorar a sociedade e ao mesmo tempo uma pressão para não o fazer".

Foram tempos conturbados também em Macau, onde a comunidade chinesa gozava de liberdades que depois se deterioraram. "Publicava-se no Ou Mun [jornal de maior circulação, pró-Pequim], não havia censura, era um bouquet de liberdade de expressão", diz Yi Ling.

"[Após Tiananmen], muitos sentiram que depois da transferência [de administração de Macau de Portugal para a China em 1999] não estariam seguros. Em Macau e Hong Kong houve um grande movimento migratório. Os pais mandaram os filhos para o estrangeiro. Mas eu senti que tinha de ficar. Um grupo de estudantes morreu pela democracia em Pequim, eu não devia fugir disso", lembra.

Em 1990 publicou o primeiro livro, "Cidade flutuante" (tradução livre), sobre Macau mas também com muitos textos sobre Tiananmen.

Depois de terminado o curso em Estudos Políticos, trabalhou cerca de três anos na TDM, emissora pública de televisão e rádio, e envolveu-se mais com o movimento pró-democracia, chegando a integrar as listas da Associação Novo Macau para eleições legislativas. Em 1993 casou-se com Au Kam San, hoje um dos dois deputados pró-democracia eleitos através da associação.

Em 2005 lançou dois livros, um sobre Macau, outro sobre Hong Kong, onde critica, em particular, a indústria do jogo, que equipara a alguém "beber veneno quando tem sede". "Não resolve nada", diz, referindo-se à questão económica e às seitas, outrora nas ruas, terem sido "levadas para os casinos".

O ambiente nos jornais de língua chinesa, em tempos descritos como montras livres para o trabalho literário, também mudou: "Depois de 1999 continuámos a poder publicar, mas mais recentemente, 2008 ou 2009, a situação ficou mais tensa e deixei de conseguir. Sou quase uma escritora clandestina".

O acumular de inéditos foi tal que, em 2010, percebeu que tinha material para um novo livro. Mas a aprovação, em 2009, do "Artigo 23.º", sobre crimes de traição à pátria, fê-la hesitar. "Não tenho medo de publicar, mas não sei se um editor correria esse risco", comenta.

Após quatro anos de pausa, Yi Ling voltou a pegar na caneta no dia 30 de maio: "Fomos arrancados pela raiz naquela noite/ 'Small potatoes'/ Sinónimo de 'ninguém' para os estrangeiros (...) As batatas foram arrancadas dos campos e mortas numa noite/ Novas batatas não podem crescer saudáveis no solo envenenado (....) Infelizmente as pessoas há muito que esqueceram/ que o solo não pode ser muito seco ou muito húmido/ que o solo sem pedras é a única forma de prevenir batatas deformadas".

ISG// MP

Sem comentários: